‘Uma costela ajuda a outra’: moradores de rua de SP tentam espantar o frio e sobreviver

    Pessoas em situação de rua dizem que dormem juntas para espantar o frio; Presidente de movimento da população de rua conta que 12 pessoas morreram devido à baixa temperatura na capital paulista nesta semana

    Durante entrevista Andreia estava arrepiada de frio | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    A cidade de São Paulo vem registrando baixas temperaturas deste terça-feira (29/7), algumas delas beirando os 6°C. Enquanto algumas brincadeiras rolam nas redes sociais, como a ausência de banho para não congelar ao sair do chuveiro, a população que vive nas ruas dá seu jeito para se proteger frio. Mais de 24 mil pessoas moram nas ruas da capital, segundo censo divulgado pela prefeitura no ano passado.

    Durante o final da tarde desta quinta-feira (1/7), enquanto alguns termômetros marcavam 10°C, algumas famílias que vivem na região do Campo Belo, zona sul, estavam juntas em meio a barracos cobertos por lona e barracas de camping para se proteger da friagem, que, segundo presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo Robson Mendonça, foi a responsável pela morte de ao menos 12 pessoas na última semana. Tal confirmação é difícil de ser obtida, uma vez que o corpo precisa ser analisado por peritos do Serviço de Verificação de Óbitos ou Instituto de Médico Legal, que vez ou outra encontram outras doenças nas vítimas, tratando o frio como um potencializador para a morte.

    Assim da chegada da reportagem à Avenida Antônio de Macedo Soares pode notar mulheres e crianças. Uma das moças, ao longo da conversa, cruzou os braços e demonstrava estar com frio, com a pele arrepiada, já que usava uma fina camiseta. Ao ser questionada, disse que chegou ao local há um ano e meio, após o barraco em que morava na região do Jardim Ângela, periferia da zona sul, obter classificação de risco para desabamento. No local desde o início da pandemia, Andreia*, informou que vive no local com o filho de seis anos, que a ajuda a espantar o frio.

    “É horrível, a gente quer ter a nossa casa. Uma costela ajuda a outra. Ainda bem que tenho minha costelinha”, disse, apontando para o filho.

    Andreia, que tem 30 anos, ainda disse ser grata as pessoas que passam e ajudam as cerca de 20 pessoas que vivem ali, sendo nove crianças. “Não é fácil morar na rua, mas ainda bem que temos o privilégio de ter gente que ajuda, mas mesmo assim não é fácil não”.

    Ao seu lado estava outra mulher, Vanessa*, 39, outra pessoa que preferiu não fornecer o nome verdadeiro. A justificava de ambas é válida e recai pelos filhos: o temor de perder a guarda devido morarem na rua.

    Barracos sob lona e barracas de camping servem como moradia para 20 pessoas | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Vanessa explica que está no local desde o início da pandemia, ou seja, mais de um ano, e que chegou ali após ser despejada pelo sogro da casa em que ele mora. Mãe de seis filhos (22, 14, 10, oito, seis e cinco anos), a mulher diz que faz de tudo um pouco para sobreviver, como venda de balas no semáforo, puxar carroça e trançar cabelo.

    “É uma experiência muito ruim. Não estamos aqui porque queremos. Estamos aqui por necessidade”. Assim como sua amiga, Vanessa conta que “dormir todos juntos” ajuda a se aquecer. Um alento para as mulheres foi ter tomado há três dias a vacina Janssen contra o coronavírus. O imunizante, diferente das demais vacinas disponibilizadas pelo poder público, é de dose única.

    Mortes

    Com as temperaturas em queda, o presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, Robson Mendonça, contou que tem reforçado o chocolate quente distribuído a pessoas em situação de rua no período da noite. Ela explicou que sai da sede da entidade, nas proximidades do Largo São Francisco, na região central, e não consegue chegar à Praça da Sé, a poucas quadras de distância, devido à grande quantidade de pessoas durante o caminho, o que faz parar na Praça do Patriarca, poucos metros após seu ponto de partida. São cerca de 750 bebidas entregues por ele e por sua equipe.

    Robson, que já foi fazendeiro e acabou por morar nas ruas após perder tudo em um sequestro, conta que tem mapeado as mortes recentes de moradores de rua, segundo ele, todas devidas ao frio. Um papel apresentado por ele tabula 12 casos no total, sendo cinco na Praça da Sé, onde há grande população de rua, mais dois na Avenida Francisco Matarazzo, dois na Avenida Presidente Wilson, e um caso no Terminal Tiradentes, no Pateo do Collegio e na Baixada do Glicério.

    Para Robson, a prefeitura precisa se organizar, não adianta a Defesa Civil dar o cobertor aos moradores durante à noite e retirar pela manhã através do rapa. “A Secretaria da Assistência e Desenvolvimento Social sempre fez isso, manda distribuir coberta e depois a ação de zeladoria vem molhando e recolhe as cobertas, dizendo que se deixa com eles, eles não querem mais sair da rua.”

    Após o anúncio das possíveis mortes de moradores de rua devido ao frio, já que comprovar que friagem foi a causa da morte não é tarefa fácil para o Serviço de Verificação de Óbitos e para o IML, o governador João Doria (PSDB) anunciou na quarta-feira (30/6) a doação pela iniciativa privada de 25 mil cobertores e 25 mil sacos térmicos para dormir.

    O período tardio do anúncio, já que o inverno teve início em 21 de junho, além de da ausência de uma data específica para entrega, também é motivo de críticas por parte de Robson. “Olha, isso é como ele fez na prefeitura. No final não fizeram nada. É puro marketing. Ele quer limpar a barra dele e da mulher dele, que já falou abobrinha”. Em julho do ano passado, a primeira-dama Bia Doria chegou a dizer que viver na rua é um “atrativo”.

    O que diz a Prefeitura

    Por meio de nota enviada à reportagem, a Prefeitura de São Paulo diz que “criou durante a pandemia 2.193 vagas, sendo 726 em oito equipamentos emergenciais em centros esportivos, 400 em Centros Educacionais Unificados (CEU), 260 em um Centro de Acolhida Especial para Famílias e 807 vagas para hospedagem de idosos em situação de rua já acolhidos na rede socioassistencial, em 13 hotéis (12 na região central e um deles transformado em Centro de Acolhida Especial para Idosos, e um na região norte). Das vagas criadas, 1.707 estão em funcionamento. Os equipamentos funcionam 24 horas e são voltados a diversos perfis”.

    A nota ainda diz que “na madrugada desta quinta-feira (01), 171 pessoas foram acolhidas, houve 83 recusas e foram distribuídos 200 cobertores. Desde 30/04, foram contabilizados 10.915 acolhimentos, 862 recusas e 9.737 cobertores distribuídos. Em 30/04, foi publicada a portaria que institui o comitê para o “Plano de Contingência para Situações de Baixas Temperaturas – 2021″ e se estenderá até 30 de setembro deste ano. A ação é reforçada sempre que a temperatura atingir um patamar igual ou inferior a 13ºC ou sensação térmica equivalente.”

    A nota não respondeu a pergunta da reportagem a respeito das mortes.

    O que diz a Secretaria de Segurança Pública

    Já a Secretaria de Segurança Pública informou em nota que “para apurarmos, precisamos saber se os referidos casos foram registrados em alguma delegacia em São Paulo, por meio de boletim de ocorrência”. A mesma nota ainda “esclarece que casos de mortes violentas ou com suspeitas de crime são encaminhados ao IML e investigados pela Polícia Civil. Mortes por causas naturais, independentemente da patologia, são encaminhadas aos órgãos de saúde competentes para a emissão da declaração de óbito e demais providências legais”.

    *Nome fictício

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas