Para Caê Vasconcelos, Heartstopper é sobre descobertas, aceitação, acolhimento, amor próprio, amor romântico, amizade e quebra de estereótipos
Quis estrear essa coluna falando do que eu mais amo: representatividade LGBT+ no audiovisual e amor. Tem uma série nova que é um ótimo exemplo de representatividade positiva no audiovisual. Quem assistiu Heartstopper, nova queridinha da Netflix, a gigante dos streamings, se apaixonou imediatamente.
Eu fui uma dessas pessoas facilmente conquistadas pela narrativa da trama: a princípio é um romance LGBT+ no ensino médio, mas a cada novo episódio a gente percebe que é muito mais. Se você ainda não viu a série, dê uma pausa aqui na leitura, vai lá assistir e depois volta pra gente conversar, ok? Porque vamos ter alguns spoilers nesse texto.
A série original da Netflix foi fielmente inspirada nos HQs de Alice Oseman. Aqui no Brasil os quadrinhos são da Seguinte, um dos selos da Companhia das Letras. Por enquanto fora publicados quatro volumes: “Dois garotos, um encontro”, “Minha pessoa favorita”, “Um passo adiante” e “De mãos dadas”, que ainda está em pré-venda. O quinto e último volume deve chegar nas mãos dos fãs em fevereiro de 2023.
A primeira temporada da série da Netflix conta a história dos dois primeiros volumes dos quadrinhos de Oseman. E, aliás, a primeira representatividade dessa história começa em quem a escreveu: Alice Oseman se identifica como uma pessoa não-binária. Isso explica porque vemos tantas bandeiras diferentes dentro do espectro LGBT+ na narrativa. Temos personagens gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e assexuais. E todas essas lutas são representadas de forma natural e simples. Como deveria ser sempre.
Se eu tivesse tido a chance de assistir uma série como Heartstopper quando eu tinha 17 anos, tudo seria tão diferente. Acho que por isso que a narrativa me pegou tanto. É muito louco pensar nisso, né? Crescer LGBT+ nesse mundo ainda é crescer sem referências. A gente liga a televisão e dificilmente conseguimos nos reconhecer no que vemos, seja no entretenimento ou nos programas televisivos. Quando aparecemos o assunto raramente é bom: costuma ser sobre morte, violência ou em representações horríveis.
Com a chegada dos streamings no mundo isso começou a mudar. Produções com pessoas trans interpretando pessoas trans e histórias de amor entre pessoas do mesmo gênero viraram mais frequentes. Mas, como a maioria das histórias ainda são feitas por pessoas cis-héteros, ainda vemos muita coisa equivocada.
Mas Heartstopper, por ter sido criada por uma pessoa trans, conseguiu acertar o arco de cada personagem. A trama é ambientada em Londres, em duas escolas: uma só para meninos e outra só para meninas.
O protagonista da história é o estudioso Charlie Spring (Joe Locke), o único adolescente assumidamente gay em sua escola, que, por isso, precisa enfrentar o bullying e a homofobia dos colegas. Charlie tem um “romance” secreto com Ben Hope (Sebastian Croft), que faz parte do grupinho dos populares. Romance entre aspas porque esse é um dos arcos importantes da série: mostrar que nós, LGBTs, não precisamos ficar em relacionamentos ruins e que nos escondem. Quando Charlie percebe isso sua vida começa a mudar.
E muda quando ele conhece Nick Nelson (Kit Connor), um dos mais populares jogadores do time de rugby da escola. Os dois viram amigos imediatamente e Charlie se apaixona. Esse arco da narrativa é bem significativo porque, por Nick ser atleta, todo mundo automaticamente acha que ele é hétero – inclusive ele mesmo. Mas, conforme a amizade com Charlie vai aumentando, Nick começa a perceber que está se apaixonando pelo amigo.
A narrativa de Nick é uma das mais importantes para mim. Quando tinha a idade do personagem, 17 anos, descobri que era LGBT+, mas não tive a chance de me perceber bissexual porque minha mãe me deu uma ordem: ou você é hétero ou você é lésbica – já que eu só me percebi trans anos depois, e contei isso aqui na Ponte.
Nick, a princípio, começa a pesquisar quizzes e vídeos para se entender. Em pesquisas do termo “gay”, o jovem chega em vídeos sobre bissexualidade e tudo começa a fazer sentido para ele. Depois que o romance com Charlie engata, Nick conta para sua mãe sobre a sua sexualidade e a reação dela foi extremamente emocionante: só acolheu seu filho. Foi impossível não chorar assistindo.
Outra personagem crucial para a representatividade de Heartstopper é Elle Argent. A gente fala muito sobre como o transfake atrapalha atrizes e atores trans e ver Yasmin Finney, uma atriz trans e negra, dando vida para uma personagem como ela é absurdamente importante. talvez só essa representação já bastaria para a história merecer aplausos, mas vai além: não existe narrativa de dor na vida de Elle.
Aliás, a forma sutil que a personagem mostra para o público que é uma menina trans é emocionante. As questões de Elle são outras: fazer amizade na nova escola e se perceber apaixonada pelo melhor amigo, Tao Xu (William Gao). Eu fiquei o tempo todo esperando alguma transfobia porque sempre somos vistos dessa forma no audiovisual e não rolou.
Elle consegue fazer amizade na escola com duas meninas: Tara Jones (Corinna Brown) e Darcy Olsson (Kizzy Edgell), que na verdade são um casal – o primeiro a se assumir na escola. Nas narrativas de Charlie e Tara vemos com mais frequência o bullying, a homofobia e a lesbofobia. O medo desses dois personagens também aparece mais do que os outros, mas, ainda assim, de uma forma que dá esperança de que, sim, podemos ver narrativas positivas de pessoas LGBTs, nas telinhas e nas telonas.
Heartstopper é sobre descobertas, aceitação, acolhimento, amor próprio, amor romântico, amizade e quebra de estereótipos. Senti emoção e esperança vendo cada um dos oito episódios que formam a primeira temporada da série – e em cada uma das páginas dos volumes dos quadrinhos.
E era exatamente isso que estávamos precisando. Não à toa o país que mais tweetou sobre a série foi o Brasil, país que sempre lidera os rankings mundiais de morte e violência da população LGBT+ e raramente pode se ver de forma positiva no audiovisual ou na televisão. Torço imensamente para que tenhamos mais e mais narrativas como essa.
* Caê Vasconcelos é homem trans, bissexual, jornalista e cria da periferia zona norte da cidade de São Paulo. É autor do livro-reportagem Transresistência: Pessoas trans no mercado de trabalho (Dita Livros) e repórter especializado na editora LGBT+. Foi repórter da Ponte Jornalismo de 2017 a 2021 e desde 2022 assina a coluna Pluralidades