Aplicativo da PM de SP discrimina denúncias de perturbação de sossego de baile funk

    Corporação trata de maneira mais séria denúncias que envolvam “Pancadão Funk Esquenta” — caso em que pede o nome do organizador. “Há, no discurso da PM, uma associação entre os bailes e crimes”, aponta especialista

    Tela inicial do aplicativo 190 SP, que distingue as denúncias de som alto entre “Perturbação do Sossego” e “Pancadão Funk Esquenta” | Imagem: Reprodução

    Em funcionamento desde 2021, o aplicativo 190 SP, da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP), discrimina em suas opções “perturbação de sossego” de “pancadão funk esquenta”. Em teoria, o som alto em qualquer dos casos geraria perturbação do sossego, mas a corporação divide as opções e trata de maneira mais séria as denúncias que envolvam bailes funk ou pancadões.

    Desenvolvido em parceria entre a corporação e a empresa de tecnologia Indra, o app pode substituir o contato telefônico com o 190 em sete situações: violência doméstica, segurança escolar, furto e roubo ocorrendo no momento ou que já ocorreu, além das reclamações de som alto ou funk.

    A Ponte usou os mesmos parâmetros para simular duas denúncias de som alto, uma como “perturbação do sossego” e outra como “pancadão funk esquenta”. O endereço indicado foi o mesmo, um ponto aleatório de uma rodovia do estado de São Paulo, e em ambos os casos foi escolhida a opção “denúncia anônima”. As diferenças começaram na página seguinte do aplicativo.

    Missa na Catedral da Sé em 2022 para as vítimas da chacina de Paraisópolis, ocorrida em 2019, quando PMs encurralaram participantes de baile funk e nove pessoas morreram | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Enfoque na repressão

    Na opção “perturbação do sossego” é possível indicar apenas se está havendo uma “festa”, “som alto” ou “som alto de veículo”. Se a denúncia for sobre funk, as opções são “festa”, “baile funk”, “fluxo”, “esquenta” e “outros”. O local da perturbação também varia: na denúncia geral, a PM te permite escolher entre residência, comunidade, via pública, bar, estabelecimento comercial, estabelecimento de ensino e outros; na denúncia sobre funk, são retirados os estabelecimentos comerciais e de ensino, e é inserida a opção “chácara/sítio”.

    Em ambas as denúncias, a PM pergunta se há alguém armado no local, quantas pessoas estão presentes, se o denunciante fará contato com a viatura e se gostaria de enviar uma foto. Se a denúncia for sobre funk, porém, questões adicionais aparecem.

    É perguntado se está ocorrendo interdição de via pública, qual a origem do som — veículo, equipamentos de som ou outros —, e se é possível identificar o organizador. “Sabe informar quem está promovendo a perturbação?”, o formulário questiona. Em caso de resposta positiva, abre-se um campo para preencher com o nome da pessoa. Se o som estiver vindo de um veículo, há ainda a opção de informar a placa ou, na impossibilidade, modelo e cor do veículo.

    Leia mais: O que foi o Massacre de Paraisópolis

    As questões adicionais apontam um esforço da PM em atuar mais fortemente na repressão à perturbação causada por estes eventos, além de identificar seus responsáveis. Enquanto na perturbação criada por outras situações são pedidas apenas informações básicas e que não envolvem a responsabilização direta de uma pessoa.

    Tal enfoque reitera as ações tomadas na repressão de eventos de funk — em maio de 2024, a Ponte mostrou que, cinco anos após o massacre de Paraisópolis, na zona sul da cidade, quando a PM paulista matou nove jovens na dispersão de um baile funk, a repressão com violência continua sendo o principal modo de a corporação combater essa modalidade de “perturbação do sossego”.

    Associando bailes e crimes

    Para Desirée Azevedo, doutora em antropologia social e pesquisadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal Paulista (Caaf/Unifesp), a diferenciação permite que a PM aja legitimamente na intervenção de conflitos sonoros e de sossego que, antes, eram responsabilidade das prefeituras. “Quem fazia, e quem faz até hoje, o controle sobre a perturbação do sossego é a prefeitura, mas a PM sempre foi acionada pela população porque é um órgão associado ao controle da ordem”, explica ela.

    “A partir de 2012 há uma articulação nos batalhões territoriais da PM para poder lidar com esse problema, então me parece que a constituição de um código separado para a questão do baile tem a ver com essa identificação de um problema em específico, em separado, sobre o qual a polícia vai atuar.”

    Para a antropóloga, “há, no discurso da PM, uma associação entre os bailes e crimes. Como se a desordem causada pelas festas — o barulho, a aglomeração, o fechamento de vias, os comportamentos que incomodam outros cidadãos — não possa ser desconectada de crimes”.

    Burlando a Lei do Pancadão

    A autoridade da PM de São Paulo sobre este tipo de “perturbação” foi consolidada em 2017, com a sanção da lei 16.049/15, conhecida como Lei do Pancadão, que determina que veículos emitindo som alto em via pública ou em local de acesso público, como postos de gasolina ou estacionamentos, estão sujeitos à multa e apreensão.

    O texto garante legitimidade à ação policial em bailes funk por conterem sons originários de veículos em vias públicas. No formulário do aplicativo da PM, no entanto, aparece entre as opções disponíveis a de denúncia de sons em “chácara/sítio”, fora de vias públicas e em contexto, à priori, privado. Em teoria, casos assim deveriam ser fiscalizados pela prefeitura, não sendo abarcados pela Lei do Pancadão.

    Na prática, criam-se duas autoridades para lidar com sons e barulhos: uma responsável por perturbação de qualquer ordem e outra — a PM — para responder a chamados que envolvam funk.

    Leia mais: Presídio feminino em SP vive ‘estado inconstitucional’, diz Defensoria

    Desirée afirma que tal ambiguidade permite “deslizamentos entre o legal, o informal e o ilegal”. “Objetivamente, o que a lei faz é apontar a PM como fiscalizadora do pancadão, mesmo que a maneira de fazer essa fiscalização e a forma de montar a operação não esteja exatamente prevista ou descrita pela lei — e como não está, a polícia vai atuar conforme seus protocolos operacionais e práticas”, diz a especialista. Ela lembra que “perturbação do sossego” não é crime, e sim contravenção, o que não permitiria à polícia atuar como está definido na Lei do Pancadão.

    Em teoria, a PM de São Paulo tem o direito de abordar, multar e possivelmente apreender veículos tocando qualquer som em volume elevado — o que já demonstra conflito com as informações pedidas no aplicativo 190 SP. A legislação, explica a antropóloga, deixa um vácuo que “amplia a possibilidade de atuação da polícia em relação aos bailes e faz com que não haja garantia de que o agente público que está lá para tentar impedir que o baile aconteça não vai, por exemplo, se envolver em alguma situação de violência para reprimir um crime”.

    Apoie a Ponte!

    “O policial tem essas duas prerrogativas e pode fazer essas duas coisas. É por isso que a presença policial que tecnicamente seria para evitar que o baile aconteça resulta, muitas vezes, em ação de dispersão do baile — o que, teoricamente, não estaria previsto”.

    O que dizem as autoridades

    A Ponte entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) para questionar por que denúncias envolvendo funk no aplicativo 190 SP contam com mais perguntas do que outros tipos de perturbação do sossego e por que uma das opções de local é chácara/sítio, onde teoricamente a Lei do Pancadão não permitiria uma operação da PM.

    “A Polícia Militar esclarece que o aplicativo 190 foi criado com o objetivo de dar mais agilidade à população. Deste modo, foi estruturado de forma a cumprir esse objetivo”, limitou-se a responder, em nota, a Fator F, assessoria terceirizada da SSP-SP.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    Inscrever-se
    Notifique me de
    0 Comentários
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários

    mais lidas

    0
    Deixe seu comentáriox