Subnotificação, punitivismo que impede liberdade de presos do grupo de risco e a superlotação vão provocar mortes que ficarão camufladas pelos muros das prisões
“Eles [a direção do presídio] não passam muita informação. Apenas que tá bem e estão dando as coisas para prevenção da epidemia, mas não sabemos real mesmo, pois sabemos o quanto eles maquiam a verdadeira situação”.
Esse é o relato de um familiar ou amigo de pessoa presa colhido pela Pastoral Carcerária em sua pesquisa nacional realizada entre os dias 3 e 6 de abril para obter informações sobre a pandemia de Covid-19 nas prisões brasileiras. Em apenas três dias, a Pastoral obteve 1.213 respostas de todos os estados do país.
Passados quase dois meses desde a pesquisa, a Pastoral Carcerária continua recebendo relatos que denunciam a falta de transparência por parte do Estado no que tange às condições de vida da população carcerária em meio à pandemia.
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No dia 1º de junho, por exemplo, a Pastoral recebeu, através de formulário preenchido em seu site, depoimento que anuncia. “Não estão pegando as cartas há mais de 1 mês, não temos notícias do que realmente acontece, omitem a realidade, até quando?”.
Esses e outros inúmeros relatos colhidos ao longo da pandemia comprovam uma face já presente no sistema prisional, agravada ainda mais nesse período de calamidade: o silêncio. Desde que o cárcere se tornou paradigma de repressão – em detrimento da violência espetacularizada e explícita que havia nos suplícios e nas penas de morte, que ainda persistem – as agressões e torturas aplicadas às pessoas puníveis se basearam em uma engenharia de violência clandestina e camuflada.
A punição torturante passou a ocorrer dentro de muros altos e inacessíveis, sem transparência, possibilitando um domínio silencioso sobre corpos. Apenas quando algo que é impossível de ser silenciado ocorre – como um massacre – é que a sociedade como um todo toma conhecimento do que se passa atrás dos muros do cárcere.
A situação das mulheres presas também tem sido de grande preocupação. Se o silêncio já impera nas cadeias masculinas, nas femininas é ainda mais difícil obter qualquer tipo de informação. O encarceramento feminino é marcado pelo abandono, solidão e machismo.
Diante de taxas absurdamente elevadas de crescimento do aprisionamento das mulheres nos últimos 18 anos (698%), os dados estatísticos fornecidos pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional) apontam que 62% das mulheres presas no país não recebem visitas sociais. Desse modo, as presas têm uma média de 0,74 visitas por mês.
Para combater esse abandono misógino, a Pastoral Carcerária lançou no final de maio um questionário sobre a questão da mulher presa, que será publicado em breve. A pesquisa teve 154 respostas, que apontam para uma preocupante quantidade de mulheres que se enquadram no grupo de risco da Covid-19 e que poderiam ter sido libertadas.
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O levantamento mostrou que 34% das respostas afirmam que há mulheres gestantes presas; 20,8% que há crianças presas com suas mães; 41,6% que há mulheres idosas presas, e 51% que há mulheres presas com doenças graves.
Os dados apresentados pelo Depen e pelas Secretarias Estaduais de Administração Penitenciária não devem ser vistos como retrato da realidade. Para exemplificar a falta de transparência atual, em Goiás, no dia 14 de junho, segundo a Diretoria Geral de Administração Penitenciária (DGAP) e o portal de monitoramento do Depen, havia 14 casos confirmados e nenhum suspeito da Covid-19 nas prisões do estado, apesar da existência de 25.761 pessoas encarceradas e de notícias que informam a existência de “cerca de 600 presos que estariam contaminados”.
Outros estados, como São Paulo, Paraíba e Distrito Federal também apresentam essas subnotificação e discrepância nos dados com a realidade.
Não é possível saber o real impacto da pandemia no cárcere, pois o número de testes realizados na população prisional é muito pequeno. No dia 14 de junho, com uma multidão de 748.009 pessoas encarceradas – 3ª maior do mundo –, apenas 8.072 testes foram aplicados, o que representa 1,08% da população carcerária. Com base nesse percentual, o Depen anunciou que 2.122 pessoas presas foram diagnosticadas com Covid-19 nas prisões do país.
O que mais chama atenção nesse cenário, além da falta de transparência, é a transformação das pessoas presas em números. As informações prestadas pelos estados e pelo Depen não atribuem adjetivo qualitativo às pessoas contaminadas ou mortas.
Não se sabe sobre os nomes, as famílias, sobre os perfis socioeconômicos, os históricos de saúde. São apenas números, vítimas de um sistema prisional e de saúde deliberadamente precário e perverso.
Outro ponto que merece ser analisado diz respeito aos agentes penitenciários. Mesmo com a luta por melhores condições de trabalho provocada pelos sindicatos estaduais, os servidores que trabalham nos presídios vivenciam a degradação de suas carreiras diante do abandono estatal. E isso, mais uma vez de maneira deliberada, torna-os instrumentos e vetores de transmissão da Covid-19 para dentro do cárcere, já que eles possuem contato constante e diário com o lado de fora.
Segundo pesquisa nacional feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), publicada no dia 2 de junho, cerca de 67% dos agentes penitenciários que trabalham nas prisões não receberam equipamentos de proteção individual para se prevenirem da pandemia, como luvas, máscaras e álcool gel. No que diz respeito à preparação e treinamento, a pesquisa anunciou que 83% dos agentes prisionais não se sentem preparados ou não souberam responder se estão preparados para trabalhar em meio à pandemia. No mesmo sentido, 90,7% dos agentes não receberam qualquer tipo de treinamento para aperfeiçoamento laboral em tempos de pandemia.
Para exemplificar a negligência do Estado no que tange às condições de trabalho dos agentes penitenciários, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e três entidades sindicais representativas dos agentes em São Paulo ajuizaram Ação Civil Pública contra o estado pleiteando a adoção de medidas protetivas aos trabalhadores do cárcere. No dia 12 de junho, a 11ª Vara do Trabalho concedeu decisão liminar favorável aos pedidos formulados, determinando que o estado cumpra atos protetores aos agentes penitenciários em 176 estabelecimentos prisionais do estado, no prazo de 20 dias, sob pena de multa diária.
Com base nessa omissão estatal, os agentes penitenciários passaram a ser vítimas da Covid-19 no âmbito prisional, agravando o risco de contágio da população carcerária. Segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, no dia 10 de junho, havia 230 servidores contaminados e 221 recuperados. Pelo menos 14 agentes morreram. No mesmo caminho, segundo informações das secretarias de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF) e de Administração Penitenciária (SAP), no dia 10 de junho, 17 agentes penitenciários estariam enfermos e 224 se recuperaram. Houve pelo menos 1 óbito.
A situação não seria tão grave se não fosse a racionalidade punitivista e à resistência em desencarcerar que persiste no Poder Judiciário. Segundo levantamento feito pelo CNJ, 32,5 mil pessoas foram retiradas das unidades prisionais nos últimos três meses pandêmicos.
Por outro lado, de acordo com a última edição do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, lançada em dezembro de 2019 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, uma média de 37 mil alvarás de soltura eram expedidos mensalmente. No STF, até o dia 15 de maio, dos 1.386 habeas corpus examinados pela Corte, houve soltura ou prisão domiciliar em apenas 87 casos, o que representa apenas 6,28%, número este bem aquém da necessidade epidemiológica.
Em São Paulo, segundo pesquisa do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito de São Paulo, das 6.781 decisões de habeas corpus que mencionam a Covid-19, entre os dias 18 de março e 4 de maio, em 88% dos casos o pedido foi negado.
E assim o cárcere continua massacrando pessoas, tanto presos e presas como servidores. Enquanto não se tomarem medidas concretas e urgentes de desencarceramento e combate às precárias e torturantes condições do cárcere, diminuindo a superlotação nas prisões e garantindo que essas pessoas não sejam infectadas, veremos a persistência de um massacre camuflado no interior dos muros das prisões.
Lucas Gonçalves é assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional