Após filmar violência policial, testemunha é ameaçada por PMs: ‘Temos que ter coragem para filmar’

    Gerente registrou momento em que PMs espancam jovem algemado e detido na periferia de São Vicente, litoral de SP. Rapaz foi seguido e ameaçado, precisando se esconder, por gravar ação

    O gerente de padaria Tiago*, 27 anos, estava no trabalho por volta das 16h quando presenciou uma ação policial extremamente violenta contra um jovem, algemado, detido e desarmado, na rua Augusto de Oliveira Santos, no Jardim Quarentenário, periferia de São Vicente, litoral sul do estado de São Paulo, na última quinta-feira (4/2).

    A cena assustou Tiago, que imediatamente pegou o celular para gravar a ação dos policiais militares da 3ª companhia do 39º Batalhão da PM em São Vicente. Eram ao menos cinco PMs contra um jovem, que foi espancado por cerca de cinco minutos.

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    No 3º DP de São Vicente, os PMs narraram uma versão diferente do que as imagens registradas por Tiago apontam. De acordo com documentos da Polícia Civil, assinados pelo delegado Lucas Santana dos Santos e registrado como resistência, os PMs Fabio Jefferry, 48 anos, Leonardo Giannotti Pedrosa, 30 anos, colocados no registro policial como vítimas, Disnei Aparecido Gil da Silva, 31 anos, testemunha, e Jessica Silvino, 29 anos, condutora, o jovem Murilo Augusto Soares de Souza, 23 anos, demonstrou nervosismo ao avistar os policiais e por esse motivo foi abordado.

    Na abordagem, ainda de acordo com os documentos da Civil, Murilo agrediu os policiais Fabio e Leonardo com cabeçadas, machucando as pernas esquerdas dos dois PMs. Mas as imagens registradas por Tiago mostram os quatro policiais citados no registro policial, e mais alguns, agredindo Murilo, que estava algemado.

    Quando as agressões pararam, os PMs checaram as informações e viram que o jovem havia violado a condicional e não retornado para o Centro de Detenção Provisória de Mongaguá, onde cumpria pena por violência doméstica.

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    No mesmo dia, Tiago começou a ser perseguido e ameaçado por policiais militares do mesmo batalhão que os policiais que efetuaram a agressão. “Eles entraram na padaria e me ameaçaram, falaram que eu estava defendendo bandido e que se com farda eles faziam isso imagina sem. Eles falaram que ia ser tanto tiro que não ia sobrar cadeiras”, conta.

    “Eu, com medo de tudo aquilo, peguei e divulguei o vídeo, porque pensei comigo que ia ser só mais um, sem defesa. No que eles viram o vídeo na internet, começaram a passar na padaria, me ameaçar pela internet. Eu vou brigar pela minha vida e pelos direitos humanos, o que eles fizeram com o rapaz não é certo. Se o rapaz tava devendo para justiça, que prendesse ele. A função da polícia é prender, não torturar. Foi uma covardia”, desabafa.

    Ameaças que Tiago recebeu pelo Facebook

    Tiago pediu demissão da padaria e está escondido desde o dia da agressão. Apesar do medo, ele pede para que as pessoas não deixem de filmar as ações da Polícia Militar: “Ter gravado salvou a vida do menino. Os policiais falaram para mãe dele: a gente não matou seu filho porque tinha muita gente na rua filmando”, afirma.

    “Um estava com o pé no pescoço, outro na cabeça, um no pulmão. Ia ser só mais um que ia entrar nas estatísticas. Eles invertem a situação. A gente tem que filmar, temos que ter coragem para filmar. A polícia causa terror na comunidade, causa terror no cidadão. Eles querem que eu pague por algo que não é crime, é meu dever filmar. Se a gente tiver medo, isso não vai mudar”.

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    O advogado criminalista Rui Elizeu de Matos Pereira, que tem atuação em direitos humanos na Baixada Santista, está auxiliando a família de Murilo e Tiago. Para Rui, esse é mais um caso lamentável de violência policial “com tortura em plena via pública e à luz do dia, com pessoas passando. Vários policiais promovendo um massacre em uma pessoa algemada e caída”.

    “Apresentamos a mãe do rapaz agredido e a testemunha, que está com a identidade preservada. Apresentamos no Gabinete da Promotoria Criminal, do Ministério Público, e o promotor ouviu as duas partes, preservando as identidades, pedindo a instauração de inquérito pela Polícia Civil e pediu providências junto à Corregedoria da Polícia Militar. Estamos aguardando as notificações para que as partes sejam ouvidas”, conta o advogado.

    “Precisamos combater a violência policial, a situação está muito difícil. Não podemos permitir que pessoas pagas pelo Estado, armadas pelo Estado e fardadas pelo Estado promovam o terror. Os policiais serão identificados e reconhecidos para serem processados criminalmente a administrativamente”, completa.

    Outro lado

    A reportagem procurou as assessorias da Polícia Militar e da Secretaria da Segurança Pública, solicitando entrevista com os PMs Fabio Jefferry, Leonardo Giannotti Pedrosa, Disnei Aparecido Gil da Silva e Jessica Silvino e com o delegado Lucas Santana dos Santos.

    Também encaminhamos os seguintes questionamentos após informar que o caso já havia sido notificado ao Ministério Público e à Corregedoria da PM paulista:

    1) Por qual motivo o caso foi registrado como resistência pelo delegado Lucas Santana dos Santos sem que a Polícia Civil fizesse diligências para obter imagens como as citadas acima que mostra o despreparo dos policiais militares durante os minutos de agressão e tortura ao jovem abordado?
    2) Como a SSP e a Polícia Militar protegerão a testemunha ameaçada de morte unicamente por filmar uma ação da PM, ato garantido em nossa Constituição?
    3) Os policiais que participaram da ação serão punidos?

    Apoie a Ponte!

    Como resposta, recebemos a seguinte nota:

    “A Polícia Militar esclarece que o 39º BPM/I instaurou Inquérito Policial Militar (IPM) e apura todas as circunstâncias relacionadas à abordagem, ocorrida na última quinta-feira (4), em São Vicente. Até o momento, não foram localizados registros de boletim sobre as ameaças ou denúncia formalizada junto à Corregedoria da PM. A mesma se encontra à disposição da vítima, para devida apuração dos fatos”.

    *O nome da testemunha foi alterado para proteger sua identidade

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