Educadora Ednéia Gonçalves alerta que estudantes não têm acesso a iguais condições de aprendizagem; exame deve acontecer de 30 a 60 dias depois do previsto
A pandemia do coronavírus impôs transformações profundas do dia para noite em diversos segmentos. Um deles é a educação. De cara, com a suspensão das aulas, o ensino remoto foi implementado e as aulas online passaram a ser a principal forma de garantir o cumprimento do ano letivo.
Porém, nem todos possuem condições básicas para o acesso, como um computador próprio ou internet, o que resultou em diversas críticas da comunidade escolar e especialistas da área.
“O impacto da pandemia tem de ser medido pelo reconhecimento das desigualdades”, afirma a socióloga, educadora e atualmente coordenadora adjunta da Ação Educativa Ednéia Gonçalves, 56 anos, em entrevista à Ponte. Para ela, a “exclusão já existia” e fica mais evidente agora.
O debate do prejuízo para os estudantes por causa do necessário isolamento ganhou corpo nas últimas semanas por causa do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), uma das formas de acesso ao Ensino Superior. Uma grande campanha tomou as redes sociais com o pedido de adiamento das provas e a hashtag #AdiaEnem justamente porque o atual momento impede que haja uma preparação equânime entre todos os inscritos.
O ministro da Educação Abraham Weintraub tinha um entendimento de que a prova teria que ser aplicada na data prevista, inclusive mantendo o calendário de inscrições que seguem abertas até a próxima sexta-feira (22/5).
No entanto, nesta terça-feira (19/5), o Senado votou pelo adiamento do exame e, nesta quarta-feira (20/5), o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) confirmou que as provas serão realizadas “de 30 a 60 dias” depois do previsto. “Eu acho muito bom ter adiado, mas a pressão tem que continuar porque ainda não está muito claro. Adiado para quando?”, questiona Edinéia.
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“A gente está vivendo com essa angústia, com esse desespero do jovem que, nesse momento, precisa cuidar da sua saúde, mas está preocupado em como vai participar do Enem”, destaca.
Não apenas o Enem, quanto a própria manutenção de provas de avaliação e calendários nas mais diversas instituições de ensino, têm sido objeto de críticas porque escancaram a desigualdade social no país. “A primeira coisa que precisamos pensar é quais são os sujeitos, as pessoas envolvidas nos processos educativos, para pensar quais são as necessidades, para que possamos garantir o direito à educação com qualidade. A educação é um direito humano”, pontua.
Confira a entrevista:
Ponte – Como é possível exigir o cumprimento de conteúdos online se milhões de brasileiros nem tem computador em casa ou mesmo internet? É bem comum, na quebrada, por exemplo, o jovem ir a um boteco pegar o wi-fi por não ter internet sem fio em casa.
Ednéia Gonçalves – O impacto da pandemia tem de ser medido pelo reconhecimento das desigualdades. A desigualdade social e racial devem ser o ponto central para a tomada de decisão e todas as recomendações. As decisões que foram tomadas até agora desconsideraram a participação da comunidade escolar. Se a gente não pensar que a comunidade é quem define o acesso ou não acesso, as tomadas de decisões e o calendário, a gente não avança muito. Outra coisa é achar que a educação a distância substituiu a educação presencial. É uma falácia muito grande o que estamos chamando de EAD (Ensino a Distância). O que a gente tem percebido na periferia é que não é só a dificuldade em acessar mídia porque você não tem uma rede boa de internet em casa. A gente está num período muito anterior, as casas não têm saneamento básico, não tem celular individual com banda larga ou plano de internet. Várias casas têm um celular no máximo. Muitas famílias não tem acesso ao conteúdo. A primeira coisa que precisamos pensar é quais são os sujeitos, as pessoas envolvidas nos processos educativos, para pensar quais são as necessidades, para que possamos garantir o direito à educação com qualidade. A educação é um direito humano. A desigualdade é que impõe os impactos da pandemia. As recomendações da saúde, da vigilância sanitária, elas também têm que atender os fundamentos dos direitos humanos. O território é determinante para todas as tomadas de decisões e sem a participação da comunidade escolar isso não acontece.
Ponte – Quais os impactos no processo de aprendizagem, se considerarmos realidades muito complexas e distintas, onde, por exemplo, moram 10 pessoas em uma casa de dois cômodos e o estudante não consegue ter um local adequado para desenvolver os estudos?
Ednéia Gonçalves – Se você pensar que todas as pessoas têm um ambiente, um mobiliário, um equipamento determinado para que você consiga produzir conhecimento e ter acesso à informação e dialogue, você está num mundo de fantasia. Essa não é a realidade da maioria das pessoas no Brasil e, principalmente, em São Paulo. A escola é parte da sua comunidade e interage ao ambiente externo dela. Casas com um ou mais cômodos, sendo parte dela destinada a alimentação, com diferentes faixas etárias dentro de um mesmo ambiente, e um ambiente que se organizada dentro das suas necessidades. É muito cruel a gente pensar que os estudantes vão ter as condições necessárias. Não existe estudo com silêncio, porque a dinâmica familiar é diferente. Os problemas não são as famílias. Não se pode culpabilizar as famílias por viverem em condições de desigualdade social. A gente precisa começar a ver que o ambiente é determinante para que você possa ter esse tempo determinante de estudo. Tem um monte de gente tentando improvisar para dar conta de uma demanda educacional, mas é uma ilusão. A escola tem por função dialogar com a vida real. Não tem como a gente achar que essas condições são igualitárias. A exclusão já existia antes.
Ponte – Gostaria de falar sobre sociabilidade. Como isso impacta também no desenvolvimento, seja da criança no início da vida escolar, seja no adolescente que já está no ensino médio e pensando na carreira que quer seguir?
Ednéia Gonçalves – Você tem que pensar que as demandas das modalidades e dos níveis também difere. Você não entra em uma casa que só tem crianças e adolescentes da mesma idade. A casa é viva, ela está o tempo todo com diversos integrantes. No caso infantil, você tem que estar ligado no educar, cuidar e brincar. A gente precisa investir no isolamento como forma de prevenir, mas você tem criança pequena que demanda cuidado e brincadeira. É preciso ter uma rede de proteção que cuida não apenas da necessidade da educação, mas do cidadão, já que outras demandas estão acontecendo dentro de casa. Eu tenho visto coletivos de jovens, coletivos do movimento negro fazendo um trabalho interessante, mas muito solitário. Quando aparece proposta de escuta por parte do Estado é muito distanciado. O que a gente tem que pensar que o jovem que está em casa agora já era um jovem desempregado, com uma imensa dificuldade de conciliar o estudo, principalmente para o negro, que tem que lidar com a questão da violência. O jovem está sem possibilidade de construir. Na escola ele se expressa, tem o conhecimento da cultura. Sem esse momento na rotina dele, em que ele pode dedicar a energia para a possibilidade de criar e sem professor presencial, é muito complicado. Dentro de casa é que ele não vai conseguir traçar uma trajetória de aprendizagem coerente do que a gente pensa para um currículo. O que está passando na cabeça dele é que está perdendo tempo. O jovem que está dentro de casa hoje também tem as demandas de cuidado, que está sendo assumido pelas mães chefe de família. Sair numa rua deserta hoje, um jovem negro mascarado, ele sabe o risco que corre. As demandas de educar, de cuidar e de socializar os jovens também carregam.
Ponte – E a questão do EJA, o educação de jovens e adultos?
Ednéia Gonçalves – Já estava há muito tempo sendo desmobilizada. O ensino noturno já estava desde o início do ano bem reduzido. A educação dos jovens e adultos também é um direito de educação de qualidade ao longo da vida. A gente tem que pensar que um adulto dentro de casa não tem tempo de se aprimorar. Estar dentro de casa em cumprimento do isolamento tem um impacto muito desigual para essas comunidades. Essas necessidades reais não têm sido consideradas nas tomadas de decisões pelo poder público.
Ponte – O Enem é a principal via de ingresso em universidades públicas. O MPF chegou a dizer que manter o exame na data prevista “viola a constituição”. Nesta quarta-feira, houve o anúncio do adiamento. Como você avalia essa decisão?
Ednéia Gonçalves – Eu acho que a pressão valeu a pena, com certeza. Uma reação, principalmente dos movimentos sociais e dos cursinhos para vestibular. Foi uma reação bem ampla e nacional. Eu acho muito bom ter adiado, mas a pressão tem que continuar porque ainda não está muito claro. Adiado para quando? A lógica diz que tem que adiar. Interromper o processo foi uma vitória. Quando você da voz aos principais interessados, os estudantes da periferia, você consegue resultado. A gente não pode esquecer que essa pressão ocorreu dentro de uma pandemia. Manter o Enem seria considerar o jovem autodidata, porque o que está se falando é que se você não conseguir é um fracassado, não se preparou. Estamos há três meses sem aula e sem perspectiva, e você diz que o Enem não tem a função de combater a desigualdade. Tem, sim. O ano de 2020 os estudantes não tiveram direito a carga horária e conteúdo previsto e no final do ano você vai colocar todas as pessoas num processo de avaliação, que tem vários questionamentos, mas que pode ser decisivo para aquele acesso ao Ensino Superior. Você está dizendo que é um ano típico. Esse ano não é normal. Não temos o processo educacional normal. Não temos tempo para construir condições ideais e igualitárias. Como os estudantes vão se preparar? Não está escrito que o Enem é um espaço para o autodidata mostrar tudo que aprendeu sozinho. A gente está vivendo com essa angústia, com esse desespero do jovem que, nesse momento, precisa cuidar da sua saúde, mas está preocupado em como vai participar do Enem. É maior violência no período da pandemia no tocante da educação. É o que explicita a violência e a desigualdade. É muito triste essa violência que está acontecendo.
Ponte – Quais as soluções possíveis no curto e médio prazo para diminuir esses impactos na educação diante da pandemia?
Ednéia Gonçalves – A primeira coisa a ser feita é a abertura dos canais de escuta e participação. Esses canais entre o governo e as comunidades devem servir como ponto para a tomada de decisões. Sem a participação das organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais não tem como a real das necessidades educacionais serem realmente percebidas. É necessário saber como está sendo produzido o conteúdo, a mediação a distância. Não é substituir o presencial pelo a distância, é saber como os professores estão sendo preparados. Que tipo de pesquisas estão sendo produzidas? O meu grande receio é que toda essa denúncia que tem sido feita sobre as desigualdades não vire um grande elemento para pensar o futuro da educação. Quando eu penso no curto prazo é no levamento das demandas das comunidades. É levantar o que precisa ser feito para a proteção das vidas das pessoas em todos locais, considerando que essas pessoas estão dentro de casa ou não. Construir o estudo, gravar uma aula e pensar que todas as pessoas estão acessando esse conteúdo, a gente já viu que não é verdade.
Ponte – E para reduzir, por exemplo, o abismo de condições para prestar provas de vestibular, Enem, entre outros, o que seria adequado? Criar parâmetros de rendimento diferenciados para gerar um grau mais equânime de competição?
Ednéia Gonçalves – Construir um processo qualificado de educação em todos os níveis. Você garantir cursos de escolarização que dão possibilidade de articular conhecimento da ciência, territórios e cultura. A necessidade de ampliar as oportunidades de inovação. Você ter acesso a diferentes manifestações culturais, sarau, slam, museu, dialogar sobre isso na escola, ter internet acessível. Ou seja, dar oportunidade aos estudantes terem acesso a múltiplas situações. Eu acho que a gente construir processos de educação que considerem o território e que passem para a escola que sua função é construir. A gente consegue produzir aprendizados interessantes. A escola pública brasileira tem construído coisas muito interessantes. A escola precisa escutar os estudantes, suas descobertas durante o período. As novas demandas para pensar como é que a gente vai construir essa nova escola acessível e de qualidade para todos. Essa é minha expectativa em relação ao futuro. Se não passar por isso a gente retrocede muito mais. Se passar e não tomar atitude é você pactuar com a discriminação e desigualdade social.