Não é possível resolver um problema que reflete múltiplas questões políticas e sociais sem a construção de um caminho pensado por toda comunidade escolar, que é quem está vivenciando as angústias diariamente
Hoje será mais um dia em que a escola pública brasileira terá que lidar com centenas de problemas que não são diretamente da escola, mas estouram no nosso colo pois aqui é a urgência e emergência da sociedade. Todas as questões das infâncias, juventude e famílias passam pela escola. Apesar disso, não somos levados em consideração para formulação das políticas públicas e nem vistos como sujeitos pela universidade, mas só nós sabemos como é estar no “front”, como é ser a base de apoio para absolutamente tudo que falta à população que atendemos.
Este é o primeiro ponto que precisa ser levantado para escapar do senso comum ou do oportunismo que quer se aproveitar do momento agudo para apresentar a polícia como solução à violência nas escolas.
Após o episódio de 27 de março que vitimou uma professora de 71 anos, surgiu um sem número de “especialistas” em educação para dizer o que deveria ser feito para evitar novos ataques. Cogitar alguma força policial dentro do espaço escolar ganhou força. No entanto, é preciso olhar com muito cuidado para esses discursos, de onde vêm e com qual objetivo se apresentam.
Para início de conversa, é necessário esclarecer que a escola compõe a rede protetiva do menor. Essa rede é responsável por denunciar, dar apoio e resguardar os direitos das crianças e adolescente e é composta também por outros órgãos e entidades como o Conselho Tutelar, os Cras (Centros de Referência da Assistência Social), Creas (Centros de Referência Especializado de Assistência Social), equipamentos de saúde, delegacias especializadas, Vara da Infância. Destaco essa informação pois quando um caso envolvendo um estudante na escola se torna público, pouco se fala sobre o papel limitado da escola e quem seriam os outros órgãos que deveriam estar atuando. De fato, é na escola que as crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo, e a que está mais próximo das famílias, mas não é por isso que deve ser a única responsável por lidar com todas as questões que envolvem um menor de idade.
É preciso que a sociedade questione o porquê da rede protetiva se encontrar tão fragilizada, o diálogo ser tão burocrático e truncado e, enquanto o que se passa com as crianças e famílias ocorre a 100 km/h, as ações da rede protetiva como um todo se arrastam a passos de lesma. Deveríamos ser responsáveis, na maior parte do tempo, por lidar com questões pedagógicas ligadas ao ensino e aprendizagem, no entanto, problemas outros borbulham e transbordam na escola e o que está alcance dela é muito limitado. Estamos sempre trocando a roda do carro com ele em movimento.
Um segundo ponto é a fronteira borrada entre educação, assistência social e segurança pública que se destacou. Pedir polícia no ambiente escolar não é uma novidade, seja por questões de “segurança” ou para coibir o uso de drogas. O Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência), que já ocorre desde o fim da década de 90 nas escolas públicas de São Paulo, tem como mote a prevenção ao uso de drogas. No entanto, uma pesquisa da Unifesp publicada no fim de 2021 comprova o que nós que estamos no chão da escola pública já sabíamos: o programa é ineficiente para evitar que os jovens experimentem álcool, cigarro e maconha. Qual seria o papel então de ter, dentro de uma sala de aula, policiais militares fardados, passando de mão em mão colete à prova de balas, motos no pátio acelerando no dia da formatura? Mais que uma propaganda da corporação, me parece haver uma exibição do poder da PM. Enquanto o leãozinho dança com as crianças, agentes, muitas vezes do mesmo batalhão, enquadram os meninos a caminho da escola.
Após o ataque na escola Thomazia Montoro, uma série de postagens de novos ataques inundou os aplicativos de mensagens e as redes sociais. Há postagens em uma rede de vídeos que alerta sobre ataques marcados para o dia 20 de abril, quando se completam 24 anos do massacre em uma escola de Columbine, nos Estados Unidos. Algumas famílias de fato cogitam não mandar os filhos para escola neste dia, muitas questionam o que a escola está fazendo para aumentar a segurança e é comum ouvir estudantes conversando sobre como escapariam de um atentado. Sabemos de relatos de alunos levando facas de cozinha para se defender de possíveis ataques. Há um certo clima de insegurança que sem dúvida é inflado pelos boatos.
Por outro lado, veículos da imprensa hegemônica e até pesquisadores de universidades renomadas, que não conhecem a realidade cotidiana da escola, nomeiam a situação como “clima de terror” e a questão que coloco é: a quem serve o termo “terror”? O que ele mobiliza? Quais soluções drásticas justificaria?
Segundo Mark Neocleous, professor de teoria política na Universidade de Brunel, em Londres, existe uma fetichização da segurança, com uma indústria que opera na lógica das commodities. A segurança privada pode ser um grande negócio. O governo de São Paulo, comandado por Tarcísio de Freitas (Republicanos) anunciou, juntamente com o prefeito da capital Ricardo Nunes (MDB), uma série de medidas para “aumentar a segurança” nas escolas. Dentre elas estão aumento da ronda escolar, com o uso do efetivo em horário de folga, e contratação de psicólogos e de empresas de segurança privada. A verba para essas contratações, R$ 240 milhões, virá da Secretaria da Educação, ou seja, parte do dinheiro que deveria ser investido na educação será destinado a pagar empresas de segurança.
Há alguns dias a empresa de segurança privada Campseg, que pertence a um irmão de um assessor especial de Tarcísio, foi denunciada por utilizar policiais militares, penais e guarda civis em seu trabalho de segurança privada. Quem serão as empresas de segurança privada que estarão nas escolas? Quem fará essa fiscalização? Qualé a probabilidade de o que aconteceu com a Campseg acontecer também com as empresas contratadas para estarem nas escolas?
Em 2019, alunos de uma escola estadual de Guarulhos faziam uma manifestação pacífica contra o diretor da unidade quando um PM foi filmado empurrando uma estudante com uma arma. Em outubro de 2021, crianças de uma escola na grande São Paulo passaram mal com o gás lacrimogênio lançado pela GCM em uma tentativa de desapropriação. Estes dois casos são exemplos do que poderia ser a presença de policiais entre estudantes. É inconcebível pensar que estaríamos mais seguros com forças de segurança entre nós.
A violência que explode na escola é a mesma que está sendo alimentada há anos nas redes, por políticos de direita que odeiam Paulo Freire, defendem o homeschooling (educação em casa) e nos chamam de doutrinadores. Grupos de extrema direita e neonazistas agem na internet em busca da adesão de jovens para sua causa. As famílias geralmente se sentem seguras quando os filhos estão em casa, no celular, e não se preocupam em ter acesso aos conteúdos e grupos dos quais participam. O diálogo entre estudantes e familiares sobre esse tema é praticamente inexistente.
Portanto, não é possível resolver um problema que reflete múltiplas questões políticas e sociais sem a construção de um caminho pensado por toda comunidade escolar, que é quem está vivenciando as angústias diariamente. O debate que se coloca no calor do momento pode ter como resultado soluções fast food, com consequências desastrosas.
Tudo que nós temos, na escola pública, é nós. Nós para desatar e nós que atam uns aos outros para que possamos ser apoio e possibilidades. A escola pública é gente, não é número, nem experimento. Reivindicamos nosso espaço para falar sobre aquilo que os “especialistas” não têm conhecimento pois a realidade se faz no cotidiano de cada dia letivo. Estamos abertos para o diálogo com os setores da sociedade, mas sem perder o protagonismo. A escola pública tem voz, é viva e sobrevivente num país que odeia pobre e odeia professor.