Artigo | ‘Diga não à facção’: pedido de Moro não vai funcionar

    Política do ministro Sérgio Moro de combate às facções prisionais não enfrenta a máquina de moer vidas do encarceramento em massa

    Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo.

    O termo em latim magis quer dizer o mais, o melhor. A espiritualidade inaciana usa muito o termo magis, pois segundo o Santo Inácio, o magis é para o mais a favor da vida, para a paz, a justiça, a misericórdia e o amor.

    É o próprio Deus que ama, que chama, que perdoa, e não só uma vez, mas continuamente. Os seguidores de Jesus, segundo a espiritualidade inaciana nunca devem estar satisfeitos com a realidade existente, eles vivem e se deixam impelir pelo magis: no caso da Pastoral Carcerária e seus agentes, o magis, o melhor é o objetivo a ser alcançado, o desencarceramento em massa e o mundo sem cárceres.

    Aparentemente, os governantes conhecem um magis diferente, distorcido: o mais em repressão, em fome, em sarna e doenças, em tortura, em mortes, em vinganças e mais celas por todo o país. Pelo menos é isso o que os novos dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional) e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) revelam. Apesar das diferenças nos números, um fato é certo: o Brasil continua seguindo com força a política do encarceramento em massa, sendo um dos países que mais encarcera no mundo.

    Os dados do CNJ apontam para uma população carcerária de 862.292 pessoas presas em fevereiro de 2020. Já paramos para imaginar esse número? Não são meramente estatísticas, estamos falando de gente, de homens e mulheres, majoritariamente pobres, negros e jovens, que estão sendo confinados em celas superlotadas, insalubres, fedorentas, recebendo comida de péssima qualidade, quase nus, sem colchão ou um vaso sanitário decente, convivendo com baratas e ratos, fome, sede e doenças.

    E o crime cometido não importa – aliás, boa parte das pessoas presas atualmente são de presos provisórios, que sequer tiveram a sua sentença julgada – essas pessoas estão sendo torturadas, física e psicologicamente, a todo momento.

    Isso não leva a uma sociedade melhor; pelo contrário, as pessoas que entram nas prisões têm grandes chances de sair de lá piores. Qual é a efetividade e o propósito, então, dessa política de encarceramento em massa e tortura, senão ser uma máquina de moer essas vidas tidas como “descartáveis”?

    Não se pode esquecer que, junto com a pessoa presa, seus familiares também sofrem a sentença. Milhares de mães, esposas, filhos e filhas são maltratados e criminalizados pelo Estado, seja pela falta de notícias e informações relacionadas ao andamento do processo, seja pelo alto custo para manter a pessoa presa na prisão, indo visitá-la e levando materiais de higiene e alimentos – que deveria ser função do Estado, mas este não cumpre. Além disso, temem por sua integridade física, pois se conseguem fazer uma visita, têm que seguir inúmeras regras e passar pela violenta revista vexatória, condenada em lei, mas praticada cotidianamente por todo país, que envolve desnudamento na frente dos agentes, toque vaginal e agachamentos.

    E existe um terceiro grupo que sofre com o aumento desta violência multifacetada, que somos todos nós como sociedade. As vítimas não são atendidas devidamente pelo Estado, e seu sofrimento só aumenta.

    Essas vítimas de violência esperam horas para ser atendidas na delegacia, sem serem acolhidas de verdade pelas dores e angústias da agressão sofrida, esperam anos até o processo ser julgado, o que só aumenta a raiva e a indignação.

    O grito pela justiça se transforma em um grito de vingança, e assim o círculo vicioso de violência se fecha: a tortura e os massacres que os presos sofrem atrás das grades é tolerada, pois estes seres humanos são “menos dignos” de viver e merecem todas as torturas possíveis aos olhos de uma sociedade e Judiciário que veem na punição a única forma de se fazer justiça.

    Não se pode também esquecer que, de mãos dadas à essa lógica punitivista, está o magis distorcido do lucro. As décadas passadas já demonstraram que o aumento de pena, a construção de mais presídios e mais encarceramento não resolve a violência, mas oferece muito dinheiro para determinados grupos econômicos, que avançam a agenda da privatização dos presídios e de políticas de segurança pública que aumentam a militarização e vigilância, como por exemplo, as muitas empresas de segurança particular e as tornozeleiras eletrônicas.

    Utopia não é acreditar num “mundo sem cárcere”. Utópico é ainda acreditar que o encarceramento em massa é a solução para uma vida em paz, e pintar nas paredes dos presídios o aviso “Diga não à facção”, como quer fazer o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. A ideia é no mínimo uma ilusão ingênua, midiática e reducionista para acabar com a violência no cárcere. O magis que nós da Pastoral Carcerária propomos é o magis inaciano, de uma justiça que restaura, que respeita e acolhe as angústias e dores sofridas pelas vítimas, fora e dentro dos cárceres. O magis de respeito pelo ser humano, pela natureza e pela vida, independente de quem for.

    (*)Irmã Petra é coordenadora nacional da Pastoral Carcerária

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