Associação Amparar e familiares de presos denunciam torturas, sarna e Covid-19 em presídio de Mauá

Violações em Centro de Detenção Provisória na Grande SP ainda incluiriam comida estragada e negligência médica. Ministério Público arquivou denúncia semelhante apresentada em janeiro de 2021

Foto tirada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, durante inspeção em novembro de 2020 no CDP de Mauá | Foto: Núcleo Especializado de Situação Carcerária – NESC Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

“Não tem condições de um ser humano sobreviver naquele lugar. Eles estão com surto de sarna, de furúnculo e piolhos de pombo. O meu [filho] chegou lá tem sete meses. Eu enviei jumbo [encomenda com alimentos e itens de higiene] e roupas, mas o GIR (Grupo de Intervenção Rápida) entra e destrói tudo”. O relato de uma das mães de um preso do Centro de Detenção Provisória (CDP) de Mauá (Grande SP) é apenas um entre as dezenas de queixas de familiares que possuem filhos, maridos, netos e primos dentro da prisão incluídas em ofício redigido pela Associação de Familiares e Amigos de Presos e Presas (Amparar).  O documento foi encaminhado nesta semana contendo as denúncias e exigências para diversos órgãos.

A mãe, que preferiu não se identificar e nem contar o nome do filho, por medo de ameaças e represálias a ele dentro da prisão, conta que os agentes do CDP misturam os alimentos com produtos de limpeza e entregam somente após 15 dias. “Os pães que mandamos chegam podres. A alimentação é escassa, é oferecida uma marmita azeda de 150g de comida por pessoa”. 

“Fora isso, um dia fui visitar meu filho e ele chegou mancando, foi agredido pelo GIR em 29 de janeiro, no dia 2 de fevereiro também teve ação do GIR. Não é fácil viver com uma situação dessa, nós vemos nossos filhos sofrendo e não podemos fazer nada, se abrimos a boca eles tomam um castigo de um ano”, prossegue ela. 

De acordo com o documento escrito pela Amparar, o GIR, que fuciona como “tropa de choque” nas prisões, estaria realizando intervenções com alta frequência na unidade prisional (aproximadamente duas vezes por semana). “Durante as intervenções ocorrem agressões físicas como o espancamento de pessoas presas que chegam a ter sua mobilidade reduzida devido aos ataques. Também destroem tudo, como as roupas pessoais e de cama, os alimentos e os jumbos recebidos através de familiares”, aponta o documento.

Celas mal iluminadas no CDP de Mauá | Foto: Núcleo Especializado de Situação Carcerária – NESC da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Na visão de uma das colaboradoras da Amparar, que não quis se identificar, o que se percebe com as denúncias é que a tortura está institucionalizada. “Quando falamos de tortura não é só de violência fisíca, mas estamos falando de privação de alimentação, de racionamento de água, do GIR entrando toda semana. Isso também se configura como tortura e está institucionalizada. Notamos vários fatores de insalubridade, tuberculose, furúnculos. As pessoas realmente estão colocadas lá para morrer”. 

A mãe de um preso afirma que as mulheres são humilhadas nos momentos de visita. “Quando vamos passar pelo scanner é um absurdo, eles humilham a gente, gritam com a gente, uma das mães entrou em desespero, chorando na hora de passar porque já sabia o que ia acontecer. Eles abusam da autoridade. Uma das mulheres trans passa por constrangimento em todas as visitas”. 

Leia também: Denúncias de tortura em presídios sobem 70% durante pandemia

De acordo com o relatório de inspeção do Núcleo Especializado de Situação Carcerária, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, realizado em novembro de 2020, o estabelecimento possui uma taxa de 195% de superlotação. “Considerando a disponibilidade de 48 celas, há uma média de 25,4 presos por cela. Contudo, observamos durante a visita celas com até 31 presos”.

A Defensoria ainda aponta que “um detento portador de bronquite e problemas respiratórios informou que, após testar positivo para a Covid-19, permaneceu em uma cela de isolamento com 48 pessoas”. 

O CDP de Mauá possui uma taxa de 195% de superlotação. Foto: Núcleo Especializado de Situação Carcerária – NESC da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Durante a visita foram confirmados 197 casos de coronavírus entre agentes e pessoas presas. São Paulo acumula hoje 35 mortes e 1.216 casos de Covid-19, nas unidades prisionais, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). 

Outra mãe, cujo filho está no CDP de Mauá há seis meses, afirma que em certo dia o GIR entrou às 6 horas da manhã “explodindo bombas”. Além disso, ela diz que os gastos para manter uma condição mínima de sobrevivência de seu filho lá dentro têm sido cada vez mais altos. “Só hoje eu gastei R$ 200 com comida para o meu filho, 99% das famílias não têm essa condição. Nós mandamos o jumbo como complemento daquilo que o Estado deixa de fazer, mas está cada vez mais difícil suprir as necessidades”. 

Leia também: Após ação da tropa de choque dos presídios, visita é suspensa em penitenciária de SP

A denúncia coletiva redigida pela Amparar também chama a atenção para a negligência médica na unidade prisional. “As pessoas presas não estariam recebendo seus medicamentos de uso controlado, ou ainda recebem atrasados ou com escassez, dentre elas, pessoas soropositivas, com anemia falciforme, transtornos convulsivos, doenças renais e pessoas que necessitam de remédios para sintomas específicos como, hemorróidas. Inclusive não haveria medicamentos anti inflamatórios ou antibióticos, sendo disponibilizados”.

Além disso, a carta cita a omissão de socorro para aqueles que precisam de cirurgia de caráter emergencial. A falta de transparência também ocorre quando os familiares tentam entrar em contato com a administração penitenciária. “Sobre a Covid-19, quando a gente pergunta eles dizem que lá não tem casos”, diz uma das mães. 

Ministério Público arquiva denúncias de familiares

Uma das familiares que não quis se identificar lembra que em janeiro tentou encaminhar as denúncias à Procuradoria Geral do Estado, via email. Apesar disso, não houve apuração e o caso foi arquivado. “Foram enviadas denúncias para a secretaria do Procurador Geral do Estado de São Paulo. Após os diversos e-mails, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) disse que o diretor falou que lá é um paraíso, que não falta nada. O MP acatou e arquivou o processo. Mas não vamos nos calar”. 

Banheiros das celas do CDP de Mauá. em novembro de 2020 | Foto: Núcleo Especializado de Situação Carcerária – NESC da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Em fevereiro o Promotor de Justiça Paulo José de Palma juntou aos autos do processo o parecer da Promotora de Justiça Assessora do Núcleo de Execuções Criminais – CAOCrim, Fernanda Narezi Pimentel Rosa. No texto Rosa afirma que “de acordo com a manifestação do Diretor daquela unidade prisional no que diz respeito às alegações de presos estarem sofrendo violência institucional e negligenciados pelos agentes, estas são inverídicas. No que se refere às condições de higiene e saneamento básico, tais alegações também não procedem”.

O advogado especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública pela PUC-SP e membro do Grupo Tortura Nunca Mais, Ariel de Castro Alves, reitera que os direitos devem ser garantidos e buscados pelas familias e pelos presos. “Os detentos e familiares têm direito de pedir providências para as autoridades administrativas, judiciais ou políticas diante de violências e violações. Essas violações geram insatisfações, os estabelecimentos penitenciários são ‘barris de pólvora’ prestes a explodirem”. 

Em maio de 2020 passado a Ponte já havia revelado a situação do local durante a pandemia, quando familiares afirmaram que parentes com febre e dor estavam sem atendimento médico.

Além da denúncia, a Amparar exigiu a apuração célere e eficaz do sistema de justiça e solicitou, entre outras coisas, que sejam tomadas todas as providências necessárias para o acompanhamento urgente do caso de saúde das pessoas presas e que se realize exame de corpo de delito em todos os presos que supostamente teriam sido agredidos ou estariam sem receber atendimento médico, em especial aqueles que estavam lesionados e enfermos.

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Somam-se a esses pedidos, a realização da oitiva das pessoas presas de forma privada, com a participação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e que seja verificado o procedimento adotado pela unidade prisional quanto às intervenções do grupo GIR, agressões e destruição de bens e alimentos.

Outro lado

Por meio de nota, a Secretaria da Administração Penitenciária afirmou que “houve peticionamento da Defensoria Pública mediante as informações apresentadas pela Amparar sobre o Centro de Detenção Provisória de Mauá. O caso foi analisado e arquivado pelo Judiciário, após verificar que as alegações não eram procedentes. São realizadas ainda inspeções mensais na unidade pela Corregedoria dos Presídios”.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo disse que “no dia 30/11/2020, houve uma inspeção do NESC no CDP de Mauá. Depois de tal inspeção foi elaborado o respectivo relatório e foram apresentados dois pedidos de providências ao Juízo Corregedor competente. Outras medidas também estão sendo avaliadas”.

O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) alegou que “o promotor de Justiça Paulo de Palma analisa a denúncia recebida, somente teremos uma decisão na próxima semana”. 

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