Em reunião, presidente de conselho de secretários estaduais alegou que policiamento poderia sofrer limitações e gerar risco; especialistas apontam que determinação de tribunal reforça cumprimento da lei e coíbe discriminação
Os secretários de Segurança Pública dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal decidiram manter baculejo, enquadro ou geral — como são conhecidas popularmente as abordagens ou “buscas pessoais” feitas pelos agentes públicos — apenas baseada nas impressões do policial sobre a aparência ou “atitude suspeita”, apesar de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter decidido, em abril, que as revistas não podem ser feitas sem que os policiais apresentem um motivo concreto para parar uma pessoa na rua. A determinação se deu durante a 82ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública (Consesp), em 2 de junho, e foi noticiada nesta quarta-feira (8/6) pelo jornal Gazeta do Povo.
Na reportagem, o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal e presidente do Consesp Julio Danilo Souza Ferreira argumentou que a decisão do STJ ocorreu por conta de um caso específico e não tem validade geral. “Nós respeitamos a decisão do STJ; o Conselho não se opõe ao Judiciário”, ponderou. “Mas houve a análise de um caso concreto, um caso específico de uma abordagem que aconteceu na Bahia. Por isso, a decisão não tem o poder de limitar que as abordagens sejam realizadas quando houver fundada suspeita”.
Ao jornal, Julio Danilo também disse que a determinação do tribunal limitaria a atuação do policiamento ostensivo e seria um “grave risco” à segurança pública. “Sabemos que há regiões em que existe maior cometimento de crimes, em que criminosos andam armados, portam e traficam drogas. E o trabalho ordinário da polícia preventiva é este: havendo suspeita, ele tem que fazer a averiguação para ver se há o cometimento de crime, que pode ser porte ilegal de armas de fogo, porte de drogas, porte de arma branca ou objeto que possa ser usado para o cometimento de um crime”, declarou.
A decisão do STJ foi motivada após a defesa de um homem que foi preso por tráfico de drogas em Vitória da Conquista, na Bahia, e recorreu da decisão pedindo um habeas corpus alegando que as provas contra ele foram colhidas durante uma busca pessoal realizada sem motivo pelos policiais, sendo atribuída apenas pela alegação genérica de que ele estava em “atitude suspeita”.
Em seu voto, o relator do acórdão (decisão tomada por um grupo de magistrados, no caso ministros do STJ), ministro Rogerio Schietti Cruz, afirma que as maiores vítimas das abordagens policiais são pessoas pobres e negras e afirma que isso pode levar a sérias violações de direitos.
O próprio secretário da Bahia, Ricardo Mandarino, corroborou a visão de Julio Danilo, conforme release divulgado pela pasta sobre a reunião. “É Impossível a polícia deixar de fazer a abordagem de suspeitos, sob pena de comprometer a segurança pública. É bom que fique claro que a decisão do STJ não tem efeito vinculante, pois é dirigida a um determinado caso específico. O que cabe à polícia é observar as regras do art. 5, da Constituição, respeitando os direitos e garantias individuais, com abordagens educadas e sem abuso, tendo sempre em conta o respeito à dignidade da pessoa humana”, declarou.
De acordo com o a Gazeta do Povo, um documento reforçando a manutenção das abordagens deve ser elaborado e enviado a todos os secretários até esta sexta-feira (10/6). A Ponte solicitou o documento e entrevista com o presidente do Consesp, mas a secretaria de Segurança Pública do DF disse que o texto ainda está em elaboração e verificaria a disponibilidade do secretário, o que até a publicação não aconteceu.
Especialistas ouvidos pela reportagem consideram que a recomendação do conselho é um retrocesso. A base legal para os enquadros da polícia está no Código de Processo Penal: o artigo 244 afirma que a busca pessoal pode ser feita sem necessidade de autorização da justiça apenas se o policial tiver “fundada suspeita” de que a pessoa carregue uma arma ou outro objeto ligado a um crime. O conceito tem sido usado em abordagens de forma subjetiva, como apontou estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), divulgado pela Ponte, ao mapear decisões judiciais de 2016 a 2019 e concluir que policiais criminalizam regiões, criam “figurinhas carimbadas” e usam o termo “conduta sugestiva” com frequência para justificar uma abordagem.
Segundo o voto do ministro Schietti, a suspeita do policial precisa ser justificada “pelos indícios e circunstâncias do caso concreto” de que a pessoa tenha drogas ou armas e não pode servir como desculpa para autorizar “buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo”.
“É muito importante que haja controle das abordagens policiais e o controle é feito, em primeira ordem, pela própria lei, a lei exige que haja fundada suspeita e a decisão do STJ reforça a própria lei”, explica o coordenador do programa de Enfretamento à Violência Institucional da ONG Conectas Direitos Humanos Gabriel Sampaio. Ele destaca que a ideia de que “os fins justificam os meios” contamina a atuação de agentes da segurança pública e do sistema de justiça, que devem ser garantidores da legalidade. “Não se pode justificar na suposta prática de eventual crime ou eventual flagrante a abordagem ilegal: se a abordagem é ilegal, todo o resto é ilegal”.
O professor e coordenador do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV Thiago Amparo concorda. “Ao explicitamente ir contra a jurisprudência da mais alta corte de interpretação da lei federal, o STJ, os secretários de segurança pública promovem, de um lado, uma ilegalidade ao esvaziar o requisito de ‘fundada suspeita’, previsto em lei para abordagens policiais, de qualquer sentido objetivo”, critica.
Amparo, inclusive, foi um dos peticionantes de um pedido à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) para acompanhar o julgamento que condenou a Argentina a indenizar duas pessoas que foram presas em Buenos Aires, em 1990, por tráfico de drogas durante uma abordagem sem ordem judicial e sem flagrante. No Brasil, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que também acompanhou essa sessão, divulgou dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo apontando a ineficiência dos enquadros: das mais de 15 milhões de abordagens que a PM paulista realizou em 2019, apenas 0,8% resultaram em uma prisão em flagrante. Por isso, para o professor, os secretários, ao manterem a prática, “referendam uma política de segurança ineficaz focada em policiamento ostensivo que, além de discriminatório na escolha de quem é abordado, gera quase nenhum resultado efetivo, enquanto pouco investem em investigação policial”.
Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, destaca que essa também é uma maneira de os secretários não reconhecerem a presença do racismo nas polícias. “Eles [a polícia] não abordam suspeitos, abordam por racismo, e o racismo é um osso que não querem largar”, critica. Além disso, aponta a violência só ocorre dentro das favelas e periferias. “As abordagens são truculentas, não estão nem aí para idosos nem para ninguém, porque eles têm uma arma na mão e uma farda e, se alguém se aproximar, eles são violentos. A gente recebeu o depoimento de um rapaz que a polícia mandou deitar no chão frio, a mãe viu, ela pediu para ele levantar e o policial falou ‘se afasta ou quer deitar com ele?'”
Um estudo feito por Jéssica da Mata, advogada da ONG Innocence Project Brasil e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), que deu origem ao livro A Política do Enquadro (Revista dos Tribunais), apontou que, na cidade de São Paulo, jovens negros de 15 a 17 anos são sete vezes mais abordados pela polícia em relação ao restante da população. Na cidade do Rio de Janeiro, 63% dos negros contam que já foram enquadradas pela polícia em algum momento de suas vidas, embora correspondam a 48% da população, conforme a pesquisa Elemento Suspeito, coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). As duas pesquisas foram mencionadas na decisão do STJ.
“Só há uma forma de combater o racismo estrutural: é com medidas concretas, que é o que o STJ fez”, pontua Gabriel Sampaio. “Se as instituições continuarem achando que agindo da mesma forma como sempre agiram vão acabar com o racismo estrutural, vão dar uma resposta insuficiente para sociedade, na verdade, vão manter a reprodução do racismo”.