Em diversos casos recentes, polícias brasileiras contiveram surtos, inclusive de pessoas com deficiência, na base da bala — despreparo que revela muito sobre corporações que se prestam mais a reforçar a insegurança do que combatê-la

“Por que não usaram algum gás? Por que não esperaram o tempo dele se acalmar para tentar resolver as coisas? Como eles imobilizam uma pessoa de um metro de altura com quatro tiros?”. Essas foram as palavras inconformadas de Eduarda Schmitz, filha de Ernesto Schmitz Neto, o Betinho, sobre a ação da PM de Santa Catarina que resultou na morte de seu pai durante um episódio de surto.
Por lidar com o público, era de se esperar que a polícia tivesse o mínimo de preparo para atender situações de crise. Mas, além do caso de Betinho, nos últimos meses, outros casos de abordagens a pessoas com diferentes tipos de deficiência ou em surto chamaram a atenção por seu desfecho trágico. O que todas têm em comum é a insistência dos policiais em recorrer à arma de fogo para resolver essas situações.
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Luiz Cláudio Dias foi morto pela PM de Goiás ao fazer refém uma técnica de enfermagem durante um possível surto hipoglicêmico, de acordo com a família. Denner Wesley Batista dos Santos foi morto na frente da mãe, que havia chamado o Samu para conter o filho em surto. Guilherme Jockyman foi morto pela polícia logo após ter sido salvo pelos pais de uma tentativa de suicídio. Em todos esses episódios a polícia foi acionada para ajudar na contenção.
Procedimentos da própria PM ignorados
Em 2018 e 2020, a Ponte pediu que especialistas avaliassem a conduta da PM em casos parecidos. Um terminou com a contenção da pessoa a partir de um tiro em seu pé e outro em morte. Em ambos, o método Giraldi — série de regras da PM para uso da arma em abordagens — foi indicado.
De acordo com a norma, existem quatro requisitos para que o policial dispare em uma pessoa durante o trabalho: necessidade de agir, oportunidade para o disparo, proporcionalidade em relação aos locais a serem atingidos e qualidade para “cessar” a ação. Atirar é apontado como situação extrema, “último recurso”, “quando for estritamente inevitável, e para proteger vidas inocentes, incluindo a sua [do PM]”.
O fato de haver um caminho proporcional para a resolução desse tipo de situação, como a negociação e o uso de armas não letais, deixa claro que a opção preferencial para a polícia é o que deveria ser a exceção: o uso de arma de fogo.
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Pessoas em surto não estão em sua plena capacidade racional, o que significa que não descumprem ordens da autoridade “por que querem”. A violência policial é uma prática tão cotidiana que agentes de diferentes corporações agem com naturalidade ao sacar uma arma e disparar contra uma pessoa fragilizada.
Qual era a ameaça real que Betinho, um homem com nanismo e problemas de locomoção, oferecia aos dez policiais armados que entraram em sua casa? E por que os vizinhos de Betinho conseguiam lidar com seus surtos sem matá-lo e os PM não? Esta é uma conta que não fecha e só escancara que temos corporações nas ruas do país que se prestam mais a reforçar a insegurança do que combatê-la.
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