ADPF das Favelas tem reviravolta, e STF diz que segurança do Rio saiu de ‘estado inconstitucional’

    Corte encerrou nesta quinta-feira (3/4) julgamento da ADPF das Favelas, ajuizada em 2019 para conter letalidade policial. STF diz não ver mais estado de coisas inconstitucional na segurança do Rio e pede plano para “recuperar territórios”

    Discussão da ADPF, que cinco anos atrás começou buscando reduzir a alta letalidade policial, conclui sua tramitação falando agora em “recuperar territórios” | Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

    Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou nesta quinta-feira (3/4), depois de mais de cinco anos de tramitação, o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das Favelas”. O caso teve uma reviravolta no voto do relator, o ministro Edson Fachin, que agora diz não mais existir um estado de coisas inconstitucional na política de segurança pública do Rio de Janeiro. O entendimento dele foi acompanhado por unanimidade pelos demais ministros.

    O novo voto de Fachin passou a prever que o governo do Rio crie um plano para “recuperar territórios” sob influência de facções e milícias — o que é visto como um retrocesso por movimentos sociais, por reforçar um estigma de guerra às drogas e de necessidade de ocupação militarizada das comunidades.

    Leia mais: Artigo | A ADPF das Favelas e a luta por uma perícia independente e autônoma

    O STF ainda determinou que a Polícia Federal (PF) seja acionada para investigar crimes com repercussão interestadual e internacional ocorridos no Rio. Além disso, a corte reviu, em termos propostos pelo relator, uma determinação para que fosse criado um comitê com participação da sociedade civil para acompanhamento da letalidade policial no estado — a ordem agora é para que seja feito um grupo de trabalho sob comando do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

    Revisão do estado inconstitucional

    Em fevereiro, Fachin havia lido uma primeira versão de seu voto, ocasião em que reconheceu avanços na redução da letalidade policial no Rio, tema prioritário da ADPF das Favelas, mas cobrou novas medidas, por entender persistir um estado inconstitucional na segurança fluminense.

    O julgamento foi então suspenso apenas com o parecer do relator e só foi retomado quase dois meses depois com uma revisão do voto dele, feita a partir de reuniões a portas fechadas entre os ministros — na semana passada, uma sessão que trataria da ADPF das Favelas acabou suspensa.

    Leia mais: Fachin ordena medidas para reduzir violência policial em julgamento de recurso da ADPF das Favelas no STF

    O entendimento do STF agora é outro: segundo o Fachin, as medidas necessárias para adequar a atividade policial no Rio estão sendo tomadas, embora o Estado esteja longe do que o magistrado chamou de “ideal constitucional”. “Por isso, a Corte entende que deve ser afastada a declaração de estado de coisas inconstitucional e que se deve reconhecer o compromisso significativo do Estado do Rio de Janeiro”, afirmou o relator.

    Plano de redução da letalidade policial

    A ADPF das Favelas foi ajuizada pelo PSB em 2019 para que fossem adotadas medidas contra as mortes cometidas pelas polícias — que afetam especialmente a população negra e das comunidades. Ainda em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) já havia sentenciado o Estado do Rio a elaborar metas e políticas de redução da letalidade policial, em desdobramento do caso Favela Nova Brasília, de 1994, em que três jovens foram vítimas de violência sexual e outras 26 pessoas foram mortas por policiais. O descumprimento daquela sentença também foi tema central da ADPF.

    No andamento da ação, Fachin havia determinado que o Estado do Rio elaborasse um plano para reduzir as mortes por policiais, decisão confirmada pelos demais ministros posteriormente. Em seu voto revisto, o relator manteve a decisão para que fosse reconhecida apenas a homologação parcial do plano. Para que o documento seja plenamente homologado, ele terá de contemplar novos indicadores sobre o uso excessivo da força e a publicização de dados desagregrados sobre ocorrências policiais com mortes.

    Plano de territórios remete a UPP

    O voto revisto de Fachin frustrou movimentos sociais e entidades de defesa dos direitos humanos que acompanham a ação desde o princípio. Para Fransérgio Goulart, coordenador executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), a ideia de “recuperar territórios” alardeada pelo STF remete ao projeto fracassado das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), iniciado sob o mesmo pretexto em 2008, mas que acabou imerso em episódios de violência policial e corrupção.

    “O plano de redução da letalidade virou um plano de ocupação de favelas. Temos esse histórico. Pedimos controle externo, e não controle territorial”, diz o pesquisador, lembrando que o prefeito carioca, Eduardo Paes (PSD), é entusiasta da UPP e foi mencionado pelo presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso.

    Leia mais: Fachin vê avanços do Rio contra letalidade policial, mas amplia exigências na ADPF das Favelas

    Fransérgio também cita como motivo de insatisfação a negativa do STF ao pedido para que o Estado do Rio se abstenha de usar helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror. Na leitura de seu novo voto, Fachin disse que o Judiciário deve exercer o controle posterior das atividades policiais, sem competência para definir, previamente a uma operação, qual armamento ou contingente deve ser utilizado. “É um absurdo. Somos violados, e só depois vem a justiça”, diz o coordenador do IDMJR.

    Secretária-executiva do Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro (FPOPSEG), entidade do qual o IDMJR faz parte, a advogada popular Rhaysa Ruas endossa a crítica: “É preocupante que a polícia tenha licença do Estado para seguir matando nas favelas e nas periferias, e que o controle dela fique em segundo plano, que as operações possam ocorrer desde que depois sejam justificadas”, afirma.

    Ainda segunda Rhaysa, a decisão do STF ao final da ADPF das Favelas expõe uma lógica de segurança pública voltada para a guerra. “É algo preocupante esse fortalecimento das polícias e a diminuição do controle, que poderia ter sido nessa oportunidade histórica pela STF, em substituição a essa expansão da Polícia Federal e dessa lógica de ocupação territorial.”

    No voto que obteve consenso do STF, Fachin também determinou que, em ocorrências com mortes, os próprios policiais terão de preservar a cena até a chegada de um delegado e da perícia — era uma demanda do FPOPSEG uma perícia independente dos marcos policiais. Nessas ocasiões, o Ministério Público estadual (MP-RJ) ainda terá de ser comunicado, conforme definir um protocolo próprio a ser elaborado junto à Secretaria de Segurança Pública do Rio (SSP-RJ).

    O governo estadual também terá de elaborar um regramento para o afastamento da atividade ostensiva de policiais que tenham se envolvido em ocorrências com mortes.

    ADPF determinou usou de câmeras

    Nos mais de cinco anos de tramitação da ADPF das Favelas, Fachin havia proferido uma série de decisões para conter a letalidade policial no Rio. Em 2020, ainda no início da pandemia de Covid-19, ele determinou a suspensão de operações policiais no estado, restringindo a ocorrência delas a casos excepcionais, mediante prévio aviso ao Ministério Público estadual, órgão ao qual cabe o controle externo da atividade policial.

    O relator da ação também ordenou que as fardas dos policiais passassem a ter câmeras e equipamentos de geolocalização (GPS). Além disso, as viaturas das forças de segurança, incluindo as de equipes especializadas, como Bope e Core, tiveram de passar a contar com gravação em áudio e vídeo. O ministro ainda restringiu o uso de helicópteros, medida da qual voltou atrás no encerramento da ação, e a realização de operações próximas de escolas, creches, hospitais ou postos de saúde, também mediante supervisão do MP-RJ.

    Leia mais: PM matou uma a cada três crianças e adolescentes vítimas de mortes violentas em SP

    O governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL), foi um crítico constante das medidas tomadas no âmbito da ADPF 635, sob a alegação de que elas teriam limitado a atividade policial ostensiva. Uma análise publicada pelo MP-RJ em maio do ano passado, no entanto, identificou que, do início de 2021 ao final de 2023, o número de operações policiais no estado aumentou, ao passo que a letalidade policial diminuiu.

    Ainda no estudo, o Ministério Público vinculou essa mudança justamente à ação no STF: “Os padrões observados não apenas indicam uma relação mais clara entre a evolução da ADPF 635 e a diminuição da letalidade da ação policial, mas também sugerem um possível ganho de eficiência e aprimoramento nos sistemas de registro das operações, destacando uma tendência promissora em direção a práticas mais transparentes e responsáveis no contexto do controle externo da atividade policial”.

    Redução da letalidade policial

    Em 2021, um estudo do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), concluiu que, só em 2020, 288 vidas foram poupadas por contas das restrições às operações policiais. Já segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as mortes decorrentes de intervenção policial no Rio caíram 52% de 2019 a 2023, indo de 1.814 para 871 registros.

    No início deste ano, um relatório global da organização internacional de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) atribuiu a queda da letalidade policial no Rio à atuação do STF.

    Na sessão anterior da ação, Fachin havia contextualizado no início de um longo voto que as medidas já tomadas no âmbito da ADPF não proibiram a atividade policial, mas pretenderam regulá-la dentro da legalidade. O ministro citou que, durante a tramitação do caso, não só a letalidade policial no Rio caiu, mas também os números de policiais mortos e das ocorrências de crimes como roubos e homicídios dolosos, evidências que desmontam o mito de que uma polícia mais letal traria mais segurança.

    O ministro havia afirmado reconhecer o empenho de policiais, ponderando que a atuação dentro da legalidade é justamente o que sustenta a confiança da sociedade nas forças de segurança e viabiliza o trabalho delas. Já o controle social pela violência, segundo ele, geraria apenas um ciclo de violência.

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