“Minha filha pode convulsionar”, diz mãe. Em meio a pandemia, entrega de 50 pedidos de remédios importados dos EUA, que já estão em Campinas (SP), está atrasada há mais de 10 dias
Uma remessa de 50 pedidos de remédios à base de substâncias extraídas da cannabis, como o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabinol (THC), está paralisada no aeroporto de Viracopos, na cidade de Campinas.
Os produtos estão em São Paulo desde o dia 3 de março e ainda não chegaram na casa das famílias por conta da não liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Pelo menos 80 pessoas estão sendo lesadas pela paralisação dos medicamentos.
Os medicamentos são da empresa HempMeds, pioneira a conseguir a autorização da Anvisa para importar medicamentos para tratamentos com cannabis medicinal no Brasil. Os produtos vêm dos Estados Unidos, local em que a empresa também atua. Para efetuar compras na loja online é preciso ter autorização da Anvisa e receita médica.
Uma das clientes, que preferiu não se identificar por medo de represálias da Anvisa, afirma que sua filha de dois anos pode convulsionar caso não receba as doses do óleo de canabidiol. “Essa medicação é para a minha filha, ela tem uma síndrome rara que causa epilepsia de difícil controle. Ela tem meia seringa só, é criança, tem 2 anos e está convulsionando. Tivemos que correr atrás de pessoas que pudessem revender ou emprestar, mas o comércio dessa forma não é permitido, uma vez que se trata de um produto de uso pessoal, que só pode ser comprado com receita médica nominal e autorização da Anvisa. O produto é usado para controle de convulsões e a falta dele pode acarretar danos irreversíveis”.
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Ela também diz que foi lhe dito que sua documentação não estava de acordo com as normas, o que não corresponde à realidade. “Minha licença está certinha, está renovada, no prazo certo. Hoje eu entrei em contato novamente com a empresa de transportes, falaram que faltava uma documentação da Anvisa, mas minha documentação está toda certa”.
A cliente da HempMeds ainda lembrou que, para efetuar a compra, o direito de uso deve ser comprovado. “Normalmente entre 8 e 10 dias o remédio chega em casa. Eu fiz a compra dia 26, fiz o pagamento dia 26, recebi a confirmação. Esse produto chegou ao Brasil dia 3 de março e desde então está aguardando a liberação. Eu consulto pelo sistema da transportadora que acusa que ele está aguardando a liberação. A transportadora e a empresa falam que não tem quem faça a liberação no aeroporto de Viracopos”.
O drama vivido com sua filha já se arrasta há dois anos, quando ela conseguiu uma liminar para que o Sistema Único de Saúde (SUS) fornecesse o medicamento, mesmo assim pouco foi feito pelo Estado brasileiro. “Já judicializamos o caso da minha filha em 2019, conseguimos fazer com que o Estado pagasse o medicamento, pois saúde é um dos direitos constitucionais. Ganhamos uma liminar em 2020, o juiz já fez com que o Estado nos fornecesse a medicação e não recebemos. Eles me pagaram 3 meses e aí suspenderam o serviço, desde lá nada foi feito”.
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De acordo com o médico da área de infectologia clínica e saúde mental, Hélio Prado, os impactos da paralisação do tratamento de doenças que necessitam de medicamentos à base de cannabis medicinal podem acarretar em diversos problemas. “No caso específico dos derivados da maconha, no caso do canabidiol tem o retorno dos sintomas da doença que a pessoa estava tratando. Têm doenças que são mais dramáticas, como a epilepsia que pode levar ao retorno das crises”.
Na visão do médico, a parada do tratamento pode ser fatal em alguns casos. “Temos que lembrar que se são casos que já estão em uso é porque já tem benefício, então a parada abrupta vai levar ao retorno das convulsões e agregam risco de morte. No risco da epilepsia, pode haver a broncoaspiração (quando alimentos, líquidos, saliva ou vômito são aspirados pelas vias aéreas, causando pneumonia, perda da consciência e morte por asfixia) e a parada cardíaca”.
Hélio ainda diz que em casos de demência em idosos a falta do medicamento leva muitas vezes ao retorno da insônia e agitação. “Muitos usam para sintomas de insônia e agitação. A parada da medicação leva a alto risco de retorno e a agitação provoca crises de agressividade e insônia. Pode acarretar a uma morte por broncoaspiração, às vezes por ter que retornar a medicações que eles já tinham parado por outra razão. As demências em geral são em idosos que já são grupo de risco para a Covid-19 e hoje já temos indícios que a saúde mental é um fator de risco para a infecção. Um idoso descompensado da saúde mental agrega risco de infecção por Covid-19 ou coisas mais graves”.
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Além do mais, o especialista em saúde pública critica a morosidade da Anvisa. “Essas solicitações na Anvisa, às vezes por cenários políticos específicos, têm dado problemas e constrangimentos aos pacientes. Os médicos, apesar do resultado científico positivo, ficam com receio de receitar esses medicamentos, por conta do entendimento da Anvisa e isso tem sido um problema. É importante lembrar que nesses momentos de interrupção da importação do medicamento, a via associativa é a única possível para o agora, para uma pessoa que está nessa situação”.
Atualmente, somente duas associações têm permissão da Anvisa para cultivar a maconha no Brasil e comercializar medicamentos à base da planta: a Abrace e a Cultive. Em dezembro de 2019 a agência regulamentou a produção, a pesquisa e a venda de remédios no país pela indústria farmacêutica, mas as plantas ainda precisam ser trazidas do exterior, com o cultivo proibido no Brasil.
Apesar disso, nos últimos anos, a Justiça tem permitido o plantio individual para tratamento de saúde através de habeas corpus preventivos.
Em entrevista à Ponte a HempMeds afirmou que acredita que esta situação impacta diretamente a saúde pública. “Atrasar a entrega de produtos de Cannabis para fins medicinais agrava o tratamento complementar de pacientes com patologias graves”.
Segundo a empresa, em março de 2020 os pacientes enfrentaram o mesmo problema. “Mesmo assim, a HempMeds reconhece as melhorias implementadas pela Anvisa no processo de liberação do canabidiol. Contudo as famílias impactadas esperam um posicionamento do órgão ou um aviso antecedente, para que possamos orientar previamente nossos clientes a anteciparem seus pedidos, minimizando o impacto causado pelos atrasos”.
A companhia diz que “até o início da tarde desta quarta-feira (17), ao menos 80 pacientes aguardavam a liberação dos pedidos no aeroporto de Viracopos. Em resposta à HempMeds, a ouvidoria da Anvisa informou que irá esclarecer a situação no prazo de 15 dias úteis”.
A HempMeds atua de acordo com a legislação brasileira e com as normativas vigentes da Anvisa. Uma delas é a resolução nº 327 de 2019, que cria a categoria de “produtos à base de cannabis” e permite a venda aos pacientes em farmácias e drogarias do país. Já a resolução nº 335 de 2020, define critérios e procedimentos para a importação do canabidiol no Brasil, como a criação da figura do procurador legal, uma pessoa que passa a ser autorizada a realizar o processo de importação em nome do paciente, entre outras medidas.
Outro lado
A Ponte questionou a Anvisa sobre os motivos da paralisação dos medicamentos no aeroporto e sobre o tempo que eles devem ser mantidos no local. A instituição disse que as importações estão aguardando análise. “A liberação de medicamentos à base de cannabis não está paralisada no Aeroporto de Campinas. As importações por remessa expressa estão aguardando análise, que está sendo realizada em uma média de sete a dez dias úteis. Devido ao cenário epidemiológico atual, a unidade da Agência que atua no Aeroporto de Campinas tem focado suas atividades na intensificação de medidas sanitárias de enfrentamento à Covid-19”.
Já a transportadora UPS disse em nota que não está autorizada a passar informações sobre status de mercadorias/remessas retidas pelos órgãos intervenientes em comércio cxterior, bem como sobre os procedimentos a terceiros, sem a devida procuração do importador.
A UPS ainda aponta que a HempMeds já sabe da situação. “Já informamos a empresa HempMeds sobre o status de cada pacote, e quais providências devem ser tomadas junto ao órgão competente, uma vez que a empresa de transporte expresso não é responsável pela liberação, mas atua apenas como interveniente entre o importador e o referido órgão”.
[…] Fonte: Ponte Jornalismo […]
[…] Os produtos de cannabis vêm dos EUA, local em que a importadora também atua. Pelo menos 80 pessoas estão sendo lesadas pela paralisação. As informações são da Ponte […]