Familiares e amigos dos 9 jovens que morreram após repressão da PM a um baile funk em 2019 fizeram protesto próximo ao Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, neste domingo (1/12) e despejaram tinta vermelha no asfalto
“Cadê a nossa resposta? São cinco anos e o que eu vejo são mais familiares chegando, sentindo a dor que nós estamos sentindo.” O desabafo emocionado é de Adriana Regina dos Santos, de 52 anos, mãe de Dennys Guilherme dos Santos França, 16, um dos nove jovens que morreram após a Polícia Militar reprimir um baile funk na comunidade de Paraisópolis, na zona sul da capital paulista, em 2019.
Numa mesma tarde de domingo como a de hoje (1/12), parentes tinham começado a receber notícias de que seus filhos, que saíram de casa para se divertir, não voltariam mais.
O protesto que marca os cinco anos do episódio que ficou conhecido como o “Massacre de Paraisópolis” tinha a intenção de chegar até o Palácio dos Bandeirantes, sede do governo estadual. Contudo, a PM cercou parte da Avenida Morumbi, impedindo o acesso. Mesmo assim, os presentes realizaram o ato em frente ao limite da avenida, em frente às grades que foram colocadas.
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“Esse é um dia que não é fácil para nós, porque continuamos cobrando por justiça”, disse Maria Cristina Quirino, 45, mãe de Denys Henrique, 16, que se tornou pesquisadora bolsista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2022 para que o crime não fique impune. “Se os policiais que assassinaram nossos filhos tivessem sido punidos, a gente não teria Operação Escudo, não teria Operação Verão, não teria a morte do pequeno Ryan nem do estudante de medicina”, afirmou ela, em relação aos eventos recentes de violência policial que marcaram os dois primeiros anos da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite.
No local, outros familiares de vítimas da violência de Estado também se uniram em solidariedade. A auxiliar de cozinha Nilceia Alves Rodrigues, 43, e a diarista Maria Aparecida dos Santos, 46, saíram de Bauru, no interior paulista, para se somarem à cobrança por justiça. Elas são mães, respectivamente, de Guilherme Alves Marques de Oliveira, 18, e Luís Silvestre da Silva Neto, 21, mortos em outubro. O caso ficou conhecido após PMs invadirem o velório de Guilherme e agredirem Nilceia e outros parentes.
“Eles [os policiais] não mataram só o Guilherme, mataram a Nilceia, mataram a família”, emocionou-se Nilceia. “Eles tiraram todos os meus direitos, eu só queria velar o meu filho, e eles estão tirando os direitos de cada um de nós”, prosseguiu.
“Meu filho era usuário [de drogas] e queria uma chance para viver e a polícia tirou essa chance”, lamentou Maria Santos, sobre seu filho Luís.
A enfermeira Deuza Cordeiro de Lima, 58, perdeu o sobrinho Thiago Gomes da Silva Lima Cordeiro, 19, que criou como filho em janeiro de 2023. “Eu não comemoro mais Natal, não tenho mais o Thiago para tomar café de manhã e me contar sobre a faculdade”, lamenta. “Quero uma resposta do governador porque nós não vamos desistir.”
Além de falas dos presentes e gritos de “justiça”, “fora, Tarcísio” e “fora, Derrite”, o ato terminou com líquido vermelho sendo jogado no asfalto pelos manifestantes, representando o sangue das vítimas do Estado. Familiares se abraçaram e trocaram palavras de conforto enquanto era tocada a música “Que mundo é esse tão cruel”, do MC Kevin O Chris.
As famílias também incentivaram a denúncia de repressões a bailes funks por meio do site www.os9queperdemos.com.br, já que os vídeos produzidos por moradores em Paraisópolis foram fundamentais para mostrar a dinâmica das mortes dos jovens. O projeto lançado nesta semana, feito em parceria com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp) e pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, revela que ao menos 16 pessoas foram mortas e seis menores de idade perderam a visão em ações da polícia contra bailes funks e como a cobertura da imprensa não deu a devida visibilidade.
Entenda o caso
Os policiais denunciados pelas nove mortes em Paraisópolis são Aline Ferreira Inácio, João Carlos Messias Miron, Luís Henrique dos Santos Quero, Rodrigo Almeida Silva Lima, Marcelo Viana de Andrade, Marcos Vinícius Silva Costa, Leandro Nonato, Paulo Roberto do Nascimento Severo, Gabriel Luís de Oliveira, Anderson da Silva Guilherme, Matheus Augusto Teixeira e José Joaquim Sampaio.
Os promotores Luciana André Jordão Dias e Neudival Mascarenhas Filho não seguiram o entendimento do delegado Manoel Fernandes Soares, do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil, que em seu relatório de investigação indiciou nove PMs por homicídio culposo (quando não há intenção de matar) e entendeu que os policiais agiram com negligência: o que poderia fazer com que o caso fosse julgado pela Justiça Militar e não pela Justiça Comum.
Luciana e Neudival argumentaram, no entanto, que os policiais conheciam o local, por ser a área de patrulhamento, e que “agiram pela torpe motivação de causar tumulto, pânico e sofrimento, em abusiva demonstração de poder e prepotência contra a população que estavam em evento cultural.”
Já o PM José Roberto Pereira Pardim é réu pelo crime de explosão por ter lançado bombas na Rua Manoel Antonio Pinto, onde pessoas estavam reunidas, mas havia “nenhum tumulto, confusão ou perigo para ele ou as equipes”. Todos são do 16º Batalhão Metropolitano (BPM/M), um dos mais letais do estado. Ao menos 31 policiais militares participaram da ação em Paraisópolis. Com relação aos outros 17 policiais, o MP-SP pediu o arquivamento do inquérito, o que foi acatado pelo Tribunal de Justiça.
Todos os acusados respondem ao processo em liberdade. Um deles, enquanto atuava em outro batalhão neste ano, foi gravado dizendo que celebra mortes com charuto e cerveja a um youtuber norte-americano que estava registrando e acompanhando uma perseguição policial. O MP-SP e a Defensoria pediram o afastamento dele das funções, mas o tribunal paulista negou. Já foram realizadas cinco audiências e a próxima, que deve ouvir os réus, está agendada para janeiro de 2025.
Quando o massacre completou dois anos, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp) publicou uma análise sobre o inquérito policial a pedido da Defensoria Pública. O estudo inclui o projeto Paraisópolis: 3 atos, 9 vidas, que reúne nove vídeos que desconstroem a versão da polícia de que houve resistência, pisoteamento e socorro, além de contar as histórias das vítimas. São análises de provas que vão de áudios da comunicação da PM e laudos, à reprodução simulada feita de forma digital da dinâmica dos fatos pelas versões dos envolvidos.
As conclusões apontam que os nove jovens já chegaram mortos ao hospital e que esperaram 34 minutos até que fossem resgatados. Indicam também que os policiais militares mentiram que as vítimas pediam socorro quando já estavam desfalecidas no chão e que foram impedidos de realizar os primeiros socorros porque estariam cercados. A corporação liberou apenas uma ambulância para atender o local, insuficiente para resgatar as vítimas, que acabaram sendo levadas pelos próprios policiais à Unidade de Pronto Atendimento do Campo Limpo.
O CAAF também corrobora a investigação da Polícia Civil ao afirmar que os policiais militares encurralaram as pessoas, agredindo e lançando spray de pimenta e bomba de gás. De acordo com os laudos dos corpos, oito das nove vítimas faleceram por asfixia por sufocação indireta, justamente por essa compressão entre as pessoas, impedindo que elas pudessem respirar, já que não tinham para onde correr. Mateus dos Santos Costa morreu por traumatismo raquimedular, que poderia estar associado à compressão ou uma pancada. Ou seja, nenhum dos jovens morreu por pisoteamento.
No âmbito administrativo, a Corregedoria da Polícia Militar entendeu, em relatório de 2020, que não houve irregularidades na ação e que os policiais envolvidos agiram em legítima defesa ao dispersar com bombas o baile funk. Assim, não teriam feito uma ação de dispersão “improvisada e desastrosa”, como criticado pela Ouvidoria da Polícia na época.
O caso de Paraisópolis é um dos 72 crimes com envolvimento de policiais que a Organização das Nações Unidas (ONU) elencou para cobrar uma resposta ao Estado brasileiro sobre a elucidação dos casos.
Em 2021, as famílias das vítimas firmaram acordos de indenização com o governo paulista em que o Estado reconhece sua responsabilidade no massacre, ou seja, de que mortes aconteceram por uma falha do poder público, sem precisar indicar ou responsabilizar um autor individual para que os valores sejam pagos. Os valores não foram divulgados porque existe uma cláusula de confidencialidade, segundo a pesquisadora do CAAF Desiree Azevedo.
À Ponte, a Procuradoria Geral do Estado (PGE), que representa o governo paulista, informou que finalizou o pagamento das indenizações às famílias em 3 de janeiro de 2022. “A pedido das próprias famílias e conforme prevê a lei, os valores e os termos dos acordos são sigilosos, tendo sido fixados a partir de critérios jurídicos semelhantes aos que garantiram, também em 2019, indenizações administrativas às vítimas e seus familiares do ataque ocorrido na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano”, disse em nota na época.