Corporação trata de maneira mais séria denúncias que envolvam “Pancadão Funk Esquenta” — caso em que pede o nome do organizador. “Há, no discurso da PM, uma associação entre os bailes e crimes”, aponta especialista
Em funcionamento desde 2021, o aplicativo 190 SP, da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP), discrimina em suas opções “perturbação de sossego” de “pancadão funk esquenta”. Em teoria, o som alto em qualquer dos casos geraria perturbação do sossego, mas a corporação divide as opções e trata de maneira mais séria as denúncias que envolvam bailes funk ou pancadões.
Desenvolvido em parceria entre a corporação e a empresa de tecnologia Indra, o app pode substituir o contato telefônico com o 190 em sete situações: violência doméstica, segurança escolar, furto e roubo ocorrendo no momento ou que já ocorreu, além das reclamações de som alto ou funk.
A Ponte usou os mesmos parâmetros para simular duas denúncias de som alto, uma como “perturbação do sossego” e outra como “pancadão funk esquenta”. O endereço indicado foi o mesmo, um ponto aleatório de uma rodovia do estado de São Paulo, e em ambos os casos foi escolhida a opção “denúncia anônima”. As diferenças começaram na página seguinte do aplicativo.
Enfoque na repressão
Na opção “perturbação do sossego” é possível indicar apenas se está havendo uma “festa”, “som alto” ou “som alto de veículo”. Se a denúncia for sobre funk, as opções são “festa”, “baile funk”, “fluxo”, “esquenta” e “outros”. O local da perturbação também varia: na denúncia geral, a PM te permite escolher entre residência, comunidade, via pública, bar, estabelecimento comercial, estabelecimento de ensino e outros; na denúncia sobre funk, são retirados os estabelecimentos comerciais e de ensino, e é inserida a opção “chácara/sítio”.
Em ambas as denúncias, a PM pergunta se há alguém armado no local, quantas pessoas estão presentes, se o denunciante fará contato com a viatura e se gostaria de enviar uma foto. Se a denúncia for sobre funk, porém, questões adicionais aparecem.
É perguntado se está ocorrendo interdição de via pública, qual a origem do som — veículo, equipamentos de som ou outros —, e se é possível identificar o organizador. “Sabe informar quem está promovendo a perturbação?”, o formulário questiona. Em caso de resposta positiva, abre-se um campo para preencher com o nome da pessoa. Se o som estiver vindo de um veículo, há ainda a opção de informar a placa ou, na impossibilidade, modelo e cor do veículo.
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As questões adicionais apontam um esforço da PM em atuar mais fortemente na repressão à perturbação causada por estes eventos, além de identificar seus responsáveis. Enquanto na perturbação criada por outras situações são pedidas apenas informações básicas e que não envolvem a responsabilização direta de uma pessoa.
Tal enfoque reitera as ações tomadas na repressão de eventos de funk — em maio de 2024, a Ponte mostrou que, cinco anos após o massacre de Paraisópolis, na zona sul da cidade, quando a PM paulista matou nove jovens na dispersão de um baile funk, a repressão com violência continua sendo o principal modo de a corporação combater essa modalidade de “perturbação do sossego”.
Associando bailes e crimes
Para Desirée Azevedo, doutora em antropologia social e pesquisadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal Paulista (Caaf/Unifesp), a diferenciação permite que a PM aja legitimamente na intervenção de conflitos sonoros e de sossego que, antes, eram responsabilidade das prefeituras. “Quem fazia, e quem faz até hoje, o controle sobre a perturbação do sossego é a prefeitura, mas a PM sempre foi acionada pela população porque é um órgão associado ao controle da ordem”, explica ela.
“A partir de 2012 há uma articulação nos batalhões territoriais da PM para poder lidar com esse problema, então me parece que a constituição de um código separado para a questão do baile tem a ver com essa identificação de um problema em específico, em separado, sobre o qual a polícia vai atuar.”
Para a antropóloga, “há, no discurso da PM, uma associação entre os bailes e crimes. Como se a desordem causada pelas festas — o barulho, a aglomeração, o fechamento de vias, os comportamentos que incomodam outros cidadãos — não possa ser desconectada de crimes”.
Burlando a Lei do Pancadão
A autoridade da PM de São Paulo sobre este tipo de “perturbação” foi consolidada em 2017, com a sanção da lei 16.049/15, conhecida como Lei do Pancadão, que determina que veículos emitindo som alto em via pública ou em local de acesso público, como postos de gasolina ou estacionamentos, estão sujeitos à multa e apreensão.
O texto garante legitimidade à ação policial em bailes funk por conterem sons originários de veículos em vias públicas. No formulário do aplicativo da PM, no entanto, aparece entre as opções disponíveis a de denúncia de sons em “chácara/sítio”, fora de vias públicas e em contexto, à priori, privado. Em teoria, casos assim deveriam ser fiscalizados pela prefeitura, não sendo abarcados pela Lei do Pancadão.
Na prática, criam-se duas autoridades para lidar com sons e barulhos: uma responsável por perturbação de qualquer ordem e outra — a PM — para responder a chamados que envolvam funk.
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Desirée afirma que tal ambiguidade permite “deslizamentos entre o legal, o informal e o ilegal”. “Objetivamente, o que a lei faz é apontar a PM como fiscalizadora do pancadão, mesmo que a maneira de fazer essa fiscalização e a forma de montar a operação não esteja exatamente prevista ou descrita pela lei — e como não está, a polícia vai atuar conforme seus protocolos operacionais e práticas”, diz a especialista. Ela lembra que “perturbação do sossego” não é crime, e sim contravenção, o que não permitiria à polícia atuar como está definido na Lei do Pancadão.
Em teoria, a PM de São Paulo tem o direito de abordar, multar e possivelmente apreender veículos tocando qualquer som em volume elevado — o que já demonstra conflito com as informações pedidas no aplicativo 190 SP. A legislação, explica a antropóloga, deixa um vácuo que “amplia a possibilidade de atuação da polícia em relação aos bailes e faz com que não haja garantia de que o agente público que está lá para tentar impedir que o baile aconteça não vai, por exemplo, se envolver em alguma situação de violência para reprimir um crime”.
“O policial tem essas duas prerrogativas e pode fazer essas duas coisas. É por isso que a presença policial que tecnicamente seria para evitar que o baile aconteça resulta, muitas vezes, em ação de dispersão do baile — o que, teoricamente, não estaria previsto”.
O que dizem as autoridades
A Ponte entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) para questionar por que denúncias envolvendo funk no aplicativo 190 SP contam com mais perguntas do que outros tipos de perturbação do sossego e por que uma das opções de local é chácara/sítio, onde teoricamente a Lei do Pancadão não permitiria uma operação da PM.
“A Polícia Militar esclarece que o aplicativo 190 foi criado com o objetivo de dar mais agilidade à população. Deste modo, foi estruturado de forma a cumprir esse objetivo”, limitou-se a responder, em nota, a Fator F, assessoria terceirizada da SSP-SP.