Artigo | Ruan Rocha da Silva, o novo Pixote do ABC

    Como os destinos de Ruan e Pixote se cruzam, mesmo a uma distância temporal de 30 anos, e assumem traços de uma Macabéa criminalizada

    Ruan Rocha da Silva (à direita) com Sérgio Castillo na Clínica de reabilitação que frequentou | Foto: Maria Vitória Ramos

    Ruan Rocha da Silva e Fernando Ramos da Silva não possuem apenas semelhanças no último sobrenome. Há um intervalo temporal de mais de 30 anos entre as histórias e as particularidades da vida de cada um deles, mas as duas existências foram marcadas por graves mazelas impostas pelo nosso falido sistema de trucidar ou prender pobres como a solução para um Brasil melhor. Nada de um novo tempo. Ruan e Fernando se criaram em bairros humildes do ABC paulista à beira da rodovia dos Imigrantes, que liga São Paulo ao litoral: no Jardim Ipê, em São Bernardo do Campo e no Jardim Canhema, em Diadema, respectivamente.

    Ruan Rocha da Silva se tornou conhecido pela incansável marca que insiste em não deixar a pele de sua testa. Após tentar furtar uma bicicleta velha foi torturado por dois homens, que tatuaram em sua face “Eu sou ladrão e vacilão”. Os agressores gravaram a violência e divulgaram em grupos de Whatsapp, impondo, além da agressão física, uma humilhação que fica difícil de esquecer. O nome de Fernando Ramos da Silva é conhecido por muitas pessoas que acompanham o cinema nacional. O rapaz interpretou Pixote, no filme “Pixote, a lei do mais fraco” (1980), dirigido pelo cineasta argentino Hector Babenco (1946-2016).

    Fernando, o eterno Pixote, com a filha. Ele seria avô este ano | Foto: arquivo pessoal

    O paralelo traçado em suas vidas também segue o mesmo curso ao pensar no ambiente familiar. Ambos foram criados por suas mães e tinham muitos irmãos pequenos. Sem a presença de seus pais, suas lutadoras mães tiverem que deixar seus lares em busca de buscar o sustento, deixando seus filhos aos cuidados dos irmãos mais velhos ou no tentador berço das ruas.

    Suas famas repentinas poderiam ser um alívio, um grito de socorro, uma ajuda mesmo que forçada para suprir suas carências. Mas no caso de ambos a fama os atrapalhou. Podemos dizer que chegou de um jeito errado e na hora errada, talvez, como para a personagem Macabéa, de “A hora da estrela”, de Clarice Lispector. Macabéa, pobre e nordestina que tinha vindo tentar a sorte na cidade grande, passou por humilhações no trabalho, na vida afetiva, mas sempre mantendo a esperança de dias melhores. Era alvo de chacota, mas acreditava que ia vencer na vida. Uma cartomante a convence de que, sim, a vida valia a pena – como os que tentaram ajudar Ruan, como os que levaram Fernando para ser astro de cinema. Ao sair da sessão, é tragicamente atropelada e, de invisível aos olhos de todos, tem o seu momento de fama: morta no asfalto de uma grande cidade, aos olhos curiosos de uma plateia que tem curiosidade pelo mórbido. É a hora da estrela de Macabéa, na ficção, que se reflete nas realidades de um Ruan recuperável, mas que recai, e em um Fernando que, de tanto brilho, foi ofuscado pela vida.

    Eu, Paulo Eduardo, com Ruan, em uma das reportagens que fiz quando ele ainda estava internado na clínica | Foto: Maria Vitória Ramos

    Assim que a tortura imposta a Ruan veio a público, clínicas de reabilitação para dependentes químicos e estúdios de tatuagem ofereceram seus serviços. Do outro lado uma série de revoltados da internet diziam que a tortura havia sido pouca. Desejavam mais violência e até a morte do rapaz, já que a bicicleta pertencia a um deficiente físico. Durante meses o menino foi bem tratado em uma clínica de alto padrão para desintoxição, assim também como por um estúdio do ABC para a remoção da tatuagem. Em um dia de alta em 2018, Ruan entrou em um mercado de Mairiporã e levou tubos de desodorante. Sua foto com os produtos na mão e o rosto machucado foi divulgada nas redes sociais como um troféu. Logo após o rapaz é transferido para outras clínicas. O tempo passa e novamente Ruan está envolto em um novo furto. Desta vez em São Bernardo, numa unidade médica. Celular, roupa e pequena quantia em dinheiro o faz ir para prisão. Novamente sua foto cabisbaixo após ser detido é amplamente divulgada. Está preso, em um Centro de Detenção Provisória superlotado, muito em virtude de sua família não ter condições de pagar a fiança arbitrada pela delegada. Sua mãe sequer tem dinheiro para custear a passagem da cidade onde mora no lado oeste da Grande São Paulo até São Bernardo do Campo para ter mais informações sobre o jovem.

    Fernando e a mãe | Foto: arquivo pessoal

    Fernando tirou a sorte grande ao ser escolhido para protagonizar o filme, mas após o estrondoso sucesso, semianalfabeto, não conseguiu outros papéis de importância na TV ou no cinema. No Jardim Canhema, seus irmãos cometiam roubos e furtos. Sem dinheiro e na ilusão de que se aparecesse nos jornais seja por qual fosse a notícia seria lembrado por diretores, Fernando também se envolveu em delitos. De ladrão pé de chinelo passou a ser tratado como um marginal pela polícia que rondava a região. Quando atuava em uma peça e conseguia se livrar da alcunha de criminoso e com sua filha prestes a completar 2 anos teve um fim trágico. Na tarde do dia 25 de agosto de 1987 foi perseguido por três PMs do antigo Tático Móvel, hoje equivalente à Força Tática, e executado embaixo de uma cama na vila onde morava. Oito tiros ceifaram a vida do menino que conquistou o público no exterior. Os PMs, que já o conheciam, alegaram que a perseguição ocorreu após Fernando ter roubado uma fábrica na região. Outra história também citava o roubo a um ciclista na rodovia dos Imigrantes. Histórias até hoje não comprovadas. A existência de uma bicicleta na cena momentos antes do crime também é uma semelhança assustadora. Os PMs afirmaram que Fernando estava armado e teria reagido. Os vizinhos e familiares negam. Dizem que Fernando suplicou por sua vida. Alguns moradores do bairro estenderam faixas agradecendo a ação da polícia. Pixote tinha que morrer. Mas se esqueciam que não era Pixote e sim Fernando que acabara de ser morto.

    Ruan está prestes a completar 19 anos. Fernando, quando foi executado covardemente tinha 19 anos. Que as coincidências da vida de ambos parem por aí. Que Ruan possa seguir sua vida sem ser conhecido como o menino que teve a testa tatuada. Que, diferente de Macabéa da ficção e Fernando da realidade, Ruan possa, sim, provar que é possível recomeçar e seguir sem o epíteto de “ladrão e vacilão”.

    *Paulo Eduardo Dias é jornalista, colaborador da Ponte e autor do livro “Pixote: 30 anos à espera da justiça”

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