Artigo | A militarização da vida: o Estado que só chega com a PM

    Atitude da PM na desocupação da comunidade do Moinho é exemplo de como, no Brasil, educação, saúde e habitação viram sempre caso de polícia

    Moradora protesta diante de policiais militares na entrada da Favela do Moinho em agosto de 2024 | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    A presença da PM de São Paulo na Favela do Moinho ao longo de todo o feriado de Páscoa e Tiradentes teve como justificativa o argumento de que a corporação prestava ali um “papel humanitário”. Da Sexta-feira Santa até a segunda-feira, moradores relataram incursões policiais com bombas de gás lacrimogêneo e ameaças a quem mora e construiu a vida naquele local. 

    Militares em missão humanitária sempre me remetem à experiência desastrosa do Exército brasileiro na “missão de paz” do Haiti. Ou ainda, sem precisar ir tão longe, à intervenção militar no Rio de Janeiro. Não sei de quem foi a ideia de que pacificação e humanitarismo poderiam se ligar à lógica de uma corporação treinada para combater inimigos.

    Leia mais: Primeira família a deixar Moinho atribui saída a proteção da filha contra PM: ‘Jogam gás, não dá para respirar’

    Não é incomum que as PMs brasileiras atuem continuamente em áreas onde políticas públicas estão ausentes. Não é papel da polícia acompanhar a mudança de moradores que aceitaram sair da favela – este papel seria de equipes de Habitação, Assistência Social e Saúde, para prestar apoio especializado a essas pessoas. Tanto que, quando agentes da CDHU pediram o afastamento dos PMs da Favela do Moinho na terça-feira, os ânimos se acalmaram. A Defensoria também esteve presente para acompanhar e apoiar moradores em caso de dúvida quanto aos contratos oferecidos pelo governo do Estado.

    O famoso Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência), implantado nos anos 90 na esteira da tal guerra às drogas, foi uma das entradas da polícia na área da educação. Nunca estive perto de PMs até ter um deles na minha sala de aula explicando o que fazer se me abordassem com drogas. Eu tinha dez anos e a única coisa de que me lembro é a musiquinha do programa e de bater continência quando houve a troca de nossa PM instrutora por outra. 

    Aprendendo repressão na escola

    Um estudo realizado pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) em 2021 demonstrou a ineficácia desse programa em prevenir o uso de drogas nas escolas estaduais em São Paulo entre crianças e adolescentes.

    Quando alunos protestaram de forma pacífica contra o fechamento de turmas em uma escola da zona norte da capital paulista, a PM os reprimiu. Os militares tiraram os adolescentes do recinto escolar. Houve relatos de violência, atropelamentos e apreensão de menores desacompanhados. Desde essa ocasião, conforme apuramos na época, três viaturas ficavam diante da escola durante o período de aulas. A presença militar em escolas só vai fomentar mais violência e uma cultura do silêncio em toda a comunidade escolar.

    As atuações de forças de segurança em áreas como saúde também são desastrosas. Basta ver que, por mais presença que a PM e a GCM tenham, a Cracolândia segue imutável. Afinal, é uma questão para a saúde, para a assistência social, para a habitação — e não para quem está preparado para a violência. A atuação de agentes na contenção de pessoas em surto já terminou, diversas vezes, na morte de quem, em geral, não tinha qualquer arma de fogo nas mãos. Em Santa Catarina, a PM precisou de 4 tiros e uma porção de policiais para conter uma pessoa com deficiência, que morreu desarmada depois de uma ação realizada no começo do ano.

    Leia também: ‘Querem nos dar uma dívida’: favela do Moinho protesta contra remoção sob pressão da PM

    Quando o Estado falha em prover políticas públicas para melhorar as condições e o acesso a direitos para pessoas mais vulnerabilizadas, e entrega essa função para as mãos das polícias, ele falha miseravelmente — independentemente da cor política de quem governe no momento. Torna-se anencéfalo, recorrendo há décadas à mesma tática falha, sobretudo nas periferias, nas favelas, nos quilombos, nas aldeias — onde tudo é caso de polícia. 

    Uma estrutura de Estado que provenha políticas públicas efetivas, que supram diferentes necessidades de diferentes territórios, não apenas melhoraria a qualidade de vida das pessoas nesses locais, mas também seria mais eficiente como política de segurança pública.

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