Após dois meses na prisão, jovem negro que foi reconhecido por foto de Instagram é solto

Justiça determinou liberdade de Kauã Felipe Santos, de 19 anos, após delegado dizer que tinha “dúvidas sobre sua participação” em sequestro — e um dos suspeitos presos negar o envolvimento dele no crime

Gritaria e fogos de artifícios anunciaram à vizinhança que o operador de máquina Kauã Felipe Cândido dos Santos, de 19 anos, enfim tinha retornado para casa. Ele passou dois meses preso após ser acusado de um roubo mediante sequestro, por meio de um reconhecimento irregular baseado em uma foto de Instagram. A Ponte contou a história em setembro. O abraço apertado que deu em familiares e amigos tentava recuperar o tempo perdido — e os aniversários da mãe, da namorada e dele próprio, passados atrás das grades. “Eu só chorava lá dentro”, relatou à reportagem na ocasião.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decretou sua liberdade na última sexta-feira (4/10), a pedido do delegado José Cláudio de Freitas, do 66º DP (Jardim Aricanduva). Isso porque a Polícia Civil prendeu, no início do mês, um outro homem que negou conhecer Kauã e outros dois rapazes que tinham sido presos pelo crime e disse na delegacia que o trio estava sendo “injustiçado”. Esse homem tinha sido identificado por câmeras de segurança de uma loja de roupas de um shopping junto com outros suspeitos que fizeram compras com o cartão da vítima do sequestro.

No despacho, o delegado escreveu que só teve conhecimento de que a foto de Kauã anexada ao inquérito fora retirada das redes sociais “posteriormente” e que, apesar da vítima tê-lo reconhecido por foto e presencialmente, havia “dúvidas sobre sua participação”. E afirmou: “Em caráter excepcionalíssimo, represento pela sua soltura ou mesmo por outras medidas assecuratórias (tornozeleira) a fim de aguardar o deslinde da persecução penal, como forma de salvaguardar sua integridade e também minha consciência”.

O promotor Alexandre Rocha Almeida de Moraes pediu que Kauã fosse colocado em liberdade mediante uso de tornozeleira eletrônica e comparecimento mensal no fórum, o que foi acatado pela juíza Andrea Coppola Brião.

“Eu estava desacreditado pela minha liberdade”, contou o jovem à reportagem. Para ele, foram os piores dois meses de sua vida. “Eu ainda tenho pesadelo, acordo assustado”, conta.

Kauã Felipe tinha conseguido emprego como operador de máquina em junho deste ano | Foto: arquivo pessoal

Kauã diz que as condições no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, eram precárias. “Tinham 26 pessoas na cela, 20 ficavam em trilíche e o resto dormia no chão”, lembra. “Eu passei fome lá dentro, a comida vinha pouquinha, azeda… No café da manhã, o leite vinha estragado.”

Traumatizado, Kauã teme sair de casa por conta da tornozeleira. “Tenho até medo de voltar a trabalhar porque a gente faz serviço em lugares muito distantes”, diz, ao apontar que seu chefe contou que o receberia de volta por acreditar na sua inocência. O operador de máquina tinha conseguido emprego em uma empresa que presta serviços de zeladoria urbana para a Prefeitura de São Paulo, um mês antes de ser levado pelos policiais. “Eu tenho vergonha de sair na rua porque as pessoas já olham com aquele olhar de julgamento quando veem a tornozeleira.”

Segundo Kauã, o advogado que o representa vai solicitar autorização à justiça para que ele possa trabalhar sem correr o risco de infringir a distância permitida pelo equipamento e que a família buscou auxílio psicológico pelo sofrimento que passou. “Ao mesmo tempo que eu tô livre, parece que eu não tô. Foi muita injustiça comigo. Eu nunca passei na delegacia em 18 anos. Nunca fiz nada de errado.”

Relembre o caso

Kauã ainda tenta provar sua inocência depois de ter sido acusado de participar de um sequestro apenas por conta de um reconhecimento irregular. Primeiro, por foto retirada de seu Instagram, que nem ele nem a família saibam como foi parar nas mãos da Polícia Civil. Depois, de forma presencial pela vítima, junto com outros cinco rapazes de características físicas diferentes.

Além de violar o artigo 226 do Código de Processo Penal, o reconhecimento não seguiu as recomendações da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da portaria da própria Polícia Civil sobre o assunto. Nos autos de reconhecimento, não há informação de onde as fotografias foram retiradas nem das características dos assaltantes.

A família afirma que o jovem estava em casa com a namorada no horário aproximado ao que um homem de 43 anos foi abordado por dois assaltantes armados, por volta das 21h30 do dia 14 de julho, e levado a um cativeiro onde permaneceu por dois dias até ser largado dentro do porta-malas do próprio carro, sair e conseguir pedir ajuda à Polícia Militar.

Na ação, os criminosos roubaram o celular da vítima para fazer transferências bancárias, que totalizaram um prejuízo de R$ 150 mil, e ficaram com a chave do veículo. Esse tipo de ocorrência se popularizou pelo nome de “golpe do pix” ou “golpe do amor”, pois a vítima em geral é atraída para encontrar uma pessoa que conheceu via aplicativo de relacionamento.

O homem registrou o caso em boletim de ocorrência eletrônico e, no dia seguinte, foi ouvido formalmente no 66º DP (Jardim Aricanduva). Lá, mencionou que pelo menos dez indivíduos estavam presentes no cativeiro. Em nenhum desses documentos consta a descrição física dos assaltantes. Por outro lado, o depoimento indica que a equipe de investigadores apresentou fotografias de “possíveis suspeitos”, oportunidade em que a vítima teria reconhecido duas pessoas como as que estavam no primeiro cativeiro para o qual foi levado.

Fotos mostradas pela Polícia Civil à vítima. Kauã é o indicado pelo número 3 e o único com foto de corpo inteiro. A Ponte censurou os rostos dos demais jovens | Foto: reprodução

O reconhecimento fotográfico e irregular foi o bastante para o delegado José Claudio de Freitas pedir a prisão temporária e busca e apreensão na casa de Kauã — acatadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 26 de julho.

No mesmo dia, o operador de máquina foi colocado ao lado de outros cinco jovens: ele e mais três foram reconhecidos pela vítima como os criminosos. Também desta vez o auto de reconhecimento, agora presencial, não citou a descrição prévia de características físicas dos suspeitos antes da exposição à vítima — como exige a lei. Além disso, os rapazes também têm perfis diferentes entre si, seja pelo tom de pele, corte de cabelo, altura e vestimenta, o que também contraria as normas do procedimento.

Nenhum objeto roubado foi encontrado na casa de Kauã. O operador de máquina também negou participação no sequestro durante o interrogatório na delegacia, disse que estava com a namorada em casa e que trabalhou nos dias subsequentes, das 7h às 17h, numa empresa que presta serviços de zeladoria urbana para a Prefeitura de São Paulo — emprego que havia conseguido em junho.

A defesa do jovem anexou a reprodução de um story do Instagram — postagem com duração de 24 horas — feita pela namorada com ele na data do crime, publicada às 21h27, para comprovar que ele estava em casa no momento em que o sequestro aconteceu. Ainda foi incluída a folha de ponto dele, comprovando os dias trabalhados.

Reprodução do story publicado em perfil da namorada de Kauã, com indicação de data de 14 de julho, às 21h27

Especialistas ouvidos pela Ponte destacam que o reconhecimento não pode servir de única prova para manter a prisão ou acusar alguém por um crime. E que a Polícia Civil deveria ter se baseado primeiro numa investigação antes de chegar a possíveis suspeitos.

No relatório final, o delegado descreve que os investigadores conseguiram imagens de câmeras de segurança de uma loja de roupas e sapatos em que compras foram realizadas com o cartão digital do celular da vítima, em 22 de julho, embora a filmagem indique o dia 12. Nas imagens, cinco dos sete jovens que aparecem experimentando calçados e fazendo o pagamento no caixa foram identificados. Kauã não é indicado entre eles.

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Parte dos rapazes que foram filmados tiveram as fotos apresentadas para a vítima para reconhecimento, que os identificou como integrantes do crime. Um deles ainda estava com uma blusa que foi comprada na ocasião. Eles permanecem presos.

No mês passado, o promotor Alexandre Rocha Almeida de Moraes acusou Kauã e outros oito rapazes (entre eles os identificados por câmeras de lojas) por extorsão, cuja pena pode variar de quatro a 10 anos de prisão, além de pagamento de multa. As primeiras audiências do caso estão previstas para novembro.

O que dizem as autoridades

A Ponte voltou a questionar a Polícia Civil, por meio da Secretaria da Segurança Pública (SSP), sobre a investigação do caso e o motivo de o delegado pedir a prisão de Kauã com base apenas no reconhecimento irregular. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte resposta:

O caso foi investigado por meio de um inquérito policial instaurado pelo 66º Distrito Policial (Aricanduva), sendo relatado ao Poder Judiciário em 8 de agosto deste ano. O pedido de prisão dos cinco suspeitos, incluindo o homem mencionado na reportagem, ocorreu após o reconhecimento fotográfico e, posteriormente, também foi realizado o reconhecimento pessoal pela vítima, além do cumprimento de mandados de busca e apreensão e outras diversas diligências, de acordo com o Código de Processo Penal. No decorrer das investigações, com a coleta de novas provas, houve dúvida razoável do envolvimento do jovem, o que motivou a autoridade policial a representar pela soltura.

Contatamos o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) sobre o pedido de prisão e acusação contra Kauã sob o mesmo argumento. A assessoria disse que o órgão “não se manifesta em casos sob investigação”.

Procuramos também a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) a respeito das condições do CDP de São Bernardo do Campo e aguardamos retorno.

Reportagem atualizada às 11h, de 14/10/2024, para incluir resposta da SSP.

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