Artigo de estreia | Abolição: da escravatura à justiça criminal

    “Queremos acabar com a prisão. Mas não se assustem. Queremos também acabar com a polícia, os tribunais e toda a parafernália de ‘combate ao crime’, que não só não reduz roubos, homicídios e estupros, como ainda produz milícias e chacinas”

    Ilustração Junião/Ponte Jornalismo

    Estreamos. Assim, no plural, não por mero estilo, mas porque somos muitos/as/es: mulheres, negres, LGBTQIA+, nordestines. Somos abolicionistas penais e isso quer dizer que queremos acabar com a prisão. Mas não se assustem. Queremos também acabar com a polícia, os tribunais e toda a parafernália de “combate ao crime”, que não só não reduz roubos, homicídios e estupros, como ainda produz milícias e chacinas.

    Vocês nos verão por aqui escrevendo em dupla, em trio, em quarteto ou mais e, também, individualmente, a depender da temática e dos atropelos da vida. A ideia não é escrever na velocidade das redes, embora estejamos todes nelas. Queremos criar um espaço de respiro e reflexão. Isso não quer dizer que não vamos tratar de temas “polêmicos”, mas que nossa prioridade é exercitar, lapidar e cultivar noções, relações e temáticas abolicionistas, das mais simples às mais complexas, sempre com o cuidado de equilibrar precisão e simplicidade na linguagem. Uma vez por semana.

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    É preciso, desde já, que vocês saibam que esta coluna faz parte de um trabalho coletivo de elaboração e divulgação de abolicionismos penais que pretendemos sempre desdobrar, ampliar e diversificar. Viemos de dois cursos sobre abolicionismos, ministrados em 2020 pela plataforma do Espaço Cult, e estamos em movimento com as Frentes Estaduais pelo Desencarceramento e movimentos de egressos e familiares de pessoas presas. Não concebemos abolicionismo penal que seja apenas teoria. Somos, sobretudo, movimento.

    Estamos sempre abertos a novos projetos e pessoas. Neste espaço, vocês ficarão sabendo em primeira mão todas as nossas movimentações e campanhas, e também das parcerias e chegades, porque a gente só anda em bando.

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    Para começar nossa conversa, pensamos em um conceito precário e provisório de abolicionismo penal e um problema que enfrentamos a partir dele.

    Abolicionismo penal é um movimento social e acadêmico que refuta os fundamentos, justificativas e práticas do sistema de justiça criminal ao mesmo tempo em que busca produzir novas formas de lidar com os problemas e violências da nossa sociabilidade.

    Abolicionistas penais não aceitam o confisco dos conflitos pelo Estado para serem reduzidos ao binômio crime/pena, pois entendem que esta é uma forma de atualizar controles sobre populações marginalizadas sem atacar os processos histórico-políticos de marginalização. Por isso, o abolicionismo penal incita a produção de percursos singulares em resposta às situações conflituosas do convívio social e elaborados a partir da autonomia dos envolvidos e da ajuda mútua entre pessoas das coletividades afetadas.

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    Não reivindicamos originalidade no conceito, pois se trata de uma bricolagem. Falaremos das existências e escritos que compõem este conceito em nossos textos. Nele, saudamos os que vieram antes de nós. Também sabemos de sua precariedade porque tudo que está em movimento muda o tempo todo.

    E é contando com esse movimento que enfrentamos o problema de reelaborar o conceito, e também as práticas abolicionistas, a partir de uma realidade colonial que não é considerada quando se faz a mera importação de autores que pensam o sistema de justiça criminal em países centrais do capitalismo, com destaque para os europeus.

    Quem pensa o abolicionismo penal no Brasil precisa compreender, desde muito cedo, que, dentre as hierarquias sociais que o sistema de justiça criminal produz e/ou gerencia, o racismo não é equivalente a nenhuma outra, pois o racismo é o próprio fundamento desse sistema. Em outras palavras, o que se entende por justiça neste país é uma constante atualização das formas coloniais de sequestro, tortura e extermínio das populações negras e indígenas.

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    Este é o ponto de partida para a reelaboração do conceito esboçado acima e também para a atualização das nossas práticas, duas coisas que sabemos que não fazemos sozinhos, nem de uma hora para outra (e aqui precisamos falar de Ana Flauzina, Suzane Jardim, Dina Alves, Vilma Reis, Denise Carrascosa e tantas outras pessoas que já têm se dedicado a essa tarefa com muito afinco e nos inspiram cotidianamente), mas com as quais a coluna que se inicia hoje pretende colaborar.

    É fácil perceber que falar de “processos histórico-políticos de marginalização” ainda não dá conta do problema que estamos propondo, pois não explica que compreendemos a justiça criminal como estruturalmente racista e o abolicionismo penal, portanto, como estratégia que se define pelo antirracismo ou não nos serve para muita coisa.

    Pensar o abolicionismo penal no Brasil é pensar que a abolição da escravatura é um processo ainda incompleto e que a função do sistema de justiça criminal é justamente impedi-la. Esse sistema, com suas prisões e polícias, cartórios e audiências, promotores e ministros, possui uma contradição fundamental exposta: todos os dias atualiza o mito de que vivemos em uma democracia racial e todos os dias exibe apenas corpos racializados, presos ou mortos, como resultados diretos ou colaterais do “combate ao crime”.

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    Dito de outra forma, se atualmente fere o decoro desta democracia dizer que determinadas pessoas são naturalmente inferiores a outras em decorrência de sua raça, que tal se for possível dizer que elas são criminosas? Ou ainda, se não foi mais possível, a partir de certo momento da história, manter pessoas na condição de escravas, seria o caso de criminalizar a liberdade, o lazer, a moradia, a música, e estratégias de sobrevivência dessas pessoas para manter uma ordem racial que as inferioriza e explora? O funcionamento do sistema de justiça criminal começa a ser explicado a partir do momento em que conseguimos elaborar estas perguntas. Estão abertos os trabalhos.

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