Após 10 anos, Justiça de SP nega mais uma vez indenização a fotógrafo cegado pela PM

Desembargadores argumentaram que não havia prova de que ferimento no olho de Sérgio Silva foi feito por disparo de bala de borracha quando cobria protesto em 2013; “decisão tão violenta quanto o policial que atirou”, disse

Sergio Silva em frente às escadarias do Palácio da Justiça após o julgamento desta quarta-feira (26) | Foto: Gustavo Basso/Ponte Jornalismo

O fotojornalista Sérgio Silva ainda tinha um resquício de esperança de que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconsiderasse sua decisão de 2017, mas não foi o que aconteceu. A 9ª Câmara de Direito Cível manteve por unanimidade, nesta quarta-feira (26/5), o entendimento de que o Estado não é responsável pelo disparo de um policial militar que cegou o fotógrafo quando cobria uma manifestação em 2013.

O relator Rebouças de Carvalho proferiu seu voto enquanto direcionava, a todo o momento, seu olhar para Sérgio, que estava sentado na primeira fila dos bancos destinados ao público. Apesar de reconhecer que a vítima sofreu um dano irreversível, ele afirmou que não havia nexo de casualidade, ou seja, de que o ferimento no olho esquerdo do fotógrafo foi produzido por uma bala de borracha disparada por um agente público.

Sérgio ficou abalado. “É uma de decisão tão violenta quanto o policial que atirou”, disse. Para ele, o tribunal atribuiu à vítima a necessidade de provar que foi a polícia que o feriu mesmo sem estar em condições de recolher algum vestígio ou exigir dos médicos que apontassem especificamente que uma bala de borracha o atingiu sem ter o projétil. “A Corregedoria da Polícia Militar não investigou se foi tiro de bala de borracha, se foi estilhaço de bomba, quem atirou, e eles [desembargadores] ainda abrem esse precedente de que [o ferminento] poderia ter sido [causado por] manifestante ou até bola de futebol”, criticou.

Na época, relatório da Corregedoria da PM informava que haveria condições de determinar quem foram os autores de disparos de balas de borracha e se alguma delas atingiu o fotógrafo. A investigação foi coletiva e Sergio apontou ter sido ouvido quase dois anos depois da agressão. No histórico da corporação referente ao dia 13 de junho de 2013, é descrito que a polícia usou 178 munições do tipo AM-403/P, ou seja, balas de borracha, além de bombas de gás lacrimogêneo, para dispersar a manifestação.

Os desembargadores Décio Notarangeli e Oswaldo Luiz Palu seguiram o voto do colega. Esse foi o mesmo corpo de julgadores que negaram a indenização em 2017. Notarangeli ainda destacou que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) também prevê nexo de casualidade. Em 2021, a corte reconheceu a responsabilidade do Estado para indenizar fotojornalista Alex Silveira, que perdeu a visão de um olho ao ser atingido por um tiro de bala de borracha pela PM quando fazia a cobertura de uma manifestação de professores em 2001.

Sérgio deixa Palácio da Justiça abraçado à filha Elis e abalado com julgamento | Foto: Gustavo Basso/Ponte Jornalismo

A decisão gerou repercussão geral, ou seja, jurisprudência para casos semelhantes nos seguintes termos: “É objetiva a responsabilidade civil do Estado em relação a profissional da imprensa ferido por agentes policiais durante cobertura jornalísticas em manifestações em que haja tumulto ou conflitos entre policiais e manifestantes. Cabe a excludente da responsabilidade de culpa exclusiva da vítima, nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas em que haja grave risco a sua integridade física.”

Sérgio havia recorrido ao STF que, por sua vez, determinou que o caso fosse reavaliado pelo tribunal paulista, que já havia negado a indenização duas vezes. Ele e seus advogados disseram que vão aguardar a publicação do acórdão (decisão do grupo de desembargadores) para avaliar os próximos passos: se recorrem novamente ao mesmo tribunal ou se apelam ao STF. “Eu vou até o final”, diz Sérgio.

Para o fotojornalista, a negativa abre um precedente perigoso para profissionais de imprensa. “Eles deixam aberta uma possibilidade de que. se um profissional de imprensa, no exercício da sua profissão, sofreu algum tipo de violência, pode não ter justiça, nenhum tipo de investigação. É um precedente aberto para a perpetuação da violência.”

A organização de direitos humanos Artigo 19, que acompanha o caso, enxerga a decisão desta quarta (26) “com muita preocupação”. “O Estado brasileiro tem o dever de garantir um ambiente seguro para a atuação de jornalistas e comunicadores, e o resultado do julgamento de hoje passa uma mensagem contrária à obrigação do Estado de zelar pela liberdade de expressão”, disse à Ponte Manoel Alves, assessor do programa de Proteção e Participação Democrática da entidade, que ainda defende o fim do uso da “munição de elastômero” (bala de borracha) no país, especialmente no âmbito de protestos.

Relembre o caso

Sérgio Silva perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha na esquina das ruas da Consolação e Caio Prado, no centro de São Paulo, durante a repressão da Polícia Militar a um ato pela redução do preço da passagem de transporte público do Movimento Passe Livre (MPL), em 13 de junho de 2013, nas chamadas Jornadas de Junho.

Desde então o fotógrafo tenta responsabilizar o Estado e ser indenizado pela agressão, em uma saga que já dura uma década. A primeira decisão veio em 2016, quando o juiz Olavo Zampol Júnior, da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, determinou que a culpa pelo ferimento era do próprio fotógrafo. O juiz afirma que foi Sérgio quem se colocou na “linha de tiro” e, portanto, era o responsável pelas consequências.

Em 2017, a 9ª Câmara do TJSP entendeu “não haver provas” de que o ferimento no olho do fotógrafo foi causado por uma bala de borracha e que, portanto, não há “nexo causal com o comportamento danoso do Estado”. O colegiado respaldou decisão em primeira instância, porém, reconheceu que o fotógrafo não “teve culpa” pelo incidente e estava fazendo o seu trabalho.

Contudo, os desembargadores inocentaram o Estado por consideraram as provas apresentadas insuficientes para ligar um policial, no caso, um agente do Estado, como causador do dano.

Em 2019 a defesa de Sérgio teve pedido de recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) negado. De acordo com os ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Benedito Gonçalves, Sérgio Kukina, Gurgel de Faria e Regina Helena Costa, relatora do caso, o pedido não preenchia os requisitos básicos para ser analisado. Assim, decidiram por negar o recurso antes mesmo de entrar no mérito posto pela defesa, o de não terem podido coletar provas na primeira instância – quando o juiz Olavo Zampol Júnior antecipou a decisão e considerou Sérgio culpado pelo ferimento ao se “ao se colocar na linha de confronto entre a população e os policiais”.

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Ainda em 2019 Sérgio acionou o STF para um último recurso, mas diante da nova jurisprudência criada pelo caso de Alex Silveira, a corte devolveu o caso ao tribunal paulista.

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