Abordagens policiais baseadas na cor da pele configuram crime, apontam ministros do STF

A prática, conhecida como perfilamento racial, foi objeto de discussão durante julgamento de habeas corpus de homem negro condenado por portar 1,53g de cocaína

Guardas civis metropolitanos revistam pessoas na região da ‘Cracolândia’, no centro de SP, em 14 de junho de 2022 | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

“Não há crime e nem pode haver castigo pela cor da pele”, disse o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin durante leitura do relatório acerca do habeas corpus (HC) 208.240, que visa anulação de sentença proferida contra um homem negro condenado por tráfico de drogas ao ter sido flagrado com 1,53 gramas de entorpecentes em maio de 2020, no município de Bauru (SP).

O julgamentodo HC, que iniciou nesta quarta-feira (1/3) e voltou à pauta nesta quinta (2/3), foi peticionado pela Defensoria Pública do Estado (DPE) de São Paulo após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reduzir a pena proferida em primeira instância, mas não concordar com a absolvição do réu.

Fachin, que votou a favor do HC, chamou atenção para diversos pontos da fala do ministro Sebastião Reis Júnior, voto vencido no STJ, que provocou uma discussão a respeito da prática do “perfilamento racial”. O perfilamento acontece quando agentes de segurança submetem pessoas a revistas ou investigações com base em critérios genéricos como raça, cor, etnia, descendência ou nacionalidade.

Oito entidades de direitos humanos que entraram no processo como amici curiae (amigos da corte, entidades ou pessoas convocadas como especialistas em algum tema debatido na corte), citadas ao final deste reportagem, também mencionaram a prática racista em memorial enviado ao Supremo.

Conforme lembraram os ministros durante o julgamento desta quinta, os policiais que apreenderam o réu relataram estar passando por uma região conhecida por tráfico de drogas quando o viram parado ao lado de um carro, exercendo atividade que lhes pareceu compra e venda de algo. Uma das primeiras coisas que os PMs citaram, no registro da ocorrência, é que se tratava de homem negro.

Em seu voto no STJ, Sebastião Reis havia dito que a identificação da cor da pele poderia figurar como mera narração dos fatos se os policiais também tivessem mencionado outra característica, como sua altura ou a roupa que ele estava usando. Mas, como não o fizeram, o ministro analisou que o critério racial foi fundamental para a abordagem.

Fachin baseou-se na argumentação do magistrado para abordar a questão da fundada suspeita. “Entendo dever desta corte julgar, não apenas ausência de justa causa, mas causa injusta reconhecer fundada suspeita pela cor da pele”, disse. O relator do caso no STF disse que a prova do crime foi colhida de forma ilícita, por “não haver elementos concretos que fundassem suspeita exigida à revista corporal”. Já que as provas foram colhidas de forma ilícita, devem perder a validade, defendeu.

Em abril de 2022, o STJ já havia dado provimento a recurso parecido, no julgamento do habeas corpus 158580. Na ocasião, o relator Rogerio Schietti Cruz entendeu que a justificativa da suspeita deve se relacionar, necessariamente, ao indício de que o indivíduo está em posse de objetos ilícitos. “Infelizmente, ter pele preta ou parda, no Brasil, é estar permanentemente sob suspeita”, acrescentou Schietti.

Os ministros Alexandre de Moraes, André Mendonça e Dias Toffoli concordaram com Fachin na tese sobre o perfilamento racial e sobre como a prática, central para a manutenção do racismo estrutural no Brasil, deve ser combatida. Porém, divergiram do relator por acreditar que neste caso específico a atividade do réu em um lugar conhecido como ponto de venda de drogas justificou a abordagem policial. Os três analisam não ter sido motivada por racismo.

“O racismo estrutural é uma chaga brasileira”, disse Moraes, e disse ainda que o perfilamento racial é uma tentativa de policiamento ineficaz, que mina a confiabilidade da população nas forças policiais. “As provas não podem ser obtidas com perfilamento racial. Não só a prova é ilícita como aquele que praticou perfilamento deve ser processado por racismo”, defendeu, antes de declarar seu voto, que afirmou ter se baseado no mérito deste caso em particular.

Ontem, uma fala da vice-procuradora geral da república Lindôra Araújo viralizou e foi alvo de críticas nas redes sociais. Ela, que é branca, falou que o racismo também é “sentido por todos nós” quando estamos em outros países, não sendo um “privilégio” do Brasil. Falou também que “nós não podemos transformar o crime de tráfico de drogas em racismo”, argumentando que, nesse caso, deveria haver um HC coletivo para todos os presos por tráfico.

Outro ponto trazido pela defesa da vítima, mas que quase não foi mencionado no julgamento desta quinta, diz respeito ao princípio da insignificância, que se relaciona com a “pequeneza” de um crime e pode servir para diferenciar as penas por porte ou tráfico de drogas. O princípio é aplicado quando um crime cometido representa pouco dano, como o furto de um saco de arroz no supermercado, ou ainda quando representa comportamento atípico.

Além das organizações de direitos humanos, a Defensoria Pública do Estado (DPE) do Rio de Janeiro também pediu para ser amicus curiae. Gabriel Sampaio, diretor de litigância e incidência da Conectas Direitos Humanas — uma das entidades que acompanharam o julgamento —, afirmou à Ponte que o HC foi considerado relevante por diversos grupos e órgãos da sociedade devido à sua capacidade de influenciar outros casos, ajudando a fixar o entendimento da corte.

“A relevância coletiva é a possibilidade de o STF estabelecer exigência de critérios objetivos e seguros para evitar que pessoas negras sejam vítimas de abordagens abusivas e buscas pessoais baseadas em suspeitas genéricas, baseadas em sua raça, cor ou condição social”, disse o advogado.

O caso

Inicialmente, o homem foi condenado pela 1ª Vara Criminal de Bauru a uma pena de 7 anos, 11 meses e 8 dias de reclusão em regime fechado. A defesa do réu apelou para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que negou provimento. Foi peticionado, então, recurso de habeas corpus ao STJ, que reduziu a pena para dois anos e 11 meses em regime aberto. Agora, o HC chegou ao STF, que suspendeu o julgamento, com 3 votos contra e 1 a favor, até a continuação da sessão prevista para a próxima quarta (8/3).

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Entre as organizações que figuram como amici curiae, estão: Coalizão Negra por Direitos, Conectas Direitos Humanos, Educafro Brasil, Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto de Referência Negra Peregum, Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC) e Plataforma JUSTA.

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