Artigo | Caiado e Tarcísio disputam com armas a herança da extrema-direita

Na briga pelo espólio de Bolsonaro, governador goiano comemora violência policial, ataca câmeras corporais e ainda espeta sua contraparte paulista: “PCC vende franquias em SP, Estado não pode se acovardar perante isso”

Da esq. para a dir.: Caiado, Netanyahu e Tarcísio se encontram em Jerusalém | Foto: Reprodução / Instagram

A cena do último 19 de março teria algo de patético se não fosse tão trágica. Cada vez mais isolado de toda a comunidade internacional após promover um verdadeiro genocídio na Palestina, o Primeiro-Ministro israelense, Benjamin Netanyahu, teve de contar com o apoio que lhe tem sobrado: dois governadores de estado brasileiros, que, sem qualquer autoridade, ele recebeu como se Chefes de Estado fossem.

Mas esta aparição esdrúxula do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Ronaldo Caiado (União Brasil), sua contraparte goiana, em meio a um genocídio é o capítulo de uma disputa puramente brasileira que deve ser vista com mais intensidade nos próximos anos: a disputa pelo espólio bolsonarista.

Embora a ridícula cena de Bolsonaro buscando refúgio na embaixada húngara em meio ao carnaval traga indícios, ainda não é possível cravar que Jair já seja carta fora do baralho político brasileiro. Isso não impede que a extrema-direita já movimente suas peças no país em busca de um nome que o substitua. É nesse sentido que algumas radicalizações no discurso de Caiado e Tarcísio já podem ser sentidas e, neste ponto, as polícias militares goiana e paulista parecem que cumprirão um papel central.

No caso goiano, Caiado esbanja frases de efeito para agradar sua polícia. Em novembro do ano passado, por exemplo, após um desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) criticar a truculência policial no estado e sugerir o fim da PM, Caiado gravou um vídeo pedindo pelo impeachment do magistrado. Ferrenho crítico do uso de câmeras corporais por policiais, em tom de campanha, Caiado disse recentemente à GloboNews: “Eu acho que a câmera não traz resultado nenhum, só faz inibir o policial. Cidadão quando está armado, a minha polícia entra para resolver, ela não entra para tomar tiro”.

Tanta proteção à instituição também gera respostas afetuosas do lado de lá. Ainda em 2021, até mesmo a esposa do já governador, Gracinha Caiado, recebeu um grito de guerra em homenagem feita por um batalhão da PM goiana. “Proteger autoridade é nossa maior missão, para a senhora fica fácil, pois é de coração”, cantou a tropa, ao que se seguiu uma oração assim puxada pelo comandante: “Guardando a casa da senhora em nome do nosso senhor Jesus Cristo”.

Mas a gratidão policial certamente não se resume às falas de efeito do governador. Assim como já falamos aqui de Tarcísio, Caiado também é um defensor da redução do controle civil sobre as atividades policiais. Surfando no assunto do momento, em entrevista à Rádio Bandeirantes este ano, o goiano criticou mais uma vez as câmeras corporais e as chamadas “saidinhas” (saídas temporárias de presos no regime semi-aberto), defendendo a independência para deixar a polícia trabalhar.

Uma autonomia que não fica só em palavras: em abril de 2022, Caiado alterou um decreto estadual que definia que, em momentos agudos ou de crise na área da segurança pública, qualquer ação mais enérgica deveria ser precedida da autorização do governador. A alteração eliminou esta necessidade, concedendo poder autônomo aos comandantes de tais operações. Questionado se estaria “lavando as mãos”, Caiado disse que tinha firmado um compromisso com os policiais de que não os cercearia em suas funções.

Esta autonomização das polícias, cada vez mais distantes de qualquer controle civil, vem sendo seguida à risca também em São Paulo. Já escrevi neste espaço sobre o desejo de Tarcísio de acabar com a Secretaria de Segurança Pública paulista, abandonado-a formalmente, mas cada dia mais posto em prática por seu “anti-secretário” Derrite. Aliás, não é só neste aspecto que as seguranças de São Paulo e Goiás se comunicam.

Em meio às denúncias que atingem seu primo, Jorge Caiado, denunciado pelo assassinato do ex-aliado, Fábio Escobar, o governador Ronaldo Caiado promoveu a troca de sete cargos da alta cúpula da PM goiana. Entre elas, a saída da coronel Núria, esposa do também coronel Newton Castilho, ex-secretário da Casa Militar que depôs contra Jorge Caiado ao Ministério Público de Goiás (MP-GO) no caso. O crime, segundo o MP, teria desencadeado outros 7 assassinatos, incluindo o de uma mulher grávida, e teria envolvido ao menos 12 policiais militares, além de um ex-assessor do governador.

Outra troca no comando foi a do Coronel Karisson Ferreira, o qual, segundo o jornal O Popular, vinha criticando ferrenhamente irregularidades na promoção de policiais goianos por atos de bravura. Situação semelhante à observada em São Paulo, quando, recentemente, Tarcísio e Derrite promoveram a troca de 34 coroneis em posições estratégicas. Supostamente críticos à Operação Escudo e defensores do uso de câmeras corporais, em sua maioria, eles cederam lugar a coroneis das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota).

É nesta toada que as polícias de Goiás e de São Paulo passaram a experimentar uma explosão em seus números de letalidade. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a PM goiana foi responsável por 57,5% das mortes violentas do estado, índice mais alto do Brasil, muito acima da média nacional de 16,1%. Já Tarcísio, em seu primeiro ano à frente do governo, fez a letalidade policial crescer 34% em relação ao ano anterior, chegando à mórbida marca de 434 vítimas em 2023, números que devem piorar ainda mais em 2024 com o massacre instaurado na Baixada Santista.

Mas números que ficam em segundo plano para os dois governadores, mais preocupados com suas estatísticas eleitorais e de popularidade. Caiado cita constantemente a pesquisa Atlas Intel que o colocou como o governador mais bem aprovado do país, e credita isso a sua política de “tolerância zero” na segurança pública. Opinião seguida pelo próprio Tarcísio, que recentemente disse: “Veja o Caiado. A política de tolerância zero de lá fez dele o governador mais bem avaliado do Brasil”.

Talvez por isso Tarcísio tenha mudado o tom para tripudiar das denúncias internacionais que vem sofrendo diante da explosão de violência policial em São Paulo: “Então, sinceramente, nós temos muita tranquilidade em relação ao que está sendo feito. E aí, o pessoal pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não estou nem aí”, declarou o governador paulista.

Mas a admiração de Tarcísio por Caiado, que, por sua vez, parece se inspirar no truculento presidente de El Salvador, Nayib Bukele, não parece tocar o governador goiano, que enxerga no paulista-carioca um adversário. Na recente entrevista à GloboNews, Caiado disparou: “Agora você compra franquia em São Paulo. Agora o PCC vende um quarteirão que garante que só você vai negociar a cocaína e a maconha. Nós precisamos ter a coragem de enfrentar isso. O Estado não pode mais se acovardar”.

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De fato, Caiado sabe que jogar a origem e o crescimento do PCC no colo de anos da direita ditando a política de segurança pública paulista é um fato indigesto para qualquer governador de direita em São Paulo. O goiano só parece ignorar que está seguindo exatamente a mesma receita para Goiás. Ao lado de Netanyahu, porém, o clima foi de proximidade. Para quem faz política em cima de massacres, mais valioso era tirar uma casquinha do genocida mundialmente reconhecido. Enquanto isso, quem segue tirando cada vez mais “casquinhas” do poder político no Brasil são as polícias militares.

*Almir Felitte é autor do livro História da Polícia no Brasil, mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP). Atualmente é advogado e academicamente atua nos seguintes temas: sociologia do direito, instituições policiais, segurança pública, direitos humanos e militarismo

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