Ação troca nome de rua de médico eugenista da USP por nome de mulher negra mumificada por ele

Jovens do coletivo Juntos colaram adesivos com nomes de personalidades negras brasileiras em placas de ruas que homenageiam racistas e militares em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Brasília. Reportagem da Ponte sobre Amâncio de Carvalho, que mumificou Jacinta Santana, motivou debate sobre legado do médico dentro da universidade

Sobre a placa de Amâncio de Carvalho foi colocado um adesivo com o nome de Jacinta Maria de Santana | Foto: Coletivo Juntos

Na noite desta terça-feira (11/8) estudantes do coletivo Juntos se mobilizaram em três capitais do país para colar adesivos em placas de rua que homenageiam figuras ligadas à defesa do racismo e da ditadura militar no Brasil. Os jovens alteraram placas nas cidades de São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Brasília. Na Vila Mariana, zona sul de SP a placa da rua Amâncio de Carvalho, foi alterada por uma adesivo com o nome Rua Jacinta Maria de Santana. Jacinta foi uma mulher negra que teve seu corpo embalsamado por Amâncio de Carvalho para ser usado em experimentos (e virou alvo de trotes estudantis) da Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo. 

Como revelou a Ponte em uma reportagem, a partir de uma pesquisa da historiadora e mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do ABC Suzane Jardim, por quase 30 anos o corpo mumificado foi  exposto como curiosidade científica, de 1900 a 1929. O autor do “experimento” foi o professor Amâncio de Carvalho. Logo após a publicação da reportagem, estudantes do curso de direito começaram a debater formas para impedir que homenagens a Amâncio de Carvalho, catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Direito de São Paulo, continuem acontecendo, tanto como nome de rua em São Paulo quanto também dentro da própria faculdade, na nomeação de uma sala. 

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A estudante Anna Lisboa, 19 anos, contou à Ponte que em maio deste ano os professores apresentaram em congregação um ofício para a criação de uma comissão para apurar os fatos e analisar o que farão diante da homenagem à Amâncio. “Nessa comissão, a Representação Discente (RD) recebeu um lugar, uma última reunião no dia 15 será feita  para encaminhamentos finais”, disse. 

Ela disse que houve um encontro virtual com a historiadora Maria Livia Tiede para discutir o assunto. “Ela nos forneceu todos os documentos históricos para fortalecer nossa argumentação para uma possível mudança. O papel da comissão não é mudar, mas propor a mudança, que será depois votada pelos professores. Ainda não decidimos o que vamos propor, mas com certeza não deixaremos a história sair impune.”

O diretor da faculdade de direito da USP, Floriano de Azevedo Marques Neto, disse que a Comissão encarregada de estudar o tema e oferecer soluções têm prazo até o início de setembro. “Os trabalhos estão andando e pretendo ter uma resposta ainda na Congregação de setembro”, afirmou.

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Além da placa de Amâncio, os estudantes também alteraram a placa localizada na zona oeste de SP que leva o nome da Avenida Doutor Arnaldo, fundador da Faculdade de Medicina da USP “e um dos maiores entusiastas da eugenia no Brasil”, segundo os alunos. No lugar eles homenagearam Jaqueline Goes de Jesus, cientista negra que sequenciou o genoma da Covid-19 em tempo recorde.

Segundo postagem do coletivo, a Avenida Vital Brasil, localizada também na zona oeste de SP, exalta um médico que “acreditava que o Brasil tinha de ser menos negro”, sobre uma placa da via foi colado um adesivo com o nome de Maria Carolina de Jesus, moradora da favela do Canindé e uma das grandes escritoras negras do Brasil. 

Estudantes sugerem colocar o nome de Maria Carolina de Jesus ao invés de Vital Brasil na placa | Foto: Coletivo Juntos

Na placa do Largo São Francisco, centro de São Paulo, os jovens condecoraram o Doutor Luiz Gama ex-escravo e um dos primeiros advogados negros do Brasil, líder na luta abolicionista.

Em Brasília, os alunos renomearam a ponte Costa e Silva, segundo presidente (1967-1969) do período da ditadura militar. Seu governo iniciou a fase mais brutal do regime ditatorial no país, com a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5) que lhe conferiu poderes para fechar o Congresso Nacional, institucionalizar a repressão e cassar políticos. 

Segundo os estudantes, em 2015, a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) “já havia aprovado um projeto de lei que mudava o nome da ponte para Honestino Guimarães, estudante da Universidade de Brasília (Unb) que lutou ativamente contra a ditadura e pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária”. De acordo com postagem do coletivo, “é necessário homenagear os verdadeiros heróis da sociedade, aqueles que lutaram contra a ditadura militar, e não aqueles que mataram em seu nome”.

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No Rio de Janeiro a Rua Duque de Caxias, que exalta o militar que comandou a sangrenta Guerra do Paraguai (1864 – 1870), foi coberta pela placa de Tereza de Benguela, líder negra que liderou um quilombo de negros e índios e resistiu à escravidão por duas décadas. Tereza de Benguela é homenageada oficialmente no dia 25 de julho, o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. A data comemorativa foi instituída pela Lei n° 12.987/2014.

Placas que indicam o nome da rua Visconde de Abaeté, título do político do século XIX Antônio Paulino Limpo de Abreu e que atuou durante a escravidão brasileira, também foram modificadas no Rio, levando o nome de Carlos Marighella, ativista negro que lutou contra o regime militar brasileiro, e Raul Amaro, também estudante ativista que atuou conta a ditadura e foi torturado e morto em 1971. O caso de Raul está entre os investigados pela Comissão da Verdade, grupo criado pelo governo brasileiro para apurar mortes e desaparecimentos ocorridos durante o regime militar.

Diogo Dias, 24 anos, representante do coletivo Juntos e mestrando em sociologia na Unicamp aponta que a ação partiu do movimento que o país e o mundo vive hoje de questionar a construção de uma única narrativa histórica, “que é contada sempre a partir do olhar das grandes elites. Em SP a gente assistiu a queima do Borba Gato que representa o que foi o passado escravocrata no nosso país, que representa o genocídio da população negra e indígena, a violência às mulheres. Essa ação promoveu um debate na sociedade e influenciou ideias para nós questionarmos a construção da memória”.

O estudante diz que a ideia é poder contar a história a partir de uma nova perspectiva. “Aí que entra um pouco a importância da gente fazer a mudança das placas e dos monumentos para contarmos uma história, que também seja contada a partir da perspectiva dos oprimidos, dos grupos subalternizados, porque a memória não é apenas uma expressão do passado, ela também se faz no presente”. 

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Ele cita o caso da USP, que ainda contempla símbolos racistas. “Nas universidades, como é o caso da USP, em que nós vemos o busto do Doutor Arnaldo na Faculdade de Medicina, nós vemos o nome da avenida, ou mesmo na entrada do campus da Cidade Universitária na USP em que damos de cara com o busto do Armando Sales e ao lado dele um pé de cana e um pé de café, remontando a um passado escravista. Esses símbolos estão querendo mostrar as populações negras e indígenas que aqueles lugares não foram feitos para elas, e pior, corre o risco de a gente contar apenas uma narrativa e com isso, a gente acaba deturpando a nossa história e podemos cair inclusive em perigos de narrativas únicas.”

Nesse sentido, Diogo afirma que é importante que o povo se veja na história do Brasil. “Essa é a importância também e de que um povo vai se olhar em especial, olhar para a sua história, a gente sabe que o Brasil é um país que é composto majoritariamente pela população negra e muitos não sabem a sua história, a importância desse movimento é a gente incidir na história e ter os nossos direitos como estabelece a própria constituição brasileira”.

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