Após 10 internações e tratamentos violentos, enfermeira larga o crack com terapia

    Leia o depoimento de ex-usuária de crack que há dez anos lida com a dependência química

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “Bom dia. Hoje é mais um dia. Eu não estou sozinha, né? Eu tenho problema com drogas, e a minha vida está nas suas mãos. Me ajuda. Eu tenho isso pra fazer hoje, então vamos lá. Obrigada”.

    Todos os dias pela manhã, sentada na beirada da cama, ela conversa consigo mesma e com a força que a tem ajudado a segurar a barra da dependência química. Hoje é mais um dia, e cada dia se conta, pois há um ano, quatro meses e dez dias ela está “limpa”.

    Filha de médicos e nascida na classe média paulistana, essa enfermeira de 38 anos da zona sul de São Paulo já foi internada 10 vezes, todas contra a sua vontade. Ela passou por todo tipo de tratamento, em instituições públicas e privadas, legais e clandestinas, com momentos violentos e cuidadosos.

    “Qualquer tratamento é porrada. Eu não sei se eu sou muito sensível, mas não é só a minha opinião. É totalmente condicionado esses tratamentos, então eles são muito negativos. É assim:  ‘Ah, você não vai fazer isso? Ah, não está afim? Então perdeu a ligação, perdeu a visita da família’”.

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    Ela levou muito tempo para entender que sua adicção estava além do seu controle, e que a droga, na verdade, acentuava outros problemas que ela tinha, mas que não conseguia enfrentar.

    “Eu sempre achei que tudo dói mais em mim, tudo é muito pesado, ou muito alegre, muito eufórico, dificuldade de lidar com a realidade. É um perfil, aí entra a droga e destrói. Hoje eu vejo que meu processo vem de muito antes de eu usar a droga. A droga só exacerbou tudo isso”, conta.

    Hoje ela agradece pela décima e última internação. Mas não por causa dos “trogloditas” que a agarram na garagem de casa, a pedido da mãe. Foram dois fatores que a ajudaram nessa batalha sem fim, iniciada há dez anos. Primeiro é o que chama de “rendição”.

    “Eu me rendi, eu cansei de lutar. Teve essa questão de aceitar que alguém está cuidando da gente, e que vai dar certo. Eu tinha evidência de dez anos tentando, recaindo, voltando, reconquistando trabalho e recaindo de novo. Mas o que é que eu não tinha feito de diferente?”

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    Foto: Daniel Arroyo/Ponte jornalismo

    O mais importante, contudo, foi o encontro com um profissional capacitado para lidar com a sua doença. Um terapeuta que entendeu que seu vício não tem a ver com vagabundagem ou fraqueza, mas com um sentimento de insegurança e obsessão, tratável por meio de muita conversa, carinho e compreensão.

    “Ele não botou o dedo na minha cara e falou ‘Tá vendo?’, como a sociedade faz, como os centros de tratamento fazem. Ele não me disse ‘se perdeu pra droga’, ‘perdeu playboy’, ‘fica quietinho aí’, ‘perdeu ligação’, que são jargões de clínica”.

    Ela prefere não divulgar o nome nem suas iniciais, em razão do estigma e da busca por emprego. Quer trabalhar ajudando outros dependentes a se livrarem das drogas. Também porque participa de um grupo de dependentes anônimos, que a ajuda a se manter longe do crack e da ‘cracolândia’ da zona sul, onde viveu por nove meses e da qual sente saudades.

    “Sinto falta e saudades deles, e por conta de saudade eu já recaí muito, por ir lá visitar. Sinto que [isso] fez parte da minha vida, foram dez anos com essas pessoas. Mas eu entendo que eu não posso. Hoje vou para o grupo [de dependentes anônimos], pra criar novos vínculos, novas conexões, novos hábitos, que é o mais difícil”.

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    Leia a seguir seu depoimento à reportagem:

    Das festas de faculdade ao crack

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte jornalismo

    Eu usava muita anfetamina na época de faculdade, êxtase, LSD, maconha, cocaína. Era época de rave e eu adorava ir. Achava que tinha o controle porque usava só de fim de semana, mas é mentira. Eu fui só progredindo na droga, em uso, frequência e quantidade.

    Eu ia pra balada à noite e, quando voltava, pedia pro borracheiro na esquina de casa pra fumar um baseado ali. Nisso ele fumava crack, então comecei a usar de fim de semana. Achei muito legal. Eu tinha uma visão que eu era muito melhor que o povo que usava crack na rua, que eu tinha o controle. Mas aí comecei a fazer coisas que eu não tinha feito. Peguei a carteira do meu pai, comecei a assaltar o cofre da minha família. Eu me justificava, ia minimizando. Na hora que eu terminei o relacionamento com o pai da minha filha, meu mundo acabou.

    Eu estava num processo que eu saía de casa na sexta e voltava só na segunda, na terça. E até então eu pensava que tudo bem, que era balada. Minha filha era muito pequena e eu largava ela com a minha mãe, mas essa questão não pesava quando eu estava entorpecida. Eu pensava que eu estava aproveitando a minha vida. Tudo era uma justificativa. Aí veio a primeira internação.

    A primeira internação

    Eu tinha três meses de uso. Estava na casa da minha vizinha e entraram uns caras, falaram que queriam conversar. Eu já tinha tentado um tratamento ambulatorial, até fiquei uns dias sem usar, mas entrei no uso de novo e resolveram me internar, minha mãe, meu médico e meu psicólogo. Foram três meses. Foi legal essa internação porque eu me senti bem assistida, apesar de ter sido contra a minha vontade. Não foi agressivo fisicamente, só psicologicamente.

    Eu falava que não ia ser internada, que não precisava, mas eles falaram que iam me levar pra conversar com o médico na clínica, e ele ia decidir se eu ia ficar internada ou não. Eu topei. Eles não me pegaram à força e eu não resisti. Me levaram na ambulância até a clínica, falaram que eu ia encontrar minha mãe. Só que eu entrei e não saí mais. Não estava minha mãe, não tinha o tal médico, e as pessoas que estavam lá falaram que eu tinha sido internada. Eu chorei muito, muito, muito, muito. Não foi agressivo, mas tive uma sensação de que “perdi”, não senti raiva, tive um sentimento de tristeza muito grande.

    A clínica era legal, tinha boa estrutura. A gente fazia terapia laboral, cuidava do próprio local, mas eu não estava preparada para parar, porque na verdade eu não entendia nada de dependência química. Eu já tinha passado por aulas de saúde mental na faculdade de enfermagem, mas não entendia nada, nem achava que droga era problema de doença. Achava que era uma fase, que passava. Eu tinha esse estigma de achar que quem usava droga era safado, malandro, não quer nada com a vida. Até eu entender esse processo de doença demorou muito, tanto que demorou muito tempo para eu me tratar.

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    Reinserção social e recaídas

    Três meses depois eu saí, terminei a faculdade, voltei com o pai da minha filha e a gente casou. Mas eu já tinha começado a fumar maconha com meu marido e a beber. Eu sempre minimizava. Aquela sensação de fazer o casamento me preencheu por um momento. Mas depois que passou a festa e sobrou a casa, eu, ele e a criança, aí comecei a fumar crack dentro de casa. Tinha ficado nove meses limpa. Mas comecei a roubar meu marido. Ele contou pra minha mãe e eu tive a segunda internação. A captura não foi legal, mas o hospital era conceituado

    Quando eu voltei pra casa, meu marido ainda estava usando maconha e, às vezes, cocaína. Isso começou a pesar. Eu pensei: “Ah, se ele pode…”. Numa briga nossa, ele falou assim: “Esqueci que eu me casei com uma pessoa doente”. Nossa, isso pra mim foi a morte. Aí eu comecei a me permitir. Com maconha de novo, maconha com crack, que é o mesclado. Na época ele estava trabalhando, eu estava só estudando e minha filha ia pra escola. Eu ficava sozinha em casa, então me permiti buscar. Aí progrediu. Ficou bem grave a situação. Eu usava no fundo de casa, esperava eles dormirem ou saírem. Mas eu ainda não usava na rua. Teve um ano que eu fui internada quatro vezes. Essa inabilidade com relacionamento foi uma das piores causas pra minha dependência.

    Eu tinha um padrão: ficava dez meses limpa, depois usava. E hoje eu entendo o quanto eu manipulava o meu médico., minha psicóloga. Porque eu conseguia retomar as questões sociais. Porque eu voltava pra faculdade, conseguia emprego. E nem sempre essa aceitação social significa recuperação. Por dentro eu ainda estava com várias questões. Eu não sabia lidar com a minha raiva, eu não sabia assumir as minhas limitações, eu tinha sentimentos horríveis, mas humanos, de inveja, e me sentia culpada. Já senti inveja e ciúmes da minha filha com a minha mãe, porque teve um momento que ela pegou a minha filha pra cuidar. Mas eu só vim identificar esses sentimentos agora. Eu acho que foi todo um processo. Eu comecei a me tratar em 2007, na primeira internação, mas eu nunca desisti, essa é a grande verdade. Eu queria ficar limpa, mas eu sucumbia muito ao impulso.

    Capturas violentas

    Nas internações eu não resistia, não saía correndo. Eu falava que não precisava internar, tentava conversar, mas nisso eles já grudam e te levam. Eu aceitava, porque ficava amarrada, às vezes medicada. Uma vez fiquei até com uma marca no pulso, amarrada com fita de atadura, ou pano, ou o que tiver. É uma contenção física.

    Em junho de 2011 minha mãe armou mais uma internação. Eu já gostava de usar crack na rua, mas não ficava direto, ficava uma noite e voltava. Minha irmã ia pra Europa e falou que ia passar em casa. Só sei que quando eu abri a porta, “tchum”, três trogloditas entraram e me pegaram. Esse resgate foi um pouco violento, porque eu não queria ir. Tinha um médico que era bem grotesco, me mandava calar a boca.

    Falaram que minha mãe tinha mandado. Um pegou, outro pegou, eu tentei me soltar, me jogaram no chão, sentaram em cima de mim e vieram me medicar. Comecei a xingar. Eram três caras e uma mulher. Nessa eu perdi, me amarraram na maca da ambulância e fui amarrada o caminho todo. Eu estava com a adrenalina tão em alta, fiquei tentando me desamarrar, mas não consegui. Me medicaram duas vezes, mas eu não chapei. Foi uma coisa meio errada, porque eu cheguei e fui medicada lá de novo. Podia ter dado m****. Eu fiquei sete dias dormindo. Tinha uma companheira que falava que ia no meu quarto ver se eu estava respirando. E olha que era uma clínica séria, mas sempre tem os seus jeitinhos. Acho que eles não têm medo de o paciente morrer.

    Foto: Daniel Arroyo/Ponte jornalismo

    Despreparo e abuso nas clínicas

    Nas dez vezes que eu fui resgatada as pessoas eram despreparadas, normalmente [eram] dependente químico em tratamento e que acha que está curado. Eles prestam serviço para as clínicas. Às vezes a empresa de resgate tem a ver com a clínica, ou a clínica indica a empresa de resgate, é tudo meio junto. Tem um pessoal que é captador de paciente. Isso ganha um dinheiro enorme. As pessoas que trabalham com captação tentam convencer as famílias, vão na fragilidade. O doente ‘tá’ ali, dando trabalho, vou lá e massacro a família de informação. Eles se colocam assim: “Sou dependente químico, mas estou recuperado. A clínica é muito boa, blá, blá, blá”, pra convencer a família. Isso é uma coisa que eu sempre quis falar, porque eu ficava revoltada, como enfermeira. Eu aprendi outra coisa na faculdade, o cuidado com as pessoas, na abordagem, no quanto é importante falar com o paciente. E não tem nada disso em clínica. É dependente cuidando de dependente. Claro, isso é super válido, um ajuda o outro, mas não tem nenhuma garantia. E é tudo nessa relação, “Olha, eu me salvei”. Eles se colocam numa situação de vitoriosa, de guerreira, de pessoa poderosa, “nossa, eu vou ajudar seu filho e ele vai ficar igual”. E não tem nada a ver porque não tem garantia nenhuma essa doença.

    Minha mãe resolveu me internar uma vez em um hospital de Santos. Fiquei nove dias e depois fui pra uma comunidade terapêutica [na grande São Paulo]. Foi o pior lugar que eu passei. Fiquei um mês. O dono era um cara meio sujo com as partes sexuais das meninas. Escutava histórias de assédio. Comigo foi só agressão verbal, mas escutava casos de passarem a mão [nas meninas].

    Teve uma, logo que eu cheguei, que estava em surto psicótico. Eles contiveram ela, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Botaram num quartinho, medicaram profundamente. Ela ficou três dias lá, fazia muito frio. Lembro que ela ficou meio que desacordada, toda urinada, num quartinho que ficava lá embaixo e que ninguém podia ir. Chamava UD, unidade de detenção. Falavam: “Joga a fulana na UD”. Aí escrevi uma carta pra minha mãe, entreguei escondido na primeira visita. Ela achou estranho e perguntou se eu estava sendo maltratada. Foi a primeira vez que ela me escutou. Ainda estava com a mesma psicóloga e psiquiatra e eles conseguiram me tirar dali.

    “Tratamento porrada”

    Já passei por “tratamento porrada”. Qualquer tratamento é porrada. Eu não sei se eu sou muito sensível, mas não é só a minha opinião. É assim: “Ah, você não vai fazer? Ah, não está afim? Então perdeu a ligação, perdeu visita da família”. É totalmente condicionado esses tratamentos, então são muito negativos. Como assim? Cabe a mim, enquanto cuidadora, enfermeira, chegar pra pessoa e encorajar, conversar. Mas ninguém tem paciência pra conversar, até porque quem trabalha lá são dependentes químicos em recuperação há pouco tempo. Muita gente que está cansada do que faz e não tem ‘saco’. Despreparada.

    Várias situações que aconteceram em clínicas, de briga, tentativa de fuga ou de surto psicótico, porque acontece, o despreparo é grande para enfrentar. Então muitas vezes vai lá, amarra, medica por própria conta. Já tem o “kit danoninho” ali. São calmantes, medicações injetáveis, para conter quimicamente o paciente, mas sem prescrição médica. Também não tem uma supervisão, porque quando faz uma medicação de contenção, tem que ter supervisão de meia em meia hora, porque pode baixar a respiração. Imagina. Isso me saltava muito aos olhos. Medicações psiquiátricas sendo manipuladas por pessoas sem preparo. Só quem está apto a medicar é um enfermeiro, um auxiliar ou um técnico, e a partir de uma prescrição. Mas isso não acontece, são os monitores. E aí se o monitor não vai com a sua cara, porque ele também está suscetível a estar doente, a estar nervoso, e se não for uma boa pessoa, ele põe um “remedinho” a mais, porque aí o paciente vai ficar quietinho o dia inteiro.

    Usando crack com o marido dentro de casa

    Fazia nove meses que eu estava limpa, mas aí com quatro meses recaí, e não entendi, porque foi feio, eu e meu marido. Ele falava assim: “Isso aqui não dá nada, não dá nada, você que é noia. Dá aqui que eu vou fumar e amanhã vou trabalhar”. Só que aí ele começou a entrar num processo de dependência muito pesado. A gente virou dois noias dentro de casa, a gente usava o dia inteiro.  Na hora que ele voltava do trabalho a gente usava, e com a filha em casa. Foi o processo mais pesado em relação a ela, até me dói, porque a gente estava com uma vida estruturada, com uma casa, e degringolou. Um dia minha mãe foi buscar ela na escola, levou pra casa dela e falou: “Sua filha não volta mais praí. Vocês querem usar drogas? Vocês se matem, mas sua filha é responsabilidade minha”. E aí ela entrou com uma ordem judicial para pegar a guarda. Foi a brecha que o sistema queria. Eu pensei: “Agora é que eu vou usar mesmo. Tirou minha filha? Agora vai ver”.

    A separação

    Em maio de 2011 ele falou que ia embora, que ia se tratar, se internar. A gente combinou de cada um se tratar e depois a gente conversar. Eu tive uma nova internação e ele não foi me visitar. Minha mãe falava que ele não perguntava de mim. Ele mandou um e-mail pro dono da clínica assim: “Avise a ela que eu quero me divorciar”. O dono da clínica marcou uma terapia de família e o chamou pra ele falar aquilo para mim. Oito de outubro de 2011, nunca me esqueço. Eu ainda tinha esperança de retomar, porque estava em processo de recuperação, estava diferente. mas eu me senti muito abandonada. Ele falou que não queria mais, tínhamos uma história de 13 anos juntos, a gente começou a usar droga meio que junto. Ele falou que estava bem e disse que já tinha dado [o casamento] e que era pra eu me virar sozinha. Fiquei mal. Chorei acho que uma semana. Meu mundo caiu. Foi uma sensação de abandono, uma sensação que eu sinto desde criança. No fundo eu não fui abandonada quando criança, mas pelo meu pai e minha mãe trabalharem muito, então eu sentia essa sensação de que nunca fui cuidada. Aí voltou tudo isso. Acabei ficando um tempo a mais na clínica, até janeiro de 2012, pra passar por esse processo, porque eles ficaram com medo de eu recair. Em janeiro eu saí bem, só que não procurava muita ajuda, não me deixava tratar. Eu fiz um pacto com a minha mãe que ela não ia me internar mais. Segui minha vida, mas tive várias outras recaídas.

    Relação com a mãe

    A questão da dependência pegou muito forte na relação entre eu e minha mãe, e no fundo não tem nada a ver, porque fui eu que fui usar, e ela só tentou me ajudar da forma que ela conseguiu. Mas isso gerou muita raiva, por causa de todas essas internações. Eu já tinha uma relação difícil, e aí, na hora que estou buscando por carinho, que sou uma vítima, que na verdade eu não sou, minha mãe vai lá e me interna. Hoje está melhor esse sentimento. Entendo que foi para o bem. Tento não levar muito isso. Se eu fico muito nesse sentimento, é recaída na certa. Tenho muito medo desse sentimento de raiva pelas internações, de raiva de ter sido assim.

    Mas aí entra na questão da rendição. Não tinha como ser diferente. Minha mãe não tinha noção do que é a droga. Talvez se eu estivesse no lugar dela, com a minha filha dependente, talvez eu não tivesse feito diferente.

    Ela tem um lado duro, mas também muito facilitadora. Ela deu o casamento que eu quis. Eu sempre penei nas questões de internação, mas quando eu voltava, ela me dava o que eu precisava, era muito amorosa. Não era aquele amor que eu sonhava, que hoje está muito melhor, porque eu vi que era uma questão que eu não acessava ela, eu julgava muito, mas hoje eu vejo amorosidade, a gente tem um contato maior.

    Internação funciona?

    Toda a diferença no tratamento, falando de mim, é a estrutura familiar. É ter para onde ir após o tratamento. Porque parar de usar a droga é fácil. Você vai lá, fica num lugar e para de usar a droga. O grande segredo é a manutenção, que eu não entendia. A internação só te tira da compulsão, e dependendo de como ela for feita, a mensagem não é levada, é usado de métodos agressivos e pode afastar para sempre de uma recuperação. Eu vejo muitos usuários falarem que internação não adianta. Realmente, falando de maneira grotesca, não adianta. Como solução? Como muitas famílias e a sociedade vê, internou e acabou? Mentira. Não é como um infarto: você infartou, internou, botou uma válvula, botou uma ponte e acabou. Vai ter um controle, mas é mais palpável, vai ser um remédio e acabou. A dependência química não tem nada disso. E aí é mais difícil. Para manter tem que ter a obediência, uma regularidade no tratamento, uma questão que aprendi hoje é que é diária, todo dia eu tenho que lembrar que sou dependente química. Não é um remédio palpável e não tem garantia nenhuma.  É só por hoje, e isso é muito difícil de entender. A droga eu já tirei várias vezes, e por que não dá certo? E por que só por hoje está dando certo? Porque eu comecei a entender que não era só a droga, e que não era só voltar para o círculo social e está tudo certo. Tem muitas outras coisas dentro de mim. De crença, falta de habilidade de lidar com raiva, falta de humildade, e em cada um dos usuários vai ser uma coisa diferente, e em outras proporções. Cada um tem o seu fundo de poço.

    A liberdade de fumar crack na rua

    Quando minha mãe pegou minha filha e meu marido foi embora, eu fiquei sozinha na casa dos sonhos. E aí os sonhos foram sendo vendidos. Foi quando eu comecei a frequentar a ponte (na zona sul de São Paulo).

    Eu já gostava de usar na rua. Comecei a sentir essa sensação de não ter nada com nada na vida, desconexão, bolha. Nada dói. Foi bem a sensação que eu tive quando o crack me pegou lá em 2007.

    Comecei a ir pra rua direto. Eu não queria usar sozinha em casa. Isso foi em 2011. Eu não tinha dinheiro, eu tinha a casa, mas eu ainda não tinha começado a vender muitas coisas da casa. E pra não vender, eu comecei a fazer a maior amizade com as pessoas da rua. Eu comecei a convidar o pessoal pra vir pra minha casa. “Ah, você quer tomar um banho? Leva uma droga. Quer dormir lá?”. Era meio que a condição. Rolou o maior esquema, virou um albergue a minha casa. Foi aí que minha mãe surtou, porque eu botei um monte de morador de rua pra morar em casa. Todos eram usuários, alguns faziam furto e levavam as coisas pra minha casa, então eu comecei a ser conivente com isso, em troca da droga. Comecei a vender também algumas coisas de casa, eles até falavam para eu não vender, e eu falava pra vender e fumar. Aí começou um processo de degradação.

    Amizades na rua

    Eles [os usuários que vivem na rua] são pessoas “inteligentérrimas”. Tanta inteligência  que demora até para o tratamento. Ficar limpo não é pra quem é inteligente, é pra quem é obediente. Muitos têm outras doenças mentais, não só a dependência química. Eles tendem a entrar em surto psicótico por causa da drogas, mas não abala a inteligência. Quando eu estava na rua, tinha um usuário que ele vivia falando com o céu, com a terra, e ele também era dependente de álcool. Eu parava pra conversar com ele, se ele estava num dia que te dava atenção, nossa, que pessoa fantástica. E ele aceitava o tratamento, ia, ficava bem, se recuperava, mas a dificuldade era se manter [limpo].

    Entendendo que precisa de ajuda

    Entre 2012 a 2015 eu não fiz internações involuntárias, mas eu fiz três desintoxicações no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas). Meu tratamento começou aí, porque comecei um processo de aceitação. Um médico me perguntou: “O que é que você quer?”. Nunca tinham me perguntado o que eu queria. Falei que eu queria me tratar, mas que não queria ser internada. Ele só me perguntou se eu conseguia. Essa autonomia foi muito válida, por mais que eu tenha tido as recaídas depois. Eu fiz vínculo num lugar que não iam me prender, me amarrar, porque esse era meu medo ali na sala do médico.

    Eu tinha ido morar na Praia Grande e fiquei seis meses recaída lá. Naquela hora, minha mãe abriu mão de mim. E quando eu cansei, quando vi que estava sozinha, eu procurei ajuda. Foi a primeira vez que eu procurei ajuda. Foi a primeira vez que as coisas começaram a ficar no meu domínio, e isso foi muito importante pra mim. No começo eram meus pais que buscavam ajuda. Eu queria ficar bem, mas não estava pronta. Mas lá eu fui porque eu quis. Era a minha vida e eu estava cuidando dela. Isso foi bem legal. O médico decidiu não me internar. Eu não era noia, fui ouvida. Fiz vínculos e amigos.

    A última recaída

    Eu estava limpa, num processo de autossuficiência, grandiosidade. Aí eu saí com uma amiga e ela propôs de a gente cheirar [cocaína]. E ela sabendo da minha história. Aquilo me machucou. Aquilo foi a brecha do sistema, a desculpa que eu queria para executar. No meu coração eu sentia que eu tinha que ter ido pra casa. mas na minha autossuficiência, necessidade de controle, achar que tudo posso, que não ia ter problema, que era só uma vez…

    Era um sábado à noite, eu levei ela num funk lá em Parelheiros. No domingo à tarde ela quis ir embora, voltamos pra casa. Segunda-feira acordei e fui trabalhar. Na terça a mesma coisa. Aí eu pensei: “Consegui, estou curada. Usei no fim de semana e ‘tô’ de boa”. Isso foi o pior sentimento. As pessoas falavam que era uma doença, que na hora que der o gatilho, ela se instala de novo. Mas eu duvidava. Sabe aquela coisa de querer ser melhor que a doença, de querer ser melhor que muita gente que passou por isso e achar que comigo vai ser diferente?

    Duas semanas depois teve um aniversário de uma amiga e eu comecei no energético, e daí comecei a misturar com álcool. Vodca com energético e não parava. Ali eu acho que a doença já tinha instalado. Saí de lá e fui na favela, de carro, usando um vestido. Só pensava no glamour, eu entrando na favela com meu carro, só pra ter a emoção de ir na favela, bonita, de carro e pro pessoal que me conhecia ver . Que inversão de valor. Pensando que estava curada indo comprar droga. Aí comprei um papel de cocaína. Só que na verdade a minha doença dizia: “Eu quero crack, quero crack”.

    Aí eu fui pra debaixo da ponte. Sento lá, fico cheirando, converso com o pessoal, porque estava com saudade. Dei dinheiro pra uma comprar uma pedra e falei que eu não estava usando. Nessa eu pedi um trago. Ele recusou, falou que eu não estava usando. “Ah, para com isso, me dá um trago”, falei. Instalou de um jeito, na hora.

    Voltei pra casa só na terça-feira. Com carro parado na rua, e fazendo vários corres pra cima e pra baixo, gastando cartão. Entrei num processo de ficar uns dias na rua, depois vinha pra casa, dorme, come, lava a roupa, fica bem e aí volta pra rua. Eu vim umas seis vezes pra casa. MInha mãe sabendo o que eu estava fazendo, minha filha também. Até que um dia minha mãe diz: “Aqui você não fica mais”. Eu fiquei de vez na rua. Tentei várias vezes voltar, e ela falava que só deixava se eu me internasse, mas eu dizia: “Não vou me internar, não vou me internar”. Tentaram me resgatar várias vezes nesse período, mas eu não ia. Não tentaram à força, muito conversando, mas eu não fui. A doença estava muito instalada.

    9 meses na cracolândia da zona sul

    Eu arrumei um namorado de rua. A gente brigava, e ele me bateu. Isso nunca tinha acontecido comigo. Foi aí que eu comecei a sentir meu pai falando comigo. “Não acredito que isso está acontecendo”. “Filha, sai daí, aí não é lugar pra você”.  Quando esse cara me agrediu, eu continuei com ele, e ele me agrediu de novo, e aí eu comecei a pensar: “Caramba, eu estou com um cara que está me batendo, eu continuo com ele, e eu não consigo sair, está pior do que a droga”.

    Eu nunca tive tanto furúnculo na minha vida, comecei a achar que eu estava bichada. No começo, a gente transava de camisinha, mas depois sem. Fiz vários programas sem camisinha. Fiz pequenos furtos, coisa que eu também pensava que não ia fazer. O furto pesava mais do que a prostituição. A prostituição tinha uma coisa assim: “O corpo é meu e eu faço o que eu quero”. É como se eu não infringisse a lei. Já o furto afeta outras pessoas, você corre o risco de ser presa. Eu fazia às vezes aviãozinho também. Isso começou a pesar. Falei: “‘Tô’ tomando porrada de um cara. Alguma coisa está estranha”. E aí senti meu pai de novo. “Filha, o que você está fazendo, não foi isso o que eu te ensinei”.

    Nunca imaginava que fosse parar na rua. Me acostumei muito rápido. Tem até uma coisa que não é boa: eu gosto, eu gostei, eu vi que me dei bem, que me adaptei. Me sentia querida. Me sentia amada, protegida. Essa proteção, esse amor começou a acabar quando teve esse final desse relacionamento, que foi quando eu comecei a ver que estava me colocando em risco, porque eu fiquei muito vulnerável.

    O último resgate

    Fiquei nove meses na rua, de maio de 2015 a janeiro de 2016. Um dia eu fui pra casa da minha mãe e toquei a campainha às 3h da manhã. Ela não permitiu entrar em casa, mas me deixou entrar na garagem e dormir ali na frente. Quando eu acordei, o resgate estava lá e me pegou. Eu queria morrer. O sentimento era de traição, mas eu entendi aquilo como uma ajuda.

    Comecei a ter pensamentos assim: “Você não pediu ajuda? Eu só consegui te ajudar desse jeito. De outro jeito não dava, olha como você estava. Então aceita, vamos pra frente agora, pode ser a sua última chance”. Eu resolvi deixar o controle e fazer o que era sugerido.

    A última internação

    Eu pensei em fugir, pra não passar pelo processo de internação tudo de novo, pela ausência da família, a sensação de estar presa, a perda da liberdade, da subjetividade. Mas eu resolvi seguir em frente. Quando eu vi que eu tinha perdido tudo, mais uma vez internada… Foram nove internações de 2007 a 2012. Eu aceitei.

    Teve essa questão da rendição, eu me rendi, eu cansei de lutar. Tinha essa questão de se render, de aceitar que alguém está cuidando da gente, e que vai dar certo. Eu tinha evidência de dez anos tentando, recaindo, voltando, reconquistando trabalho, e caindo de novo. Então, o que é que eu não tinha feito de diferente?

    Essa última clínica foi uma das piores da minha vida, mas foi a que deu certo. Exatamente porque eu não quero nunca mais voltar para aquele lugar. O que salvou foram os terapeutas, tive terapeutas maravilhosos. Fiquei 11 meses e 20 dias internada, de janeiro de 2016 a janeiro de 2017.

    O adicto é toda pessoa que tem um vício, uma obsessão e uma compulsão por algo, é uma doença. Ela é baseada em obsessão e compulsão, e não necessariamente vai descarregar na droga, pode ser em sexo, jogo, álcool, internet hoje em dia, mas na droga ela pesa bastante.

    Tem um jargão que fala que é a doença do “ainda”: você ainda não fez. Entender a minha arrogância, a prepotência, fez a diferença. Entendi isso com a maturidade, nessa última internação, com esses terapeutas que eu tive.

    O que me salvou foi a terapia e o vínculo. Eu dizia que conseguia ficar limpa na rua, apesar das recaídas. Mas ele nao falava nada , só me escutava, e aí fui criando vínculo. Na hora certa ele me confrontou, na hora que ele viu que eu estava mais amena. Com esse vínculo, ele entrava com uma parte científica. “Quais são as evidências que você tem?”. Eu falei que tinha estudado, fiz a pós, casei, fiz tudo o que eu fiz. Mas ele me perguntava o que eu estava conseguindo construir. Tudo isso me fez pensar que eu tinha tudo, mas não tinha nada. Eu já tinha minha ideia pronta, que eu só precisava voltar pra sociedade, mas eu não tinha esse aprofundamento. O que mais fez a diferença foi que ele me escutou. Ele não botou o dedo na minha cara e falou “Tá vendo?”, como a sociedade faz, como centros de tratamento fazem. “Se perdeu pra droga”, “Perdeu playboy”, “Fica quietinho aí”, “Perdeu ligação”, que são jargões de clínica.

    A rendição veio vindo, quando eu decidi não fugir, decidi dar o meu melhor. A fé também me ajudou muito.

    Terapia e tratamento

    Agora eu estou um ano, quatro meses e dez dias limpa. Mas é só por hoje, porque eu tenho o maior medo de falar. Eu gosto de falar meu tempo limpo, porque não vale nada. Eu posso acabar com ele a qualquer minuto.

    Hoje em dia eu conto [os dias] mais por uma forma de vitória, porque chega no final do dia e dá uma sensação de mais um dia bem-sucedido. Faço um relatório do que eu fiz pra ficar limpa hoje, o que me ajudou e o que não foi legal. E aí eu lembro amanhã de novo.

    Eu me reúno com um grupo de anônimos quase todos os dias. Isso foi o que eu fiz de diferente dessa vez após sair da internação. Na rua eu me sentia amada, querida, protegida, porque existe uma família na rua. “Encontrei a minha família”, eu sentia. E hoje essa questão entra no grupo. Eu encontro esse mesmo amor, é o que faz toda a diferença, sentir esse abraço.

    Sinto falta e saudades deles, e por conta de saudade eu já recaí muito, por ir lá visitar. Foram dez anos com essas pessoas, e agora [recentemente, morando na rua] de uma forma mais intensa. Mas eu entendo que eu não posso. Aí vou para o grupo, para criar novos vínculos, novas conexões, novos hábitos, que é o mais difícil, porque estou tão habituada, vai, recai, volta, vai, recai. E sair desse hábito às vezes é chato.

    Tudo o que está acontecendo na minha vida hoje eu só consigo porque eu tenho esse tempo limpa. A partir do momento que eu estragar isso eu estrago tudo. Esse é meu bem mais precioso, sendo uma dependente química grave.

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