Ataque ou automutilação: quem marcou a suástica na jovem do RS

    Laudo afirma que cortes foram feitos sem reação da jovem e sugere automutilação, mas advogada reafirma hipótese de agressão; peritos ouvidos pela reportagem não chegam a um consenso

    No laudo, jovem mostra marca de suástica feita em sua barriga | Foto: Divulgação

    O delegado Paulo Jardim, titular da 1º DP de Porto Alegre, da Polícia Civil do Rio Grande de Sul, concluiu que a jovem de 19 anos que disse ter sido atacada por apoiadores do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) e marcada com uma suástica na barriga, em 9 de outubro, mentiu e praticou automutilação.

    O laudo do Instituto-Geral de Perícias afirma que a hipótese mais provável é a de que os cortes na jovem tenham sido provocados por ela mesma ou por alguma pessoa que teve a autorização dela para promover os ferimentos, embora não descarte totalmente a hipótese de ataque.

    Segundo o delegado, a moça vai ser indiciada e irá responder por comunicação falsa de crime, crime punido com detenção de um a seis meses. A advogada da jovem, porém, reafirma a hipótese de que ela tenha sido vítima de uma agressão. A Ponte entrevistou três peritos criminais a respeito do laudo e as visões foram divergentes.

    Laudo identificou 20 escoriações diferentes na suástica | Foto: Divulgação

    De acordo com o Boletim de Ocorrência do caso, a jovem afirmou que, em 9 de outubro, tinha sido agredida com socos por três homens que a seguraram e desenharam a suástica em seu corpo sem consentimento. O registro afirma que ela vestia uma camiseta com a frase “Ele Não”, em referência ao movimento que condena o discurso de Bolsonaro.

    O laudo, assinado pelos peritos médicos-legistas Luciano Haas e Eduardo Sörensen Ghisolfi, identifica que a suástica marcada no corpo da jovem foi feita por 20 escoriações, todas superficiais e com a mesma profundidade, indicando que foram feitos “de forma bastante cuidadosa”. Os peritos também observaram que não encontraram lesões que indicassem que a jovem tenha tentado se defender.

    “Nesse sentido, embora não seja possível afirmar categoricamente que a lesão seja autoinfligida, pode-se concluir, com convicção, que a possibilidade de uma agressão que tenha acontecido sem que tenha havido alguma forma de colaboração da parte da vítima ou sem que tenha havido marcada incapacidade de reação da parte dela é muitíssimo diminuta”, afirma o texto.

    Ferimentos em forma de cruz que a jovem disse não ter percebido | Fonte: Divulgação

    Os peritos relatam, ainda, que encontraram outros cortes, em formato de cruz, na lateral do abdome da moça, que ela disse não ter percebido. Depois disso, a jovem não teria mais deixado que os peritos vissem outras partes do seu corpo.

    Na época do ataque, o delegado Paulo Jardim afirmou que a inscrição talhada na pele da jovem não era uma suástica nazista, mas um símbolo budista de “amor, paz e harmonia”. Segundo Jardim, o laudo “diz que foi uma autolesão provocada por ela mesma e, se ela não foi ela, foi permitida por ela”.

    ‘Estranha’ e ‘precipitada’

    “Estranha.” É assim que a coordenadora geral da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da ALRS (Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul), Ariane Leitão, qualifica a informação da perícia.

    “Ela não nos parecia uma pessoa que estaria numa questão de sofrimento tão grande que pudesse se automutilar. Mas eu sou advogada, eu não sou psicóloga”, pondera a coordenadora, que também levanta a questão de que o laudo não concluiu que existiu uma automutilação. “Ele aponta uma possibilidade”, diz.

    Segundo Ariane, o texto não é conclusivo e apresenta várias alternativas que poderiam ter acontecido no caso, inclusive um ataque. “Avaliamos que possa estar ocorrendo uma retaliação contra essa vítima, culpabilizando a mesma. É normal o Estado culpar as vítimas, comum nos casos que envolvem violência contra a mulher”, diz.

    “Até que tenham provas robustas, vamos seguir acreditando e defendendo essa menina”, afirma Ariane. A coordenadora também disse que a comissão irá pedir explicações sobre a situação, já que o inquérito está sendo encerrado.

    No laudo, jovem mostra marca de suástica feita em sua barriga | Foto: Divulgação

    Por meio de nota, a advogada Gabriela Souza, que defende a jovem, afirma que o teor do laudo assinado pelos peritos reafirma a convicção da defesa de que a jovem foi vítima de um ataque. “A perícia não descarta a hipótese de as lesões terem sido causadas por outro indivíduo, inclusive mediante incapacidade de defesa da vítima. Isto apenas comprova o teor do depoimento da vítima, que não esboçou reação durante o ataque e sofreu estresse pós-traumático, situação que se mantém até o momento”, afirma.

    Além disso, a advogada diz que o laudo divulgado não representa o fim das investigações. “A defesa da vítima ainda espera que sejam apresentadas imagens de câmeras de segurança e ouvidos depoimentos de pessoas que prestaram auxílio à jovem atacada. Qualquer conclusão antes de esgotada a avaliação de todos os elementos possíveis é precipitada e pode não representar a realidade dos fatos”, diz.

    O que dizem os peritos

    De acordo com o perito forense Eduardo Llanos, dono da empresa Sewell Investigações e Perícias, ouvido pela Ponte, “não existe lógica” para a afirmação de que a jovem tenha provocado os ferimentos. “Eu, pessoalmente, não acredito [no laudo]. Tenho absoluta certeza que foi feita por um terceiro”, disse. Segundo o perito, o local do corpo em que foi marcada a suástica é de difícil acesso para que a própria pessoa possa fazer o machucado. Llanos diz que não seria possível que ela se mutilasse nem com a mão esquerda e nem com a direita.

    “Ninguém em sã consciência se provoca uma autolesão quatro vezes no mesmo sentido. Você pode apreciar que cada risco é provocado duas ou três vezes pelo menos objeto”, afirma o perito. Ele diz acreditar que se trata de uma situação em que as autoridades querem minimizar os fatos que supostamente ocorreram com a jovem.

    Llanos diz que a moça já foi tida como “mentirosa” desde o momento que fez a denúncia e que, por isso, a perícia foi feita de uma forma “subjetiva”. Para ele, os peritos seguiram a linha de raciocínio do delegado do caso e não foram objetivos na análise. “Tudo indica que isso foi uma agressão realizada por terceiros”, insiste.

    A reportagem também ouviu o cientista forense Sergio Hernandez, perito judicial credenciado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e ele segue a mesma linha de raciocínio que a perícia do Rio Grande do Sul. Segundo ele, pelo fato de a ferida no corpo da moça ser muito limpa e ter pouca profundidade, é possível que ela mesma tenha se machucado. “As feridas feitas com objetos cortantes, geralmente, no começo são menos profundas e no meio são mais profundas. Nesse caso específico, tem uma profundidade homogênea. Houve um cuidado na hora de marcar. As bordas também são nítidas. A pessoa teve um certo cuidado”, afirma o perito.

    Hernandez diz que uma ferida feita por um instrumento cortante é divergente, ou seja, não é linear como a que aparece no corpo da jovem. “Existem indícios de que tenha sido autoprovocada”, diz o perito. “A vítima afirma que as lesões foram produzidas por canivete, mas isso foi descartado pela perícia, pela profundidade da lesão”, afirma Hernandez. “A morfologia [do ferimento] denota certo cuidado na produção da lesão. Portanto, com base nessas informações, também acredito que as lesões respondem a autolesões e não a um ataque de terceiros”, conclui.

    Eduardo Becker, presidente do Sindicato dos Peritos Criminais de São Paulo, também concorda com a teoria de que o ferimento foi feito pela própria jovem. “Os ferimentos não foram profundos, ficaram superficiais. A pessoa tomou cuidado para não pressionar. A força que foi aplicada foi muito mais longitudinal do que profunda”, explica o especialista.

    O perito diz que, pela espessura do ferimento, foi feito com algo que tem uma forma pontuda, como um grampo, uma ponta de um clipe ou até mesmo uma unha, mas não com algo que realmente tenha uma ponta cortante. “As linhas são bem paralelas, tentou se passar várias vezes no mesmo lugar e os tamanhos das linhas são muito equivalentes. Tudo isso, com ausência de vestígios de que houve emprego de força para controlar a vítima, mostra que não teve resistência”, diz Becker.

    Segundo Becker, o tipo de ferimento feito na barriga da jovem não deixará nem cicatriz. De acordo com ele, mesmo que a moça estivesse sendo segurada, ela teria uma reação natural do corpo que a faria se retirar de perto daquilo que está provocando dor. “A reação do corpo seria involuntária. Quando você sente dor, o primeiro movimento é se retirar. Ela teria que estar com o seu estado de vigília ausente”, conclui.

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