Juíza reconheceu que Judiciário errou ao condenar motorista por crime que não cometeu e determinou pagamento de R$ 184 mil; mesmo inocentado, jovem negro foi recusado no aplicativo 99 por “antecedentes criminais”
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu que o motorista Vinicius Silva Villas Boas, de 38 anos, ficou preso injustamente por dois anos e condenou o governo do estado a indenizá-lo em R$ 150 mil por danos morais e ao pagamento de um salário mínimo por mês correspondente ao tempo que ele ficou encarcerado — totalizando, aproximadamente, R$ 184 mil.
A sentença da juíza Patricia Persicano Pires, da 16ª Vara da Fazenda Pública, foi publicada na terça-feira (20/2). Ela considerou que a decisão que absolveu Vinícius no ano passado atestou que a condenação dele por roubo aconteceu por erro do Judiciário, já que o jovem negro foi reconhecido de forma irregular e as supostas provas levantadas pela Polícia Civil não indicaram, de fato, participação dele no crime.
“Não se pode negar que a prisão fruto de erro causa dano moral à pessoa presa. O sofrimento por ela experimentado é inegável e independe de demonstração”, escreveu a magistrada. “E, tendo a prisão se prolongado por mais de dois anos, está caracterizado o dano moral sofrido pelo autor. O cárcere é sempre ofensivo e degradante e, no mínimo, ofende o direito de liberdade de quem é livre. Essa ofensa à liberdade, direito que se pode dizer também da personalidade, exige reparação, de modo que tem o Estado a responsabilidade de compensar o dano moral. A prisão indevida não decorreu de ato do demandante, mas de falha no serviço judiciário.”
A juíza, contudo, atendeu apenas parcialmente os pedidos de Vinícius, pois ela negou a solicitação de indenização por danos materiais e também reduziu o valor pelos danos morais solicitada por ele, que era de R$ 1,4 milhão. Por isso, ele afirma que vai recorrer. “A gente fica muito feliz de o Judiciário ter reconhecido o erro, mas o valor ficou muito abaixo porque não paga nem o que eu gastei com advogado”, disse o motorista à Ponte. “Eu tive que vender minha casa e a pizzaria que eu estava montando com a minha esposa, fora os danos psicológicos que eu e minha família tivemos nesses sete anos de luta.”
Os advogados Nugri Bernardo de Campos e Ingryd Silvério dos Santos, que representam Vinicius, anexaram reportagens da Ponte, que em 2019 já tinha contado pela primeira vez as lacunas da investigação da Polícia Civil. Vinicius tinha sido acusado por dois roubos à residência ocorridos em 2016 na cidade de José Bonifácio, no interior paulista, após reconhecimento irregular com fotos dele retiradas do Facebook. Em um dos casos, ele foi condenado a sete anos de prisão.
Só em 2023, após um pedido de revisão criminal, o TJSP o absolveu pelo crime. Na decisão, a matéria da Ponte foi usada para fundamentar o voto do relator, o desembargador Marcelo Semer (confira a imagem acima). O resultado influenciou o inquérito relacionado ao segundo roubo pelo qual Vinicius ainda estava respondendo e o caso acabou arquivado.
Mesmo longe do sistema carcerário
Apesar de absolvido, Vinicius ainda sofre sequelas da condenação injusta. Após um período trabalhando como analista de pricing numa empresa, ele resolveu pedir a contas e começar a trabalhar como motorista de aplicativo junto com a esposa Carolina Garcia.
Vinicius conta que, quando tentou se cadastrar na plataforma da 99, em outubro do ano passado, a empresa negou o registro mencionando “antecedentes criminais”. Vinicius recorreu e pediu a revisão. “Mesmo mandando a certidão de antecedentes criminais que mostrava que eu não devia nada, eles negaram de novo”, disse.
A Ponte teve acesso às mensagens em que a 99 afirma que “o cadastro não foi concluído por registros de antecedentes criminais em seu nome ou CPF”. Depois, ao recorrer, Vinicius recebeu a mensagem de que o cadastro não foi aceito. “Infelizmente você não cumpriu os requisitos para ser um motorista 99”, diz o texto.
Neste mês, ele entrou com uma ação judicial contra a 99 em que pede que ele seja cadastrado e também uma indenização de R$ 10 mil pelos danos morais sofridos, já que se sentiu discriminado e não teve o mesmo problema em outras plataformas de transporte por aplicativo. Este processo está em andamento e ainda não teve uma decisão.
O que diz o governo de São Paulo
A Ponte contatou a Procuradoria Geral do Estado (PGE), que representa o governo paulista no processo, sobre a condenação. Por nota, a assessoria informou que ainda não foi notificada sobre a sentença.
O que diz a 99
A reportagem também buscou a empresa sobre o cadastro de Vinícius na plataforma e o processo que ele move, mas não teve retorno até a publicação. O espaço segue aberto.