Flavio Santos Silva passou dois e anos seis meses em regime fechado acusado de ter participado de um assalto a um sítio, após ser reconhecido de forma irregular; a Ponte chamou a atenção para o caso em fevereiro passado
A alegria está voltando para a casa de Marineide Silva Santos, 52 anos. O Superior Tribunal de Justiça concedeu o habeas corpus para o seu filho, Flávio Silva Santos, preso desde novembro de 2019, após ter sido acusado de participar de um roubo a um sítio localizado em Itapecerica da Serra. A prisão teve como base apenas uma foto retirada do seu Facebook.
A felicidade plena se dará na próxima semana quando o auxiliar de carga e descarga deixar a penitenciária de Taquarituba, no interior do estado de São Paulo, e retornar para casa da família na cidade de São Carlos. “Eu não queria dar essa notícia por telefone, por isso vim até a casa da minha mãe que o STJ concedeu a liberdade para ele”, conta Tarcísio Silva Santos, irmão de Flávio.
Em sua decisão, o ministro Ribeiro Dantas afirma que o reconhecimento de Flávio através apenas uma imagem não poderia ser a única prova que justificasse a prisão dele durante todo esse período.
“Não houve prisão em flagrante, a res furtiva não foi encontrada na posse do paciente, e não foram ouvidas outras testemunhas além das vítimas […] O autor do delito estaria encapuzado no momento da empreitada criminosa, que, certamente, poderia comprometer o reconhecimento feito pela vítima que, inicialmente, ocorreu apenas com base em fotografias”, diz um trecho do Habeas Corpus assinado por Ribeiro Dantas.
Tarcísio Silva Santos lembra que o período que o irmão passou dentro da cadeia desestruturou a família financeiramente e no aspecto emocional. Por outro lado, deixou todos mais unidos porque todos acreditaram na inocência do irmão e sabiam que, em algum momento, ele ganharia a liberdade.
“Minha mãe nunca foi visitá-lo porque a gente achou melhor ela não vê-lo lá dentro. Eu sempre estive ao lado dele. Fui em todas as visitas que pude, só não fui durante a pandemia porque não podia e sempre levando força e esperança para ele. Mesmo depois que ele foi condenado, a gente nunca perdeu a esperança que ele seria solto”, revela.
Ansioso pelo retorno do irmão, ele diz que a família está feliz com a decisão do STJ, mas sabe que o futuro do irmão do lado de fora das grades não vai ser fácil e que o período em que ele esteve encarcerado foi duro para todos.
“A nossa preocupação e a dele a partir de agora é em relação a trabalho, porque a gente sabe que a sociedade vira as costas para um ex-presidiário, mesmo que ele tenha sido absolvido. Meu irmão foi injustiçado. O Estado não quer saber das pessoas que estão presas, na verdade o Estado quer que quem está lá dentro morra”, desabada Tarcísio.
Entenda o caso
A Ponte contou a história da prisão de Flávio Silva Santos em fevereiro deste ano, em matéria assinada pela repórter Elisa Fontes. Na ocasião, a advogada criminal Débora Nachmanowicz de Lima analisou o processo a pedido da reportagem e apontou diferentes falhas, principalmente por ser uma foto retirada das redes sociais a única prova a sustentar o pedido de prisão do auxiliar de carga e descarga.
Diante do que viu, Nachmanowicz se colocou à disposição da família, que decidiu procurá-la para representar a defesa de Flávio. “Eu achei tudo absurdo ao ler o processo, a maneira como se deu o reconhecimento. Então eu tive esse primeiro impulso de oferecer essa ajuda. Quando efetivamente eu peguei o caso e ouvi toda a audiência, tudo ficou muito mais absurdo”, explicou a advogada.
A advogada fez um gráfico onde mostra a sucessão de equívocos cometidos em todo o processo, argumentando as falhas da acusação baseada apenas no reconhecimento facial de Flávio Silva Santos.
“Depois que a Ponte entrou na história e fez a matéria, a gente começou a divulgar onde podia. Depois disso, tudo mudou. Inclusive a nossa expectativa. Foram mais de dois anos recebendo diversos nãos. Chega uma hora que a gente dá uma baqueada. Depois disso veio a doutora Débora e depois foi só bençãos. Graças a Deus”, diz a aliviado Tarcísio Silva Santos.
Em 28 de novembro de 2019, Flávio foi acusado de participar de um roubo a um sítio localizado na Rodovia Régis Bittencourt, na altura de Itapecerica. Segundo as investigações da Polícia Civil, uma foto retirada do Facebook foi suficiente para incluí-lo o como um dos oito suspeitos encapuzados que invadiram a propriedade no dia do crime.
Oito meses depois, no dia 11 de agosto de 2020, ele foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a 13 anos e 5 meses de reclusão com base em um reconhecimento irregular e cumpriu pena em regime fechado na Penitenciaria de Taquarituba, no interior de São Paulo, a mais de 300 km de casa.
De acordo com o boletim de ocorrência assinado pela delegada Gina Alves do Rosário, um agricultor compareceu na Delegacia de Polícia de Itapecerica da Serra para relatar o roubo que acontecera dois dias antes, em 26 de outubro de 2019, às 05h30, em seu sítio. Em depoimento, a vítima diz que estava com familiares e funcionários na residência quando todos foram surpreendidos e rendidos por oito assaltantes que estavam armados e encapuzados na sua maioria com toucas “ninja” e até usavam luvas. Durante a ação, alguns deles agiram com violência agredindo algumas das vítimas, entre eles um idoso. Segundo o agricultor, um dos assaltantes abaixou a camiseta que improvisou para cobrir o rosto e que, em certo momento, seus companheiros o chamaram de “Luís”. Foram levados celulares, eletrodomésticos, R$ 20.000 em espécie, US$ 7.000 e € 1.000, além de ienes.
No relatório de investigação, as policiais civis Mirileia Barroso Cunha e Jane Cazuza F. Cordeiro informaram que Flavio negou envolvimento no roubo e que não foi encontrado nenhum outro elemento e prova que pudesse incriminá-lo, além dos reconhecimentos fotográfico e pessoal.
Durante meses, a defesa de Flavio apresentou pedidos de liberdade com recibos dos dias de trabalho, a comprovação de residência fixa, as contradições do processo, mas todos foram negados pela Justiça. O Ministério Público se manifestou pela condenação somente de Flavio, que reafirmou sua inocência e disse que no dia do roubo foi para a casa da mãe junto com a esposa, logo pela manhã, como de costume. Já no andamento da audiência, que aconteceu de forma remota em agosto de 2020, o juiz Bruno Cortina Campopiano da Comarca de Itapecerica da Serra pediu que vítima reconhecesse mais uma vez Flavio.
Na sentença, o magistrado argumenta que a condenação de Flavio se sustenta pelo fato de ele ter sido reconhecido pela vítima “sem qualquer hesitação por parte do ofendido”, contrariando diversas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que admitem que o reconhecimento fotográfico não é suficiente para condenar o réu.
(*) Atualizada em 14/5, às 19h52, para corrigir o trecho da decisão do ministro Ribeiro Dantas