“Lembrar a Chacina da Candelária é lembrar que o Estado do Rio não parou de matar”

    Familiares de vítimas de violência do Estado e ativistas bradam contra o assassinato de negros por policiais em ato que relembra os 23 anos da Chacina da Candelária, no centro do Rio

    Ato do Movimento Candelária Nunca Mais, no Centro do Rio de Janeiro, no sábado (23/07) | Foto: Luiza Sansão

    Para relembrar a chacina na qual oito crianças de rua foram exterminadas por policiais em frente à Igreja Nossa Senhora da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro, em 23 de julho de 1993, o Movimento Candelária Nunca Mais realizou um grande ato no último sábado (23/07), quando o violento episódio completou 23 anos.

    A manifestação encerrou o Julho Negro, semana de mobilização contra o racismo e o assassinato de negros, que reuniu lideranças de movimentos que são referência internacional na luta contra o genocídio da população negra, como o Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”), que surgiu nos Estados Unidos em 2012, e o movimento independente Mães de Maio, que nasceu após a série de ataques promovida pelo Estado de São Paulo que vitimou quase 500 pessoas em maio de 2006, em represália a uma ofensiva da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).

    A manifestação teve início no dia 22, com uma vigília na frente da Igreja Nossa Senhora da Candelária, onde a chacina aconteceu, das 18h às 22h, e continuou às nove horas da manhã do dia seguinte, com a tradicional missa em homenagem às vítimas e seus familiares na Candelária, seguida da caminhada que começa na igreja e segue até a Cinelândia.

    “Lembrar, todos os anos, a Chacina da Candelária, é lembrar que, nesses 23 anos, o estado do Rio de Janeiro não parou de matar. Quando a gente põe o Movimento Candelária na rua, a gente relembra todas as mortes que o estado do Rio vem cometendo em todos esses anos”, diz Mônica Cunha, coordenadora do movimento Moleque, constituído por mães e familiares de jovens em conflito com a lei, em entrevista à Ponte. “A gente está resistindo a esses assassinatos e, dizendo não à redução da maioridade penal, estamos dizendo não ao genocídio dos jovens negros”, completa.

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    Familiares de vítimas de violência do Estado são homenageadas na Igreja Nossa Senhora da Candelária | Foto: Luiza Sansão

    Para Mônica, a vigília é “o momento mais forte” de interação das mães de vítimas no ato anual do Movimento Candelária Nunca Mais, que ela integra há dez anos. “A vigília é um momento único, do qual participam mães que têm seus filhos cumprindo medidas socioeducativas, que têm seus filhos encarcerados ou que perderam seus filhos, que são a maioria. Chega naquele momento, a gente é acalentada, vista como um ser humano pelos outros. É um ato com bastante carinho, um momento muito forte”, diz.

    “A bala que mata lá é a bala que mata aqui”

    Também participante , a reverenda Waltrina Middleton, ativista do movimento norte-americano Black Lives Matter, disse que familiares de vítimas de diversas partes do mundo precisam se unir no combate à violência de Estado contra a população negra. “Nós estamos lutando pela mesma causa”, afirmou.

    Para a ativista, “todas as pessoas têm uma grande responsabilidade para responder pelo sofrimento de qualquer irmão ou irmã nesse mundo”. “Mas eu também sou uma pastora, uma pessoa de fé. Como posso ouvir uma criança sangrando chorando na rua e não dizer nada? Uma criança que morreu assassinada pela polícia, é minha filha também. É importante dividir nossa dor, mas também dividimos nossa luta. Nós não temos escolha a não ser estar aqui”, encerra Waltrina, referindo-se aos companheiros do Black Lives Matters que a acompanharam nesta viagem ao Brasil.

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    Movimento Mães de Maio, de São Paulo, participa do ato Candelária Nunca Mais, no Rio | Foto: Luiza Sansão

    Liderança do grupo Mães de Maio, Debora Maria Silva destaca que o modus operandi das polícias brasileira e norte-americana é semelhante. “Lá funciona igual: [a polícia] persegue, metralha carro e mata. Não é diferente do Brasil. O Bope [Batalhão de Operações Policiais Especiais] é treinado pela polícia norte-americana e é uma polícia que mata, uma polícia genocida. Então não é mera coincidência: a bala que mata lá é a bala que mata aqui”, afirma a mãe de Edson Rogério da Silva, exterminado durante os Crimes de Maio de 2006, na capital paulista.

    “Ontem nós e os norte-americanos estávamos dentro de uma escola em Manguinhos [favela na zona norte do Rio], do lado da Cidade da Polícia, onde as crianças estão estudando quantos tiros foram dados. E a gente pergunta para essas crianças se elas acham normal, elas disseram que sim. Então que Pátria Educadora é essa, que meu país está produzindo? Nós não podemos aceitar isso jamais”, enfatiza Debora, com revolta. “As crianças já nascem encarceradas, assassinadas, num Brasil que é mostrado para os gringos como um país de mil e uma maravilhas, mas que, nessa Olim Piada, tinha que ganhar é uma medalha de ouro de extermínio da população pobre, negra e favelada”, completa.

    Segundo Débora, a presença dos ativistas do Black Lives Matter nas manifestações brasileiras contra o genocídio da população negra foi fundamental. “Globalizando a nossa luta, nós teremos mais força para vencer esse sistema que faz com que nós, pobres, pretos e periféricos, sejamos exterminados. Esse é o lema das Mães de Maio. Por isso é fundamental pra nós que pessoas dos Estados Unidos estejam aqui. É muito gratificante sentir esse calor humano. Os norte-americanos gritam de lá, a gente grita daqui, e agora nos unimos e somos uma só família”, encerra.

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