Testemunha afirma que tiro que atingiu Kauan, de 16 anos, foi próximo ao CEU Paraisópolis, onde policiais fariam segurança das urnas na véspera das eleições, em outubro de 2022; um ano depois, investigação ainda não descobriu autor
A manicure Celiane Gomes dos Santos, 35, lembra que seu filho mais velho tinha o sonho de logo completar 18 anos para tirar a habilitação e conseguir comprar sua própria moto. No dia 1º de outubro de 2022, ele foi comemorar o primeiro dia de trabalho como auxiliar de um lava-rápido com um amigo no bairro de Paraisópolis, na zona sul da cidade de São Paulo, não muito longe de onde morava. “Ele foi dar um passeio e não voltou mais para mim”, lamenta.
Kauan Gomes Araújo, de 16 anos, foi baleado pelas costas quando estava na garupa da moto do seu amigo, que vamos chamar de Renato, 20, ao transitarem pela Avenida Hebe Camargo. Segundo o prontuário do Hospital Municipal do Campo Limpo, o tiro atingiu a região cervical e perfurou o pescoço do menino. Desde então, a Polícia Civil ainda não identificou quem fez o disparo.
De acordo com Renato, em depoimento ao 89º DP (Jardim Taboão), por volta das 23h, ele e Kauan estavam dando voltas e empinando a moto pelas ruas do bairro. Quando passaram em frente ao Centro Educacional Unificado (CEU) Paraisópolis, ele conta que “ouviu um barulho que aparentava ser de disparo de arma de fogo” e “sentiu que Kauan estava caindo”.
Renato afirma que tentou reduzir a velocidade para tentar segurá-lo, mas não conseguiu, e Kauan acabou caindo próximo ao meio fio, na mesma calçada do CEU. Ele disse que iria retornar para acudí-lo, “mas percebeu que os policiais que estavam fazendo a segurança do CEU estavam se aproximando”. Como Renato não tinha habilitação para dirigir e por ter ouvido esse barulho que parecia ser tiro, ficou com medo, deixou o local e foi até a casa de Celiane para contar o que havia acontecido.
Por volta de umas 23h20, Celiane chegou ao local e Kauan já estava sendo resgatado pelo Corpo de Bombeiros. “Eles não deixaram eu chegar perto dele. Eles levaram meu filho e eu não pude ir junto com ele por ele ser menor de idade. Não me deixaram pegar as coisas dele. Sumiram com as coisas dele. Ele entrou na ambulância com roupa e no [hospital] Campo Limpo não tinha nenhuma roupa dele lá, me devolveram só o sapato”, lembra.
No boletim de ocorrência, o caso está registrado como homicídio de autoria desconhecida. Nele, consta que os soldados Jessica Lima Rocha e Paulo Sergio de Oliveira Junior foram acionados via rádio sobre uma ocorrência em que “indivíduo que estaria supostamente empinando moto e acabou caindo e na queda machucou a cabeça”, na Avenida Hebe Camargo, na altura do número 100. Ao chegarem ao endereço, já havia uma unidade de resgate do Corpo de Bombeiros, que levou a vítima ao Hospital do Campo Limpo, mas não resistiu.
No documento, é informado que uma outra viatura ficou preservando o local enquanto os soldados foram até o 89º DP comunicar o que havia acontecido. O delegado Marcelo Emboava pediu perícia para o local e o encaminhamento do corpo de Kauan, que estava no hospital, ao Instituto Médico Legal (IML).
No local, a perícia apenas indicou a região onde a vítima tinha caído, pois estava manchada de sangue, e alguns objetos como boné e óculos que foram apreendidos. Celiane e Renato foram ouvidos no dia 5 de outubro da mesma semana.
Dali, o caso passou para o delegado Rogerio Zuim Uehara, da mesma delegacia, e a determinação para que os investigadores buscassem câmeras de segurança na região só foram feitas a partir de janeiro de 2023. Em 7 de março, o investigador Ricardo Augusto Ferreira informou que foi até o endereço do crime e conversou com moradores da região que, por sua vez, “não souberam informar sobre o fato”. Também escreveu que conversou com vizinhos em buscas de câmeras de monitoramento, mas “devido ao lapso temporal, não havia gravações salvas que pudessem auxiliar nas investigações”.
O relatório final do delegado tinha apenas essas informações e foi enviado desta forma para o Ministério Público estadual em 24 de agosto. A pedido do promotor Neudival Mascarenhas Filho, o caso foi enviado para o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, “para que as investigações sejam aprofundadas, visando ao esclarecimento do crime (motivação etc.) e respectiva autoria”.
Com isso, desde 14 de setembro não há movimentações no inquérito digital, o que só causa cada vez mais angústia para Celiane, que tem tido dificuldades até para sair e trabalhar, por ser autônoma, e ter que cuidar dos outros três filhos pequenos. “Eu vivo do jeito que dá. Um dia tá bom, no outro tá mais ou menos, no outro tá pior. E assim vai. E sem resposta, né? Que é o pior de tudo. A gente vive um dia de cada vez e não tem resposta”, lamenta.
Ela tem convicção de que o tiro partiu de algum policial que pudesse estar no CEU. “Meu filho não estava fazendo nada de errado. Eu tenho comigo que foi um desses policiais que estava no CEU porque [por] qualquer coisinha a polícia já atira pra matar”.
Até o momento, a investigação da Polícia Civil não considerou buscar por policiais ou outros agentes de segurança pública que estivessem fazendo a custódia das urnas no CEU. O equipamento público comporta unidades de educação infantil, ensinos fundamental e técnico como locais de votação no bairro de Paraisópolis, conforme consulta ao site do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP).
É praxe agentes da segurança pública, como policiais e guardas civis, participarem do apoio logístico, por meio do transporte, e da custódia das urnas na véspera das eleições. No relatório do delegado Rogerio Uehara não consta nenhum pedido de informações sobre o assunto para a Polícia Militar nem para o TRE-SP.
Enquanto isso, a manicure tem sido acompanhada pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, em encontros de mulheres que perderam vítimas para a violência policial, e orientação jurídica da coordenadora de incidência do Instituto de Referência Negra Peregum, Agatha Miranda.
“Muitas famílias, muitas mães estão passando pelo mesmo que eu estou passando agora nesse momento. E eu acho que quanto mais a gente denunciar, a gente falar, eles [o Estado] têm que tomar alguma providência, têm que chegar em algum lugar”, afirma Celiane.
O que diz a polícia
A reportagem procurou a Secretaria de Segurança Pública em duas oportunidades: a primeira em novembro para saber se havia apuração do caso, cuja resposta tinha sido de que o inquérito foi “encaminhado ao Ministério Público e Poder Judiciário em agosto deste ano” e que “Demais questionamentos devem ser solicitados à Justiça”.
Após termos acesso ao inquérito, questionamos sobre as diligências terem se iniciado em janeiro deste ano e não terem sido buscadas informações sobre policiais que poderiam estar realizando segurança das urnas. Até a publicação, não houve resposta.
O que diz o TRE-SP
A Ponte questionou se o tribunal poderia confirmar se policiais realizavam a segurança das urnas no CEU e se detinha a relação dos nomes. A assessoria encaminhou a seguinte nota:
A Justiça Eleitoral paulista firma parcerias com as forças policiais, especialmente a Polícia Militar, para o auxílio na segurança dos locais de votação na véspera e no dia do pleito. No entanto, o controle e escala dos agentes designados para cada local de votação é de competência do órgão policial.
Reportagem atualizada às 15h57, de 5/12/2023, para incluir resposta do TRE-SP.