Desenhos em homenagem à skatista que conquistou a prata olímpica em Tóquio não refletem a realidade de uma garota negra, nordestina e amazônida, argumenta Luka Franca, do MNU: “representatividade feminina não pode aceitar embranquecimento”
Rayssa Leal, a fadinha do skate, ganhou o coração de geral no Brasil. No último domingo (25/7) o país parou para torcer pela maranhense de 13 anos e vê-la conquistar a medalha de prata na modalidade skate das Olimpíadas.
O combo todo gerou muita emoção em todos. Primeiro por que estamos falando do skate. Modalidade estigmatizada até hoje e que nos anos 1980 foi alvo até de criminalização na cidade de São Paulo pelo então prefeito Jânio Quadros e teve sua descriminalização garantida por Luiza Erundina. A segunda é por que Rayssa Leal é uma garota negra, nordestina e amazônida – antes que venham falar de geografia é bom lembrar que Imperatriz do Maranhão está dentro da chamada Amazônia Legal, viu?
Rapidamente diversas fotos dela e suas manobras tomaram as redes sociais festejando o feito e a transformando em uma referência para mulheres e meninas de que o nosso lugar é onde nós quisermos. Porém, o que era apenas festa, celebração e discurso da importância de se investir no esporte e, especialmente, na importância da representatividade feminina nesses espaços logo descambou para mais uma demonstração de racismo recreativo.
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Alguns ilustradores e quadrinistas publicaram imagens homenageando Rayssa Leal embranquecida. O perfil da Turma da Mônica no Twitter, por exemplo, publicou uma imagem da personagem Denise como a skatista. Outros ilustradores publicaram imagens em que o tom de pele da fadinha do skate estava quase cor de rosa. O ilustrador Shiko chegou a repostar o desenho que havia feito afirmando que, ao digitalizar a imagem, a cor teria sido lavada, mas reconhecendo que quem apontou a questão do branqueamento dela na imagem estava “CERTÍSSIMO”. O ilustrador e designer Smalls também publicou uma primeira ilustração homenageando Rayssa que a embranquecia e após críticas veio a público dizendo que achava justo quem levantou a questão do branqueamento da figura da fadinha do skate e chegou a refazer o desenho com tons agora mais próximos à da pele de Rayssa.
Quando se embranquece Rayssa Leal em ilustrações para empoderamento se está recaindo no racismo recreativo. A gente tende a achar que o problema está apenas quando tratamos de estereótipos racistas na mídia, porém a falta de representatividade ou o embranquecimento dessa representatividade também entra nesse processo de que nos espaços de mídia e representação as pessoas negras e indígenas não consigam se identificar, estabelecer um elo de pertencimento entre o que vivem e onde almejam alcançar.
A permeação em diversos formatos diferentes de mídia de estereótipos é parte do que Patrícia Hill Collins vai definir como imagens de controle. No caso das mulheres negras temos diversos desses estereótipos, desde a figura passiva da mammy – retratada em filmes como E o Vento Levou… e A Resposta – até a mulher suburbana barraqueira. Todas elas sempre usadas para estabelecer um imaginário coletivo do que é a representação das figuras não-brancas na sociedade e quais são seus lugares.
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Quando se embranquece Rayssa em ilustrações nega-se a meninas negras de todo país uma figura em quem se reconhecer para além dos estereótipos racistas cotidianamente martelados em nossa cabeça. É negar também o completo do que Rayssa representa e da potência de sua vitória. Faz muito pouco tempo que conseguimos conquistar um pouco mais de representatividade positiva e rompendo estereótipos racistas na grande mídia e indústria de brinquedos. Pouco mais de 10 anos.
Sei que muitos dos ilustradores que a embranqueceram não se deram conta do que estavam fazendo. Foi no automático e foi no automático pelo fato de o racismo estruturar não apenas as nossas relações, mas também o nosso imaginário coletivo do que é positivo ou não. O fato de saber que não é intencional não pode nos furtar a apontar que estão sim embranquecendo uma menina negra, nordestina e amazônida. Tirando dela e de diversas meninas parte importante da construção de representatividade positiva que tanto se propala por aí.
Não adianta muito falar sempre de representatividade feminina nos espaços se essa representatividade aceita processo de embranquecimento de uma criança. Isso não tem nada de representatividade, mas dialoga muito mais com supremacia branca que devemos combater.
Eu quero mais Rayssas, mais Rebecas, muito mais e não apenas nos esportes, mas em diversos outros cantos midiáticos ou não. Lugar de mulher negra é onde nós quisermos e temos resistido e lutado ao longo dos séculos contra a nossa desumanização para ocupar estes espaços e não pararemos agora e nem até recuperarmos cada espaço que nos foi negado pelo racismo, patriarcado e capitalismo.
Luka Franca é jornalista e militante do Movimento Negro Unificado