Violações praticadas contra opositores políticos no período da Ditadura Militar são como as que o Estado segue cometendo contra moradores de periferias hoje, a maioria negros
Várias pessoas que conhecem a história dos meus pais me perguntaram, nas últimas semanas, se eu estava assistindo a série global “Os dias eram assim” e, não, eu não estava. Vi uma cena ou outra, aleatoriamente, e achei interessante, mas já tinha perdido a maior parte e não me animei a começar a ver depois de não ter acompanhado nada da trama até aqui, até porque não tenho mesmo o hábito de ver nenhuma novela.
Só que na noite de segunda-feira (04/09), assistindo a um capítulo, e diante da cena que abriu o episódio, de uma pessoa sendo jogada numa vala provavelmente após ter sido torturada até a morte no episódio anterior, constatei, mais uma vez, que tenho certa dificuldade de ver tudo o que me remete ao horror vivido pelo meu pai no período da Ditadura Militar. O tempo passa e isso não muda, continua me fazendo mal.
Quem não teve nenhum familiar preso e torturado por militares não sabe como isso dói e afeta toda uma família. E, porra, foi o meu pai, o cara que sempre me inspirou na vida. Cresci com muita raiva do que fizeram com ele.
Militante da organização APML (Ação Popular Marxista Leninista do Brasil), meu pai, Luiz Antônio Sansão, foi preso em 1971, pelo DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna) em Juiz de Fora, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Este período marcou o maior derramamento de sangue da Ditadura, que teve início após a decretação do AI-5 (Ato Institucional Número Cinco), decreto que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968, suspendendo os direitos políticos, intensificando a repressão, institucionalizando a tortura. Transferido para o DOI-Codi de Belo Horizonte, meu pai permaneceu desaparecido e foi torturado, até que minha mãe, então sua namorada, e seus familiares, o encontrassem. Ele foi, então, transferido para a Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora, onde permaneceu por mais alguns meses. Depois ficou em prisão domiciliar por um ano. Julgado em agosto de 1973, foi absolvido.
O que ele sofreu e, por consequência, sua companheira (minha mãe), seus pais e irmãos, foi terrível (“brabo” mesmo, como falamos em Minas Gerais, minha terra natal). E isso marcou minha vida, a do meu irmão e minha escolha profissional. Cada um reage de um jeito: no meu caso, a opção foi por transformar a revolta com violações de direitos humanos em trabalho.
Mas sabem por que é que estou dizendo isso agora? Porque, da mesma forma que há gente que ignora até hoje o que aconteceu na Ditadura, mesmo assistindo a essas séries que retratam na ficção o período, também há muita gente ignorando que o que na época faziam com opositores políticos é o que o Estado segue fazendo com moradores de periferias, a maioria negros.
As violações praticadas cotidianamente nas favelas hoje, neste período dito democrático, são semelhantes àquelas. Pessoas são torturadas até a morte e “desaparecem”, como Amarildo; presas injustamente, como Rafael Braga; executadas por policiais nos chamados “autos de resistência”, como tantos jovens negros cujas histórias contamos na Ponte.
Dá nó na garganta. Não passa. Não dá pra engolir. Nem essa violência de Estado e nem o silêncio sorridente de uma parcela da sociedade diante da chacina, parafraseando fragmento da música “Haiti”, de Caetano e Gil.
Quando eu era pequena e ouvia as histórias dos meus pais, de seus companheiros e de tantos outros que haviam passado por tudo aquilo, não poderia imaginar que, um dia, durante minha juventude, veria essa situação pavorosa. “Na inocência de criança de tão pouca idade”, pra usar as palavras de João Nogueira na música “Espelho”, eu considerava impossível que tais violações fossem praticadas numa democracia.
Mas, infelizmente, no Brasil, a democracia não se consolidou ainda, como se vê. E num país que não conhece seu passado, a barbárie se repete, evidenciando que, sem trabalhar políticas voltadas à memória, verdade e justiça, não há a consolidação de um Estado Democrático de Direito, não há respeito à dignidade humana e as desigualdades se aprofundam.
O que aconteceu naquele período não pode ser mudado. Mas a gente está vendo no que deu e tem o dever de evitar que isso se repita. O que está acontecendo hoje pode e precisa ser mudado, com urgência. Não é admissível que pessoas acreditem que há vidas que importam menos que outras. Deveria ser de todos nós a dor de cada família que teve uma parte de si arrancada pelo Estado, que tem o dever de garantir a todos os seus cidadãos, sem distinção, o direito à vida, e não só não o cumpre como opera uma potente máquina de matar. E a gente sabe bem quem é que está sendo morto nesse massacre cotidiano.
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