Filme se propõe a corrigir o estrago à imagem do Partido dos Panteras Negras feito pela cruzada anticomunista e racista comandada pelo governo dos EUA
Judas e o Messias Negro, que chegou nesta semana aos cinemas, é uma das apostas da Warner para temporada de premiações. Conta a história do presidente dos Panteras Negras de Chicago, Fred Hampton, na sua trajetória até ser traído e assassinado por um agente duplo colocado no meio do grupo pelo FBI. O filme, com direção de Shaka King, também conta com a produção do diretor de Pantera Negra, Ryan Coogler.
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Daniel Kaluuya dá vida a Hampton e sua brilhante oratória. O ator, que brilhou no filme Corra, de Jordan Peele, transmite não só a força de Hampton, mas o quanto sua presença conseguia transparecer legitimidade e inflar as pessoas. Não à toa, o ativista conseguiu unir e trazer articulações para a luta por igualdade e socialismo. Chegou a ter como aliados grupos de pessoas brancas pobres e até o grupo The Crowns, que divergia dos Panteras sobre táticas para libertação dos negros. Vale lembrar que as articulações se estendiam a outros grupos, como os caribenhos e outros latinos.
Vilão ou vítima?
A trama toma corpo contando a história de Bill O’Neal (Lakeith Stanfield), que até então era assaltante de carros e, quando detido, recebe a “oportunidade” de se livrar da cadeia espionando os Panteras Negras e sua liderança em Chicago. A partir daí, Bill se torna chefe de segurança dos ativistas. As imagens do filme se misturam com a linha do tempo que remonta os depoimentos de Bill para o FBI. Tensão é pouco para descrever o que sentimos na dualidade que o ator Lakeith transmite com seu dilema pessoal. Fica claro que ele começa a criar simpatia com a causa, ao mesmo tempo em que sabe que corre grandes riscos.
Uma das investidas mais importantes para contar essa história é a que o longa faz questão de mostrar a movimentação do FBI na época, liderado por John Edgar Hoover para destruir o partido dos Panteras Negras. Assistimos um pouco da trajetória do programa de contraespionagem secreto do FBI dos anos 1960 e o estrago que fez para luta antirracista por direitos civis. A inegável tentativa de manter a vida tradicional dos brancos americanos, sentados em seus privilégios, como bem lembrado na canção Whitey On The Moon de Gil Scott-Heron (1970), criada um ano após os EUA levarem o primeiro vôo tripulado à Lua:
“I can’t pay no doctor bills
But Whitey’s on the Moon”
(Eu não posso pagar contas médicas
Mas o branco está na Lua)
O filme se propõem a corrigir o estrago quase que irreparável feito pelo FBI à imagem dos Panteras, numa cruzada anticomunista e racista que, por décadas, pintou os militantes como terroristas, numa mediocridade gigante e numa falsa defesa do sonho americano branco, incluindo a insistência na prisão de alguns ativistas até hoje. Além disso, traz a reprodução de todo o discurso por melhores condições de vida, que tinha no programa de café da manhã gratuito e no acesso à saúde e moradia as bandeiras defendidas pelo grupo. Judas e o Messias Negro remonta parte da história esquecida propositalmente pelos estadunidenses.
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Por isso vale destacar a importância dessa obra para além da estética ou discussão sobre fotografia e roteiro, e de disputas de premiações como Oscar. Apesar de eu acreditar fortemente que a interpretação de Daniel e Lakeith são dignas de premiação, além do excelente trabalho da direção de arte e fotografia em ambientar fielmente a época, não consigo esperar muito da Academia que premiou Green Book no lugar de filmes como Infiltrado na Klan e Roma.
O destaque é um filme de alto orçamento indo para salas de cinemas contar a história de um revolucionário, como Hampton se dizia, assassinado aos 21 anos pelo sonho americano.
Em tempos de Black Lives Matters, destaquei a importância de uma série pop como LoveCraft Country, de Misha Green, que apresentou ativistas como James Baldwin, conseguindo romper com o imaginário das pessoas que não conseguem atravessar a ideia de que existe mais ativistas negros importantes para história. E é isso que Judas e o Messias Negro faz: rompe com a tradição da história única da luta por direitos civis, insistentemente posta entre Martin Luther King e Malcolm X.
Andreza Delgado é produtora de conteúdo, cocriadora de PerifaCon, PerifaGamer e Copa das Favelas