Magistrados, promotores e procuradores, 80% deles brancos, aumentaram o encarceramento em massa da população negra com base numa interpretação punitivista da lei de drogas de 2006
Outro dia meu genro que contou que ele e minha filha saíram para passear com meu neto, em uma praça no centro de São Paulo, a maior cidade do Brasil, quando foram abordados por um grupo de policiais. Meu neto, de dois anos, não entendeu nada ao ver o pai ser parado e revistado por homens fardados. Tenho 40 anos a mais do que ele, mas também não entendo e muito menos aceito, mesmo sabendo que situações como essas são comuns no Brasil. Eu mesmo não costumo passar por isso, ao contrário do meu genro. Eu sou branco. Ele é negro.
Num país que durante tanto tempo se enganou dizendo ser uma “democracia racial”, posso dizer que não costumo ser abordado pela polícia na rua, mas meu genro me conta que chegou a ser alvo de 20 abordagens policiais em um ano. Para quem é negro, são abordagens que geram medo. Medo de morrer: os negros são 56% dos brasileiros, mas correspondem a 79% dos mortos pela polícia. Há também o medo de ser preso, já que 67% da população prisional é formada por negros. E é muito fácil para um policial prender uma pessoa negra: basta dizer que achou alguma droga com ela.
A lei de drogas, sancionada em 2006, acelerou um processo de encarceramento em massa, que atinge principalmente pessoas negras e pobres, e que o governo brasileiro vinha promovendo desde os anos 90. Após essa lei, o número de pessoas presas por delitos ligados às drogas aumentou 156%, como aponta uma investigação da série Uma Guerra Viciada. Hoje, um em cada três presos está na cadeia por causa dessa lei. Entre as mulheres, a porcentagem é ainda maior, de mais de 60%. O encarceramento feito em nome da guerra às drogas ajudou a dar para o Brasil o título de terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 750 mil presos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
Pensada para proteger a saúde pública e a família brasileira, a lei de drogas serviu, ao contrário, para promover a morte e destruir famílias. As condições das superlotadas prisões brasileiras não são muito melhores do que as de um campo de extermínio: todo ano, morrem em suas celas em média 1.550 pessoas, a maioria de “causas naturais”, ou seja, doenças causadas pela superlotação e pelas más condições de higiene. As mulheres, principais afetadas pela lei de drogas, são separadas dos seus filhos. Em 80% dos casos, os magistrados costumam negar que as mães presas possam cumprir a pena em casa, contrariando normas nacionais e internacionais. Mulheres grávidas costumavam ser algemadas durante o parto, uma prática que só foi proibida em 2017.
Não era para ter sido assim. A lei de drogas de 2006, sancionada por Luís Inácio Lula da Silva, um presidente de centro-esquerda, se propunha a ser mais liberal e menos punitivista, ao retirar as penas de prisão para uso de drogas das legislações anteriores e endurecer as penas somente para os traficantes. Porém, na falta de critérios claros para diferenciar usuários e traficantes, a lei possibilitou que essa separação passasse a ser feita, na prática, pelos policiais militares nas ruas das cidades brasileiras. Fiel às tradições racistas, a polícia passou a adotar critérios de raça e classe para diferenciar uns dos outros. Pessoas brancas, em bairros nobres, pegas com drogas eram enquadradas como usuárias e liberadas. Pessoas negras em bairros pobres eram consideradas traficantes e presas.
O uso da lei de drogas para criminalizar negros e pobres contou com a cumplicidade de promotores e juízes. Diferentes pesquisas apontaram que, em 74% dos casos, os magistrados se basearam apenas na palavra de policiais, sem ouvir qualquer outra testemunha, para condenações por tráfico de drogas. Se o réu estava num bairro pobre, de maioria negra, é comum que isso seja aceito como “prova”.
Isso ocorre mesmo que as quantidades de drogas apreendidas sejam mínimas: em São Paulo, metade das pessoas presas por tráfico de maconha estava com no máximo 40 gramas da substância. Às vezes, nem precisa de droga. Em 2019, a Ponte Jornalismo contou a história de um vendedor de balas negro que ficou 28 dias preso por levar uma substância que “parecia” cocaína.
A facilidade encontrada pelos policiais para validar na justiça a prisão de qualquer pessoa pobre e negra, com base na alegação de tráfico, estimulou a corrupção por meio da adoção dos “kit flagrantes”. São porções de drogas que alguns policiais levam em suas viaturas para “plantar” em qualquer pessoa, negra ou pobre, que não queira lhe pagar uma propina.
A cor da pele dos magistrados e promotores ajuda a explicar porque condenam com tanta facilidade pessoas negras com base em alegações tão frágeis: 80% deles são brancos. Além disso, encontram-se entre as 0,08% pessoas mais ricas do país, graças a uma série de benefícios salariais concedidos justamente pelos governos que comandam as polícias que magistrados e promotores deveriam fiscalizar.
Criada com uma intenção antipunitivista, mas levada a cabo por policiais, promotores e juízes racistas, a lei de drogas tornou-se mais uma das tantas leis criadas no Brasil para controlar a maioria negra da população que deixou de ser escrava em 1888. Como as normas que proibiam a capoeira, arte marcial criada pelos negros, ou que criminalizavam as religiões de matriz africana e a “vadiagem”. Usada até os anos 1980, a lei da vadiagem servia para reprimir e encarcerar negros e pobres que não pudessem comprovar uma ocupação.
Nos últimos anos, diversas iniciativas, como a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, vêm lutando para mudar a políticas de drogas brasileira. Qualquer proposta de avanço, contudo, esbarra na oposição dos políticos de extrema-direita que tomaram conta do país, liderados pelo presidente Jair Bolsonaro. Uma ação que busca descriminalizar totalmente o uso de drogas corre na Corte Suprema Corte do país desde 2015, mas o processo está parado.
Nessas horas, eu só penso no meu neto e no mundo que ele vai encontrar quando for mais velho. Torço para que seja um mundo diferente, onde guerras às drogas fique no passado e ninguém mais seja humilhado ou preso por causa da cor da sua pele. E que meu neto nunca venha me contar histórias como aquela que o seu pai me contou outro dia.
(*) Fausto Salvadori é diretor de redação da Ponte Jornalismo
Artigo originalmente publicado no Washington Post, em inglês e espanhol, como parte de Uma Guerra Viciante, um projeto de jornalismo colaborativo e internacionalista sobre os paradoxos deixados por 50 anos da política de drogas na América Latina, do Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), Dromómanos, Ponte Jornalismo (Brasil), Cerosetenta (Colômbia), El Faro (El Salvador), El Universal e Quinto Elemento Lab (México), IDL-Reporteros (Peru) e Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP).