Alongamento, achocolatado, fogueira, droga: serve de tudo para morador de rua espantar o frio

Durante noite e madrugada mais fria dos últimos cincos anos, reportagem percorreu de Parelheiros até a Sé para ouvir relatos sobre como a população em situação de rua se aquece em São Paulo. “Muitas vezes estamos tão calejados que nem sinte a dor do frio”, diz homem que mora nas ruas há 8 anos

Névoa se forma na Estrada Engenheiro Marsilac, no extremo da zona sul | Foto: Annavi / Ponte

Viver nas ruas de São Paulo não é uma tarefa fácil. Além dos riscos das grandes cidades, como violência, que incluiu ações truculentas por parte dos braços armados do governo, doenças e outros males, o inverno potencializa outro medo invisível: o frio, o mais rigoroso dos últimos cinco anos, segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), que registrou 4,3°C, em Santana, zona norte.

Numa noite e madrugada em que os termômetros, dependendo do bairro, oscilavam entre 2°C em Parelheiros, no extremo da zona sul, e 7°C na Praça da Sé, no centro, cada morador em situação de rua tinha que dar seus pulos para se esquentar e ter a chance de ver o sol brilhar, mesmo que timidamente, na manhã seguinte.

Para entender como uma parte das pessoas sem-teto fazem para se aquecer durante o inverno, a Ponte percorreu regiões periféricas mais próximas à Serra do Mar para saber um pouco da vida daqueles que permanecem nos bairros, evitando morar mais próximo ao centro, onde a oferta de albergues ou doações, em tese, são mais significativas.

Eram 22h30 quando a reportagem chegou à Praça Julio Cesar de Campos, em Parelheiros. Sob um frio de 2°C indicado pelo termômetro do veículo que conduzia a equipe, um cobertor e dois cachorros protegiam um homem. O morador de rua estava deitado junto à parede da Igreja Santa Cruz. Após ser chamado e não responder e com o avanço dos cães, a reportagem se retirou e decidiu seguir por ruas de Parelheiros e Colônia, mas não encontrou outras pessoas vivendo em situação de rua.

Já no caminho de volta para o centro, no Terminal Varginha, distante cerca de nove quilômetros da paróquia, onde a temperatura aferida era 1°C maior, um homem estava com apenas a cabeça para fora de seu barraco formado por lonas e tapumes. Logo, se apresentou como Fabiano de Oliveira, 37 anos, quatro anos vivendo nas ruas, sempre naquele local. Questionado sobre como faria para se proteger da tão esperada noite e madrugada mais fria do ano, disparou: “Eu fico me estalando, alongando. Fumo pedra para dar uma aquecida”. Em uma das mãos segurava um cachimbo.

Fabiano Oliveira conta que se alonga para espantar o frio que ronda o Terminal Varginha | Foto: Annavi / Ponte

Segundo ele, naquele espaço, onde se podia ver outros barracos, moram 12 pessoas, entre casais e solteiros. “Alguns estão dormindo e outros no corre”.

Já é quase meia-noite e entre alguns passageiros que deixam à estação de trem e o terminal Grajaú, também na zona sul, em uma travessa da Avenida Dona Belmira Marin, está Pedro Henrique, 31, que há oito anos mora nas ruas de São Paulo. Vestindo um moletom, ele tinha a seu lado um colchão e alguns objetos espalhados por sobre um pano no chão. Eram utensílios para o uso de crack. Ao ser questionado sobre o frio, ele sugere um resumo: “Quem mora nas ruas e é usuário de drogas, como eu, muitas vezes está tão calejado que nem sente a dor do frio”.

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Durante a rápida conversa ele pergunta se a equipe tem água. Após a resposta afirmativa, ele mata o líquido em apenas uma golada, em fração de segundos. Quando a reportagem já deixava o local, ele contou feliz a benfeitoria que havia feito um dia antes. “Ontem eu vi uma pessoa andando descalça, dei uma sandália para ela não sentir a dor do frio”.

A temperatura vai subindo de grau em grau conforme a mata e proximidade com o litoral vai ficando mais distante e a reportagem se aproxima do centro. O relógio bate quase uma da manhã, quando, nos baixos do Viaduto Onze de Junho, em Indianópolis, bairro abastado da zona sul, um grupo de pessoas busca se aquecer em volta de uma pequena fogueira.

Entre eles está a carroceira Lucilene Pereira, 38, uma espécie de liderança entre as cerca de cinquenta pessoas que vivem sob o viaduto que serve de sustentação à Avenida Rubem Berta, uma das vias que compõe a ligação Norte-Sul. Sem se afastar das labaredas, ela narra como sobrevive no inverno. “Sempre vem uma sopa. Fora isso, é entrar para a barraca e se aquecer em casa”, apontando para sua barraca de lona, uma das muitas entre tantas espalhadas por ali.
A mulher afirmou que está na rua há sete anos e que ali, além dela, estão seus cinco filhos, com idade entre 21 e 10 anos. Durante a conversa, ela fez um apelo para quem puder ajudar. “Precisamos de mais barracas e de duas TVs de tubo para que as crianças possam ter onde assistir televisão”.

A conversa é interrompida quando um carro chega na rua. Todos que ali estão correm em direção ao motorista na expectativa de doações. Logo, uma mulher desce do veículo com uma caixa de papelão e um cooler. São carrochos-quentes e achocolatados, que são aceitos na hora pela população de rua. A boa ação é coordenada pela analista financeira Sueli Marques, 50, que deixou sua residência, na região do Cursino, junto a seu filho e um casal de sobrinhos para ofertar alimentos aos sem-tetos. “A gente vem sempre nessa época distribuir cobertor e sopa”.

Analista financeira Sueli Marques e seus familiares entregam lanches e bebidas nos baixos do Viaduto Onze de Junho | Foto: Annavi/ Ponte

Sueli seguiu São Paulo afora para distribuir os lanches que sobraram. No total, eram cerca de 100 lanches e 100 achocolatados.

São quase duas da manhã quando um grupo de mulheres e crianças estão na Praça da Sé, quase na esquina com a Rua Direita. As crianças correm para espantar o frio, enquanto as mulheres contam as doações recebidas naquela noite. Cristiana Alessandra, 40, diz que está desempregada e que mora em uma ocupação na Mooca, zona leste. Sem renda, ela vai todos os dias até a Sé em busca de doações para se alimentar e se vestir. Naquele dia, havia chegado às 16 horas. No entanto, ela cita que o frio também congela quem mora onde vive. “Nosso barraco de madeira não tem teto. O teto é só do galpão. No frio é como se estivéssemos na rua”. No momento da chegada da equipe, quase não haviam sem-tetos perambulando pela Sé, com sua grande maioria dentro de suas barracas ou dormindo no chão envoltas a cobertores.

Cristiana (ao centro) e suas amigas moram com os filhos em uma ocupação, mas vão todos os dias `Sé para pegar doações | Foto: Annavi/Ponte

Enquanto diversos ratos de várias cores e tamanhos que já fazem parte do cotidiano da Praça da Sé transitavam de um lado para o outro, a mulher explicou que estava tomando coragem para seguir a pé até o Terminal Parque Dom Pedro II para voltar para a casa junto a duas amigas e outras seis crianças entre doze e quatro anos. Para isso, ainda teria que contar com a ajuda de um motorista em aceitar dar carona para o grupo, que estava sem dinheiro.

Mortes

Desde o início do inverno, no final de junho, foram contabilizadas 16 mortes de moradores em situação de rua, de acordo com o levantamento do Movimento Estadual da População em Situação de Rua, presidido por Robson Mendonça.

As mortes, no entanto, esbarram em diversas situações para que o frio seja confirmado como a causa, uma vez que, para especialistas, tal situação potencializa outras comorbidades que o morto já possuía, como doenças cardíacas e respiratórias

Diante do quadro, Robson coloca as mortes na conta do poder público pela “falta de políticas públicas para a população em situação de rua”. O último Censo da Popualçao em Situação de Rua, elaborado pela Prefeitura em 2019 e divulgado em 2020, apontava cerca de 25 mil moradores de rua em São Paulo, número que pode ser maior devido ao desemprego na pandemia.

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As duas últimas mortes que o movimento coloca na conta do frio viraram boletins de ocorrência. Segundo a Secretaria da Segurança Pública, uma mulher, de 44 anos, foi encontrada morta, às 08h55 de quinta-feira (29/7), na Rua Alziro Pinheiro de Magalhães, esquina com a Avenida Dona Belmira Marin, no Grajaú. O documento aponta que policiais militares foram acionados para atender a ocorrência e, ao chegarem ao local, um campo de futebol, encontraram a vítima caída sem sinais de violência. Uma equipe do Samu foi acionada e constatou o óbito. O caso foi registrado pelo 85º DP (Jardim Mirna).

A outra vítima foi identificada como Flávio Bastos, um idoso de 65 anos, encontrado por volta das 23 horas de quarta-feira (28/7), na Rua Araguaia, no Pari, região central. O boletim de ocorrência também informa que não havia sinas de violência na vítima.

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A prefeitura de São Paulo foi procurada, mas não se pronunciou sobre a morte de moradores de rua.

Também questionado, o Ministério Público respondeu que “não houve instauração de procedimento para investigação específica das mortes na Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da capital. Existe procedimento de acompanhamento e monitoramento das políticas públicas implementadas, todos os anos, entre maio e outubro”. O texto segue afirmando que, “no âmbito desse procedimento, a Promotoria pediu informações à Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social a respeito de quantos óbitos foram registrados dentre pessoas em situação de rua desde a implantação da Operação Baixas Temperaturas, nas vias públicas da capital, neste ano de 2021”. O relato, no entanto, não informa se a prefeitura respondeu ao questionamento.

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