Chavoso da USP: “A Polícia Militar não existe para garantir segurança pública”

    Durante estreia da série “Da Ponte pra cá”, o estudante da USP e youtuber também falou sobre música: “o funk é política por si mesmo. Mesmo que ele não se proponha a falar sobre isso, ele é político”

    “O mundo é diferente da ponte pra cá”, diz o refrão de “Da ponte pra cá”, dos Racionais MC’s, som que batiza a live de entrevista das Ponte que estreou na última quarta-feira (30/09) no YouTube. O objetivo é trazer histórias e realidades diferentes das que circulam pelos mesmos canais de sempre. E a live de estreia trouxe um personagem que criou uma ponte entre as periferias da Grande São Paulo e a maior universidade da América Latina.

    Thiago Torres é um jovem de 20 anos como outro qualquer na periferia de São Paulo. Curte funk e rap como muitos outros rapazes da Brasilândia, usa as mesmas roupas e cortes de cabelo. Estudou nas mesmas escolas públicas estaduais e, muitas vezes, sem recursos para o básico.  No entanto, ao contrário de muito de seus vizinhos, ele estuda na USP. Seu curso? Ciências Sociais, bem diferente das carreiras tradicionais como direito, engenharia, medicina, que enchem os olhos por seu status ou altos salários.  

    A soma de esses dois extremos da sua vida, a vida na periferia e a trajetória acadêmica, trouxe uma reflexão. E, na era digital, um textão no Facebook pode ir longe. O de Thiago foi compartilhado “meras” 50 mil vezes, tornando-o uma figura conhecida com um apelido especial: o chavoso da USP.

    Leia também: Por que tantos negros são alvo de prisão injusta com base em reconhecimentos

    Aproveitando a visibilidade, o Chavoso criou um canal no Youtube onde fala sobre sociologia, cultura periférica, racismo e outros assuntos. “A minha trajetória de vida é a de alguém que sentiu e sente na pele esse sistema”, contou durante a live, conduzida pelo editor da Ponte, Amauri Gonzo. Além de produzir vídeos, Thiago realiza palestras em escolas públicas, onde já dá seus primeiros passos como alguém que quer ser professor. Em suas falas, busca aproximar a vivência dos adolescentes com conceitos de grandes intelectuais, assim vai desconstruindo a mística que afasta algumas pessoas das grandes teorias sociais.

    Ouça a live em versão podcast

    Para ele, “o funk é política por si mesmo. Mesmo que ele não se proponha a falar sobre isso, ele é político”, um pensamento que faz os conservadores erguerem a sobrancelha. “Sou funkeiro, ouço funk há anos e procuro analisar [as letras] com senso crítico. Não posso ser alienado”, completa, ao reafirmar suas críticas a músicas com letras sexistas.

    Críticas ao jornalismo policialesco

    Um dos vídeos que chama atenção no canal de Thiago é “Jornalismo Policial: por que você deveria parar de assistir”, que nasceu após se atentar a letra de “Vergonha pra Mídia”, do MC Salvador. “Foi essa música que me deu o start de pensar: mano, tem outras pessoas pautando esse problema, levantando que esses programas são problemáticos”.

    “Se a música está fazendo tanto sucesso, é um sinal de que existe um sentimento coletivo dos jovens da quebrada de que esses programas são uma bosta”, avalia Thiago. Segundo ele, esse tipo de programa cria narrativas que corroboram massacres como o que houve em Paraisópolis.

    Ouça o episódio como podcast na Radio Sens!

    Ao criar o roteiro do vídeo, que sofreu censura da TV Bandeirantes, ele usou um método particular: o de uma redação do Enem. A técnica tem dado certo, afinal as mais 80 mil visualizações corroboram isso. Após muita pesquisa, trouxe argumentos que apontam para uma solução simples: a proibição de programas policiais sensacionalistas das 6h às 22h na TV aberta. A ideia, tirada da SUG (sugestão legislativa) 24/2020, está sob análise no Senado Federal.  

    Leia também: Violência policial: o que é, por que acontece e como controlar

    “Todos eles [os programas] estão contribuindo para manter esse status quo, ou seja, das pessoas acreditarem que a polícia existe para garantir segurança pública”, criticou o Chavoso. “A polícia militar não existe para garantir segurança pública. A PM existe para duas coisas: proteger o patrimônio da burguesia e para exterminar a população favelada negra”.

    Ainda sobre esse tipo de programação, ele aponta manipulação dos que aparentam ser realities do trabalho policiais. “Eles não mostram a polícia invadindo os barracos, chutando a porta, invadindo e apontando arma na cara das pessoas, torturando”, se indigna. Quando não estão na TV aberta, esse tipo reality show é produzido por uma nova categoria: os policiais youtubers que auxiliam na espetacularização da violência pública. “É absurdo você aceitar um discurso que só vem de um lado. É o próprio lado falando de si mesmo e você acredita naquilo piamente”.

    Sobrevivendo no Inferno

    Seu primeiro contato com a obra dos Racionais, Sobrevivendo no Inferno, foi na adolescência, quando finalmente conquistou um aparelho para ouvir o CD. A princípio, era alguém que curtia o som, sem se dar conta das entrelinhas cantadas por Mano Brown e seus parceiros. Lá pelos 16 anos, começou a perceber-se descrito nas letras. “Foi muito tocante para mim, marcou muito minha trajetória esse período de entendimento da minha negritude e do desenvolvimento da minha consciência de classe”

    “O rap é uma ferramenta fundamental para eu usar no meu canal”, afirma dando como o exemplo “Sobrevivendo no Inferno“, série de vídeos que fez sobre a obra dos seus ídolos. É por meio da cultura periférica, do rap, do funk que ele tenta demonstrar a importância da emancipação por meio do estudo e do conhecimento. E também provoca a discussão sobre participação política de populações excluídos. “Os políticos estão fazendo um monte de coisas, desmontando todos os nossos direitos conquistados e a gente tá aí sem fazer nada. Quem tá lá na linha de frente é a periferia”, pontua.

    O outro lado da Ponte

    A conversa com o Chavoso passou ainda por outros temas. Ele falou da sua relação com o funk consciente e teceu críticas ao capitalismo, declarando-se inúmeras vezes marxista. “A crise quem vive é a gente. Os bilionários estão ficando cada vez mais bilionários”. A íntegra desse papo você pode assistir clicando aqui.

    O “Da Ponte pra cá” é fruto do apoio do Tamo Junto, programa de membros da Ponte. Além de financiarem a estrutura jornalística que sustenta a Ponte, os apoiadores têm benefícios como grupo de Whatsapp com repórteres e jornalistas, reportagens antecipadas, newsletters exclusivas e até lives só para membros.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas