Faz quase três anos que Matheus Alves Martins foi morto pela PM com um tiro nas costas, mas Polícia Civil não concluiu investigações. Testemunhas dizem que ele foi executado. Segundo policiais, jovem estaria ‘armado com uma faca’
Gritos. Em diferentes momentos, tons e motivos. Foram eles que ecoaram na noite de 13 de abril de 2020. Todos vieram do apartamento localizado no quinto andar de um edifício no bairro do Brás, região central da cidade de São Paulo. Vizinhos chamaram a polícia por causa da uma briga de casal. Os PMs invadiram o apartamento e mataram a tiros o produtor musical Matheus Alves Martins, que na época tinha 22 anos.
Diferentemente da grande maioria das vítimas da letalidade policial no Brasil, o jovem era branco e nascido em uma família de classe média alta — os brancos correspondem a 15,8% dos mortos pela polícia, segundo os dados mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A história de Matheus, porém, tem algo em comum com outras vítimas da brutalidade ocasionada por agentes de segurança do Estado: os assassinos até hoje não foram responsabilizados, mesmo quase três anos após sua morte.
O inquérito conduzida pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, ficou parado durante meses, segundo reclamação feita pelo Ministério Público Estadual. Mesmo depois que avançou, mostrou tão poucos resultados que o MP pediu novos procedimentos, inclusive uma reconstituição, que ainda não foram feitos. No meio da investigação, até a bala usada pela PM para matar Matheus desapareceu.
“É muita injustiça. Ao mesmo tempo que eu não acredito nessa justiça que temos, o que eu gostaria é que este policial não estivesse mais na rua matando o filho de mais uma mulher. A gente luta a vida inteira para criar um filho, para vir um policial despreparado e tirar a vida dele”, desabafa Mônica Martins, mãe do jovem assassinado.
“Eu perdi um irmão. Várias coisas que faço hoje, queria fazer com ele. Viagens, músicas. Tudo que eu queria é que a gente estivesse juntos e dando risadas. A gente tinha muitos planos”, conta o primo e melhor amigo de Matheus, Vinícius da Silva Santos, 25 anos, que estava com o produtor quando ele foi morto.
Discussão e morte
Os vizinhos de Matheus não estavam conseguindo ter uma noite tranquila naquele final de domingo do mês de abril. Os gritos e xingamentos, decorrentes de uma briga motivada por ciúmes entre Matheus e a namorada, Bruna Correa Miranda, eram altos o suficientes ao ponto de incomodar os demais moradores do edifício.
Após ouvir repetidas reclamações dos condôminos, o porteiro decidiu intervir. Interfonou para o apartamento onde estavam Matheus, a namorada, Bruna Correa Miranda, 29 anos, e Vinícius da Silva, que estava visitando o amigo.
“Ela não queria discutir. Ele tomou o celular da mão dela. Foi quase uma hora e meia de briga entre os dois. A confusão não tinha nada a ver comigo e eu estava ali tentando acalmar os dois. O interfone tocou pela primeira vez e era o porteiro reclamando do barulho. Os dois pararam de discutir por uns cinco minutos, depois começou tudo de novo”, relata Vinícius.
O rapaz não sabe precisar quanto tempo de passou até que a campainha do apartamento tocasse novamente. Quem estava na porta, dessa vez, eram dois policiais militares, Fábio Sena Chapeta, 39 anos, e Yago Rodolfo da Silva Rosa, 26, junto com o porteiro. A partir desse momento, há diferentes versões para o que aconteceu dali em diante.
A namorada de Matheus afirma que, assim que abriu a porta, se deparou com os PMs Fábio e Yago já com armas em punho. Segundo ela, o namorado gritou para policiais que não entrariam no local sem um mandado da Justiça. O PM Yago teria respondido que eles iriam entrar no apartamento mesmo assim. Foi quando Matheus correu para cozinha e ela foi retirada do apartamento. Yago teria entrado correndo atrás do namorado e, depois disso, ela ouviu três disparos. No depoimento, Bruna afirma que os policiais foram truculentos e que, para ela, o rapaz foi executado.
“O Matheus estava muito nervoso. A PM não entrou no apartamento, mas puxaram eu e a Bruna para fora e ficamos a uns dez metros da porta. Ele gritava dizendo que a polícia não ia entrar sem mandado e os policiais ficaram calados, ouvindo. Quando ele voltou para dentro do apartamento começou uma gritaria. Gritavam ‘larga, larga!’. O policial entrou no apartamento e eu ouvi três disparos, que mataram o meu primo. Eu saí correndo desesperado. Um PM mandou eu calar a boca e apontou a arma para mim. Disse que, se eu não me calasse, iria atirar em mim. ”, detalha Vinícius.
Já os PMs afirmam que foram autorizados pela síndica para ir até o apartamento e que, lá chegando, foram atendido por Bruna. Yago e Fábio disseram à delegada Patrícia Rosana Fernandes, que registrou o boletim de ocorrência no 8º DP (Brás), que, ao vê-los, Matheus passou a xingar a dupla de PMs. “Bando de filhos da puta, seus corruptos, não preciso de vocês aqui “, teria dito Matheus, segundo os PMs.
Os policiais também afirmam que a todo momento o morador do apartamento dizia ser lutador profissional e fez ameaças dizendo que iria agredi-los. Em determinado momento, de acordo com a versão de Fábio e Yago, Matheus teria dito que iria matá-los e correu para dentro da residência em direção à cozinha para pegar uma faca.
No boletim, a dupla diz que não entrou no apartamento e que, quando viram que Matheus estava com uma faca, teriam orientado o jovem a largá-la, mas, em vez disso, ele teria avançado contra os policiais. Yago Rodolfo da Silva Rosa admite que efetuou três disparos contra o rapaz e que ele caiu na porta do apartamento, após ser baleado.
O depoimento do porteiro é semelhante ao dos policiais, porém ele afirma que não viu Matheus empunhando a faca. Ele afirma que só viu o objeto no chão, ao lado do corpo do morador. O porteiro confirma que o rapaz estaria nervoso e que os PMs não entraram no apartamento.
O rapaz foi socorrido ainda com vida e indiciado na mesma noite pela Polícia Civil pelo crime de resistência. Depois de ficar internado por 12 dias em uma unidade intensiva de tratamento, Matheus Alves Martins faleceu no dia 25 de abril de 2020.
Idas e vindas da investigação
Com a morte de Matheus, o inquérito pelo crime de resistência foi arquivado e só em 19 de junho de 2020, quase dois meses após o falecimento do rapaz, é que o Ministério Público pediu para que o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa passasse a investigar a morte.
Desde o início, a investigação foi lenta. Consta nos autos do processo que o Ministério Público em dezembro de 2020 informou a justiça que a investigação do assassinato do rapaz estava parada. “Remessa deste IP [inquérito policial] à polícia em setembro, e até o presente momento nada foi feito pela Delegacia. Proponho nova concessão de prazo por 60 dias, devendo a autoridade policial esclarecer a desídia em 72 horas”, informou o promotor Fernando César Bolque, do 1º Tribunal do Júri, na época.
A investigação falhou em vários pontos em relação aos tiros disparados pelos policiais. Todas as testemunhas afirmam terem ouvido três disparos e o próprio atirador confirma a quantidade de tiros que deu. No corpo da vítima, porém, foi encontrada apenas uma bala, que teria entrado pelas costas. Os outros projéteis não foram localizados nem apreendidos pela Polícia Civil.
Bruna voltou ao apartamento dias depois da morte do namorado, após a polícia ter feito a perícia no local ,e mesmo assim encontrou os outros projéteis ao limpar a residência. O material foi entregue para a investigação.
O relatório final da Polícia Civil, apresentado em setembro do ano passado pela delegada Daurita Martins Donaire, informa que nem conseguiu concluir se a bala que matou Matheus saiu da arma de Yago. “Concluiu pela impossibilidade de estabelecer uma relação de filiação ou exclusão entre os projéteis incriminados e o cano da pistola do policial militar pela escassez de elementos individualizadores”, informa o documento.
Visto que ainda não tinha elementos suficientes para encaminhar algum pedido para a Justiça, o Ministério Público pediu para que a síndica do prédio também fosse ouvida e que se apresentasse o projétil encontrado no corpo de Matheus. Após a necropsia, foi informado nos autos que a bala extraída foi colocada dentro de uma lacre e não mais encontrada, como a própria Polícia Civil reconhece.
“Informo que foram empreendidos todos os esforços para localizar o projétil de arma de fogo extraído do corpo de Matheus Alves Martins. Todavia, não há qualquer registro, feito pela administração anterior, do recebimento ou encaminhamento do projétil para outra unidade policial”, diz em documento anexado ao processo a delegada do DHPP, Maria Cecília de Castro Dias.
Atualmente o processo permanece sendo investigado pela Polícia Civil. O Ministério Público solicitou que seja feita a complementação do exame necroscópico e também reconstituição do crime como a participação de Vinícius, Bruna, Yago, Fábio e do porteiro. Ainda não há data para que a reprodução simulada ocorra.
Música e lutas
Tanto a mãe como o primo descrevem Matheus como uma pessoa talentosa e apaixonada por aquilo que fazia. Desde criança mostrou aptidão para as artes marciais, praticando diferentes modalidades de esportes de luta. Além dos ringues e tatames, o jovem também gostava de estar dentro de um estúdio.
“Uma das últimas coisas que ele fez foi criar uma produtora. Ele queria fazer a produção artística para diferentes grupos. Inclusive, ele estava me produzindo. Dizia que iria investir na minha carreira. Ele que me fez ser artista”, conta, emocionado, o primo Vinicius da Silva.
“Mesmo sendo um menino de classe média alta, o Matheus não tinha descriminação com ninguém. Todo mundo gostava dele. Seja as pessoas da academia de luta onde ele trabalhava e fazia aula, seja os amigos músicos de diferentes locais da cidade. Ele era muito determinado. Tudo dele era intenso”, conta Mônica Martins.
Passados quase três anos desde que os policiais foram até a porta da casa de Matheus e o mataram, a família sofre sequelas pela perda. “Acho que quem fez isso não tem noção do que eles fazem com uma família. Uma das minhas filhas tentou se matar duas vezes e outra vive numa depressão tremenda. Eu também não estou bem, mas tenho que transparecer para ser o alicerce do restante da família”, desabafa Mônica.
Outro lado
A secretaria de Segurança Pública de São Paulo foi questionado em relação à demora e às falhas no inquérito, como o sumiço da bala que matou Matheus. A assessoria de imprensa enviou a seguinte nota:
O caso foi investigado como morte decorrente de intervenção policial pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e relatado à Justiça em setembro de 2022. O procedimento retornou à unidade para cumprimento de cota em outubro do mesmo ano, sendo cumprida em novembro. No entanto, em janeiro deste ano, o Ministério Público remeteu novamente o IP ao departamento para cumprimento de nova cota, a qual está sendo cumprida.