Após interpretar vítima de violência policial em clipe, jovem é morto nas mãos da PM

    Luiz Henrique Oliveira Reis, 24 anos, dirigia moto sem capacete na Cidade Tiradentes, zona leste de SP, e fugiu de abordagem por estar com os documentos vencidos; ele deixa filho de 5 anos

    Era tarde do domingo, 27 de setembro, quando Luiz Henrique Oliveira Reis, 24 anos, decidiu dar uma volta de moto pela Cidade Tiradentes, zona leste da cidade de São Paulo. Seria seu último peão com sua Honda CB 750X. Ele morreu em uma ação da PM com um tiro nas costas, numa história cuja versão oficial é bem diferenta da versão de testemunhas.

    O veículo era dele, segundo a família, mas estava com os documentos vencidos. O jovem dirigia pelas ruas da quebrada sem capacete e sem camisa. Familiares contam que ele estava em casa quando decidiu sair para aproveitar a sua folga.

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    Uma viatura da PM passou pelo seu caminho, com os policiais decidindo abordá-lo. Henrique, como era chamado em casa, optou por tentar fugir com medo de perder o veículo. Testemunhas relatam que, em determinado momento, ele desceu da moto e tentou fugir correndo. A partir daí há três versões sobre o tiro que o matou.

    Segundo a família, o rapaz teria levantado as mãos e se entregado e, mesmo assim, foi baleado; testemunhas dizem que ele tentou pular um muro e, de costas, foi atingido; já a polícia afirma ao portal R7 que ele apontou uma arma e, por isso, os policiais atiraram.

    A Ponte conversou com moradores da Cidade Tiradentes e um familiar de Henrique. Todos questionaram a versão de que ele estaria armado. Um vídeo registra o momento em que as pessoas o tiram de dentro de um córrego, onde caiu ao ser atingido. Não aparece nenhum policial nas imagens, mesmo a corporação dizendo que foram os PMs que o socorreram.

    Luiz Henrique trabalhava em uma adega próxima de sua casa, deixa um filho de cinco anos, que vivia com ele, os pais e uma irmã. “A polícia não chamou a ambulância, foram os moradores. E se fosse pela polícia o corpo dele tinha ficado no córrego”, denuncia um familiar de Luiz Henrique. “A versão que deram está totalmente distorcida”.

    O jovem foi enterrado na manhã de segunda-feira (28/9) no Cemitério do Lajeado, em Guaianases, bairro vizinho de Cidade Tiradentes.

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    Segundo parente, o rapaz era bastante brincalhão no dia a dia. “Era muito carinhoso, não brigava nunca”, conta, dizendo que ele costumava chegar do trabalho entre 20h e 21h. “Ele tomava banho e ia jantar, depois ia para o quarto com o filho e ficava jogando vídeo-game até dar a hora de dormir”.

    A morte gerou revolta na região. Moradores queimaram ao menos um ônibus. Houve denúncias nas redes sociais, como a feita pelo MC Cebezinho, morador do extremo leste da capital paulista.

    O MC contou em uma publicação no Instagram que Luiz Henrique havia feito um clipe com ele em que o protagonista morria em uma fuga de moto. “Após gravar esse clipe, troquei a maior ideia com ele. Tinha filho para criar”, conta.

    Luiz Henrique era dono de uma Honda CB 750X | Foto: Arquivo/Ponte

    No clipe de “Aventura Perigosa”, Luiz Henrique interpreta um jovem de 19 anos que rouba uma moto na Cidade Tiradentes e é morto após dar fuga na PM.

    A diferença do clipe para a vida real é que os policiais identificam se tratar de um veículo roubado ao puxar a placa pelo sistema oficial, enquanto a moto de Luiz Henrique não tinha queixa de roubo. Afinal, o veículo era dele.

    “O moleque tentou correr para não perder a moto, tentaram passar por cima dele, deram tiro nas costas. Tiraram a vida do moleque, sem dever nada, não estava armado”, desabafa o MC.

    Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, considera o relato da morte de Luiz Henrique como o de uma “ação desproporcional e em dissonância com todos os protocolos”.

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    Segundo ele, a fala dos policiais de que o homem apontou uma arma se baseia em uma “narrativa padrão de fundada suspeita para validar a abordagem e de resistência à atividade policial pra validar o uso da força letal”, afirma.

    O vídeo do corpo sendo retirado do córrego diz o contrário da versão dada pelos PMs, de eles terem socorrido o jovem. Por conta disso, Pacheco considera que “existe sim motivo pra suspeitar de fraude processual em virtude disso tudo”.

    “Existe um problema ainda anterior [ao socorro]: a polícia não está autorizadas a prestar socorro nesse tipo de caso, justamente porque existe um histórico de alteração da cena das ocorrências e tudo mais que já conhecemos”, justifica.

    Rapaz deixa um filho de 5 anos | Foto: Arquivo/Ponte

    A resolução 05/2013 da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo proíbe que os policiais prestem socorro a pessoas baleadas em ocorrências. Determina que o procedimento é acionar o Samu para prestar o atendimento médico no local.

    O pesquisador detalha que a regra vale para “afastar suspeitas de supostas prestações de socorros como meio de descaracterizar ocorrências, que é o que parece ter havido nesse caso”, explica o pesquisador.

    Outro especialista a estranhar o relato policial é Gabriel Sampaio, advogado coordenador do programa de Enfrentamento de Violência Institucional da ONG Conectas.

    “Os elementos indicam fraude e até a possibilidade de outros crimes”, analisa, ao assistir ao vídeo e comparar com a versão de socorro por parte dos PMs. “Muito importante que haja apuração, sobretudo, do horário da ocorrência, a suposta entrada em hospital e o B.O.”, completa.

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    Segundo ele, o documento da Polícia Civil “demonstrará claramente que ele não foi levado por policiais e, eventualmente, o tipo de ferimento que causou a morte”. “O que pode trazer elementos importantes para a investigação”.

    A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos nesta gestão João Doria (PSDB). Em nota, a pasta explicou que o DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) investiga o caso, bem como a Corregedoria da PM.

    “A Polícia Militar abriu IPM para apurar as circunstâncias da ocorrência, que também será analisada pela Comissão de Mitigação de Não Conformidades, no Comando Regional. A comissão trabalha para ajustar protocolos de atuação e procedimentos operacionais padrão”, adicionou a secretaria.

    Atualização às 19h18 de terça-feira (29/9) para incluir posicionamento da SSP.

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