Artigo | Don L faz a revolução ao sonhar que um outro mundo é possível

Em seu novo álbum, “Roteiro Pra Aïnouz 2”, o rapper cearense aborda o presente e o passado do Brasil com a certeza de que mudar o amanhã é uma tarefa urgente

O rapper Don L, do recém-lançado “Roteiro Pra Aïnouz 2” | Foto: Bel Gandolfo / Divulgação

“vila rica” é como uma “Mais Curta História do Povo Brasileiro” (como Zinn). Antes, um telepastor prega, ao vivo, sobre a importância de controlar e contar a própria história. O artista precisa da História com agá maiúsculo para contar também a sua própria – sabe que ambas, nas palavras de King (o Jon), não são feitas pelos “grandes homens”: reis, generais, conquistadores. A marcha-gospel, à moda dos últimos fados de Kanye West, pinta um faroeste brasileiro, El Topo y Zapata na Terra do Bandido da Luz Vermelha. Uma interpolação de “Aquarela do Brasil” engole o sentido da original. Estamos no Brasil, em 1770 e em 2021. Mateus Fazeno Rock, jovem de tudo, entoa um blues cearense que parece ancestral: “toda canção de meu amor na alma, em direção ao sul”.

“A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.”
Walter Benjamin, Sobre o Conceito de História

A partir do conceito delineado pelo artista, entende-se muito do álbum. Os “Roteiros Pra Aïnouz” (em referência ao cineasta cearense Karim Aïnouz) de Don L formam uma trilogia de autoficção contada anticronologicamente. Em RPA 3, lançado em 2017, seu tio Gabriel cantava a experiência de conhecer a São Paulo que é só “não e não e fel e fel”, o jogo duro do rap enquanto business dos anos 10 do século XXI, ainda enxergando beleza, vendo um cânion onde fica o Elevado ex-Costa e Silva, enquanto o mundo se desintegrava cada vez mais rápido.

RPA 2, por sua vez, é um disco de estrada, é sobre a decisão e os processos que fizeram de Don L “mais um nordestino em êxodo”. Esse é um momento na biografia do artista que encontra eco ao longo da carreira, do seu anúncio que estava a caminho do sul em “Êxodo e Êxito”, passando pela “terra prometida” de “Verso Livre Nº1 (Giramundo) e pela “sede de secar a Sabesp” de “Minha Lei (Remix)”.

Porém, do outro lado do tempo, os anos que se passaram entre RPA 3 e RPA 2 viram um golpe parlamentar se transformar numa ascensão fascista. E a lente com a qual Don L enxergaria o passado se aguçou. A crise crise crise em que vivemos fez com que muitos de nós déssemos uma atenção mais demorada à leitura dos sistemas que estão permitindo a permanência duradoura do “estado das coisas”. Não que não houvesse antes, mas a urgência da situação atual nos faz cortar caminhos – e, enquanto artista de seu tempo, Don pontua, em RPA 3, suas multissilábicas e multiplicidades de sentido com um foco unívoco: precisamos, para ontem, pensar num amanhã que não seja o que se avizinha do presente.

E o que chega primeiro dessa missão, no álbum, é contar ambas as (H)histórias. “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”, escreveu o filósofo judeu alemão Walter Benjamin em Sobre o Conceito de História. Um dos seus mais celebrados textos, o ensaio foi escrito em 1940, com o couro comendo na Segunda Guerra Mundial. Meses depois de terminá-lo (sem ainda ter conseguido publicar), a França, onde havia se exilado, caiu para os nazistas. Fugindo pelos Apeninos em direção à fascista Espanha, declaradamente neutra até o momento, foi preso na fronteira: o regime franquista iria deportar seu grupo de volta à recém constituída Vichy. Tirou a própria vida, e, no dia seguinte, seus companheiros de viagem foram liberados. Na mala, Hannah Arendt levava a única cópia existente do texto, que seria publicado por Hockenheimer.

Sobre o Conceito de História é como uma carta desesperada de Benjamin ao futuro, e também um lamento pelos historiadores da época, incluindo umas marteladas para a social-democracia alemã, que capitulou para Hitler. Benjamin alertava para o perigo de uma história teleológica, que acreditasse que seguimos num inevitável progresso humano – sua metáfora mais conhecida é o “Anjo da História”, baseado no quadro Angelus Novus, de Paul Klee, que:

“Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.“

Fruto do rap nacional, Don L está desde sempre vacinado contra esse “progresso”. Sua fome do ouro é outra. Para ele, a liberdade “no sentido mais pleno de sua palavra” inclui a liberdade de criar, e se você é o que você come (e portanto, é o que pode comer), subsistência e arte são a mesma coisa. Em RPA 2, liberdade e igualdade são necessárias uma à outra, e a sua realização depende, porque não, do ódio e do espírito de sacrifício, que “ se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados”. O maior elogio que Don poderá receber pelo álbum seria uma multidão de liberais horrorizados, denunciando, como aconteceu com Bacurau, as plateias aplaudindo o derramamento de sangue, um sintoma razoável de que as ideias voltaram a ser minimamente perigosas.

Como em poucas obras artísticas com um conteúdo explicitamente político tão incisivo, o discurso transborda para a música em si, gerando estranhamentos mas também invenções, como tem sido praxe na obra de Don L. “a todo vapor”, pontuada por uma sirene à Silent Hill, se constrói lentamente, épica como o rapper gosta de ser, com cordas entrando em cena bem antes da primeira batida marcial. “primavera”, um jazz-funk de fino trato à Egberto Gismonti (como “Slow Jam”, de Caro Vapor), tem Rael e Giovani Cidreira cantando macio, doce, sobre “tombar na missão”. Don L também coloca sua lírica à serviço da causa, seja na já celebrada rima multissilábica que junta “Mao com o” com “Malcolm X”, seja na capacidade de apontar e brincar com a multiplicidade de sentidos das palavras, como “flash” e, especialmente, a “boca” de “pela boca”.

A narrativa que escolhe para enquadrar seu conto de revolução é tão terceiro mundista que seria espantoso se alguém “norte global” conseguisse sacar do que ele fala. Sabedouro do sangue que aduba o solo brasileiro, ele veio cobrar um quinto que custa bem mais que 20% – e num Estado que legitima e executa essa fertilização rubra com um sádico sorriso no rosto, entende que sua saída passa ao largo desse Estado, seja em armas ou em corações e mentes aguçados pelas fantasias de bandidos hobsbawnianos. Se o que é crime é definido pelo próprio Estado, como lembrou o professor Acácio Augusto citando Foucault, RPA 2 é “a unidade política das ilegalidades populares que inverte a noção de crime como questionamento ao regime da propriedade”.

Os bandidos de Don L, que não são “do tipo que fecha com polícia”, se espalham ao longo da história, confundindo-se com um rol de revolucionários que vai de Ajuricaba a Célia Sanchez, de Milton Santos a Leila Khaled. Ao evocar os espectros de um mundo que ainda não triunfou – e, até mais, nos lugares onde esses espectros não são nominalmente evocados, quando entre drills e traps emerge a vaporwave “trilha para uma nova trilha” ou na tricknologista (de Tricky, o músico britânico) “contigo pro que for” – Don L deixa escapar uma certa melancolia. Não uma melancolia qualquer, mas a “melancolia assombrológica” de Mark Fisher, que como define o autor de Realismo capitalista em seu segundo livro, Fantasmas da minha vida, “constitui uma recusa em desistir do desejo pelo futuro. Essa recusa dá à melancolia uma dimensão política, porque se acomodar aos horizontes fechados do realismo capitalista equivale a um grande fracasso”.

Mesmo em faixas mais frenéticas, essa melancolia aparece, fantasmagoricamente, como  quando, em “favela venceu”, o produtor Nave inverte a ordem da melodia do “parrapapapa” de “Rap das Armas”, jogada para um tom menor, ou no piano elétrico e no sample de voz alongado em “volta da vitória” – tudo ao mesmo tempo nebuloso e cristalino, agridoce como uma viagem lisérgica que obriga o psiconauta a lidar com traumas e revelações. Nave, que já assinou hits de Emicida e Marcelo D2, entre vários outros, invoca um Clams Casino complementar ao Ye de Don, um espaço onírico onde o “luto fracassado” dá origem aos próprios espectros que insistem em assombrar o mundo das certezas neoliberais.

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Tal melancolia se funde num plano de resistência, e é, à sua forma, uma semente da revolução. Para além das justas imagens de violência do arco que vai de “vila rica” à “volta da vitória” da favela, para além do chamado revolucionário urgente e imediato, há um chamado à (in)consciência, um chamado pela recuperação da capacidade de sonhar com um mundo onde seja mais fácil imaginar o fim do capitalismo do que o fim do mundo, rejeitando as propagandas de Cancun que se metem num vídeo sobre Kim Il-Sung e separando o desejo pela vida dos desejos plásticos da publicidade: ​induzir o sonho dentro de um pesadelo, ​dilatar o tempo e imaginar um mundo novo.

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