Negros são 84% das pessoas mortas pelas polícias no Brasil

Proporções de negros mortos pela polícia (84,1%) e encarcerados (67,5%) são as maiores já registradas; Amapá, Goiás e Rio de Janeiro são os estados com as maiores taxas de mortes pelas polícias em comparação com todas as mortes violentas

Manifestantes em protesto antirracista em São Paulo, em 7/6/2020 | Foto: João Leoci/Ponte Jornalismo

Assassinada grávida, com 24 anos, pelo Estado. Uma garota linda, cheia de vida, cheia de felicidade, cheia de sonhos, cheia de planos, que não pôde ser mãe, que não conheceu o rosto do filho dela, que não teve o direito de desfrutar de nada do que ela batalhou para conquistar. Uma garota que fez tudo que a sociedade pede que a gente faça. Mas pra gente que é preto, pobre e favelado nunca é o suficiente. A gente tem que provar duas, três, dez vezes e, ainda assim, somos assassinados.

Esse é um trecho da carta escrita por Jackeline Oliveira ao g1 quando o assassinato da filha Kathlen Romeu, 24, e do seu neto de três meses de gestação dentro da barriga da jovem completou um ano sem conclusão do caso, em 8 de junho, no Rio de Janeiro. A cor da pele negra de Kathlen é a mesma de 84,1% dos alvos das polícias do Brasil, segundo a 16ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e publicado nesta terça-feira (28/6). Foram 6.145 pessoas mortas pelas forças de segurança estaduais em 2021. Apesar da redução total de 4,9% em comparação com o ano anterior, a proporção de pessoas negras vítimas da violência do Estado, que já são maioria, é o maior da série histórica acompanhada pelo FBSP: 78,9% em 2020, 79,1% em 2019, 75,4% em 2018 e 76,2% em 2016 (o Fórum não tem os dados de 2017). Além disso, os dados compilados pelo anuário apontam que os negros são proporcionalmente a maioria das pessoas presas no Brasil, correspondendo em 2021 a 67,5% da população carcerária, maior taxa da série histórica. Desde 2005, quando começa a série, aumentou em 367% a população negra presa no Brasil.

Para David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os episódios de violência policial em 2020 reverberam a mudança de postura de alguns estados que puxaram a queda dos números, como São Paulo, que teve uma redução de 30% no índice de letalidade (de 814, em 2020, para 570, em 2021). “A gente teve a eleição de 2018 para governador e governo federal muito marcada por um discurso de segurança pública de que a polícia deveria agir com violência para fazer o controle do crime e, aqui em São Paulo, esse discurso refluiu por parte do governador na época, que era o João Doria, no mesmo ano que a gente teve a morte do George Floyd [2020], num cenário internacional de crítica policial iniciando nos Estados Unidos e espraiando no Brasil também”, pontua.

“Em São Paulo, tivemos casos registrados em vídeo que geraram uma onda de crítica a esse tipo de ação policial e, isso associado a outras variáveis políticas, de alguma forma fez com que o governo mudasse o discurso com relação ao sentido da atuação policial”, exemplifica ao citar a implementação do projeto das câmeras na farda em maior escala e um programa de retreinamento da corporação. “É uma polícia que pesa bastante no número final da letalidade, então essa redução que você tem no número geral do Brasil de alguma forma acaba sendo atribuída na redução dos estados mais significativos em termos numéricos”, argumenta.

Por outro lado, o pesquisador destaca que os estados têm dinâmicas muito distintas, mas a postura dos governadores em legitimar e até incentivar a letalidade também acabam corroborando para altas taxas, tanto na comparação por 100 mil habitantes — AP (17,1), SE (9), GO (8), RJ (7,8) — quanto na proporção por mortes violentas intencionais (a soma de vítimas de homicídios, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes pelas polícias).

“Amapá, disparadamente, é o estado com o maior problema atualmente, que é problema recente e assume essa posição nos últimos três anos e amplia a diferença em relação aos demais [estados], e pelo o que a gente acompanha faz parte de um cenário político local, com a ideia de que a polícia atuando desse jeito faz frente às facções criminosas no estado, por exemplo”, explica. “O estado de Goiás também, na esteira do que veio o caso do Lázaro, exemplifica essa questão”, ao mencionar o caso de Lázaro Barbosa, acusado de ter cometido cinco homicídios e cuja busca em Goiás virou uma verdadeira caçada que terminou com sua morte a tiros pela polícia, sendo comemorada inclusive pelo governador Ronaldo Caiado (União Brasil), em junho do ano passado.

No entanto, outro estado que teve uma forte discussão sobre a violência policial em 2021 foi o Rio de Janeiro que, ainda assim, aumentou 8,3% a letalidade e com casos emblemáticos como a Chacina do Jacarezinho, a mais letal da capital, com 28 vítimas (27 civis e um policial civil), após uma operação da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil. A ação aconteceu mesmo com a vigência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas, que proibiu, desde junho de 2020, a realização de operações policiais em comunidades durante a pandemia, salvo em casos excepcionais e com comunicação imediata ao Ministério Público.

Para David Marques, as polícias no Rio de Janeiro têm desafiado tentativas de controle porque acreditam de forma distorcida que a medida contribui para o aumento da criminalidade. “O fato é que existem diversas formas para lidar com o problema da criminalidade e essa aposta de medida na atuação letal como uma solução para esse problema é contrafactual, a gente tem visto a redução de homicídios em diversos estados acompanhada de uma redução da letalidade policial também”, explica.

“No Rio de Janeiro, essa é uma das principais disputas há algum tempo, tanto que é lá que, quando a gente fala de controle da atividade policial, um dos aspectos desse controle é de mortes decorrentes de intervenção policial, e quando você afrouxa esses controles, você abre margem para que outros problemas aconteçam, como a atuação das milícias, que são organizações que se formam a partir da atuação de integrantes ou de ex-integrantes das forças de segurança, das forças policiais e até de forças armadas”.

No entanto, o perfil das mortes pelas polícias no Brasil como um todo se mantém: pessoas negras, homens (99%), com idade entre 18 e 24 anos (43,6%). O pesquisador do FBSP aponta que mesmo dentro das mortes violentas intencionais, que já tem uma maioria de pessoas negras como vítimas, a distribuição nas ocorrências de mortes por intervenção policial é ainda maior. “Esse dado de raça e cor nem sempre é tão bem informado nas bases de dados, mas dá para a gente ter uma estimativa a partir deles, e a gente consegue chegar a essa conclusão de que a desigualdade racial na atuação policial vem se deteriorando nesses últimos anos”, pontua.

Ele destaca que os policiais “têm uma dificuldade muito grande de reconhecer esse viés racial na atuação policial” porque a corporação justifica que também tem negros na sua composição e que a questão de classe social é mais percebida do que a racial. “É um fenômeno multicausal, mas o que os estudos têm mostrado sobre a atuação policial, é de que, em grande medida, a decisão, por exemplo, para um policial abordar um suspeito, é baseada num saber extremamente informal, não é um saber categorizado nem documentado em procedimentos operacionais padrão para atuação policial, que estabelecem as diretrizes e passos para determinadas situações. [É um conhecimento] passado entre as gerações de policiais, dos mais antigos para os mais novos, e esse tipo de percepção que é vendido como o policial sabendo diferenciar dentro da sociedade aqueles que são os criminosos e os que não são é formado por aspectos racializados: um determinado tipo de roupa, um determinado tipo de região da cidade”, explica.

Além disso, David Marques enfatiza que mesmo quedas na letalidade não significam necessariamente que a percepção racializada tenha sido incorporada. “No caso de alguns estados, mais especificamente, foram criadas condições práticas para que essa mudança de orientação política pudesse ser implementada: tem estados que buscaram fazer controle das mortes violentas intencionais em geral, criando programas de metas de redução, focalizando suas ações, e isso acaba espraiando para a atuação policial também. Em outros estados, tem uma atuação mais focada na polícia mesmo, como no caso daqui de São Paulo, e o que a gente percebe é que a ampliação do programa de câmeras já existia em outros lugares, como em Santa Catarina, com uma proporção maior”, afirma.

Para ele, apesar de ser um “debate difícil”, é preciso que a sociedade fale mais sobre o assunto para que aconteçam mudanças efetivas. “A discussão do racismo na sociedade brasileira como um todo é um debate difícil, que tem sido feito recentemente, tem ganhado ouvidos e corações no ambiente corporativo, no ambiente político, de certa forma, nas redes sociais, mas ainda encontra muita resistência e as instituições policiais fazem parte desse ambiente mais resistente. Em geral, as instituições policiais são muito refratárias a mudanças, muito sensíveis quando se faz críticas a elas.”

Suicídios de policiais aumentaram quase 60%

Se a maioria das vítimas do braço armado do Estado é negra, quem puxa o gatilho também sofre com o racismo: 67,7% dos policiais civis e militares vítimas de mortes violentas eram negros, 97,7% homens. De 190 policiais assassinados em 2021, 77,4% dos casos aconteceram fora do serviço. No entanto, apesar de as ocorrências em confronto terem reduzido 12%, os suicídios aumentaram 59,7% de 2020 para 2021.

De acordo com David Marques, a diminuição das mortes em confronto “segue a linha da redução da violência letal no Brasil”, considerando as mortes violentas intencionais, que caíram 6%, e das mortes praticadas pela polícia, que tiveram queda de 4,9%.

No entanto, o aumento dos suicídios “evidencia que os policiais são uma categoria especialmente suscetível a esse problema”. “Existe uma dificuldade muito grande de lidar com o sofrimento psicológico, das condições que são oferecidas para que os policiais desenvolvam o seu trabalho. Embora a segurança pública ser vista como um aspecto muito importante para os brasileiros, os policiais em geral se sentem mais excluídos da sociedade, pensam sobre a sua profissão como uma profissão muito criticada, pouco valorizada em geral, de que o trabalho que desenvolvem é dificultado pelo sistema de segurança pública e de justiça criminal”, elenca o pesquisador.

Ele lembra de uma pesquisa lançada pelo FBSP, em novembro do ano passado, que ouviu cerca de 9 mil policiais sobre diversas questões, algumas tratando sobre dificuldades no trabalho. Nela, inclusive, 85% se manifestou a favor de afastamento temporário dos policiais que se envolvem em ocorrências que resultam em morte. Na ocasião, Marques explicou à Ponte que as categorias estão sem alternativas atuais e, por isso, acabam se apegando ao que conhecem, ao militarismo, que acaba sendo explorado também por políticos de direita, eixo que acaba assumindo a pauta da segurança pública, e não reconhecem o militarismo como um dos fatores da vitimização policial.

“Também passa por essa questão do nível de renda, muitos policiais acabam trabalhando com ‘bico’, como seguranças particulares de empresas ou de pessoas”, pontua. “São um conjunto de fatores que acabam gerando essas condições para que essa categoria esteja especialmente vulnerabilizada pelo suicídio e isso, de alguma forma, vem sendo mais falado nos últimos anos e a inclusão desse dado no Anuário tem esse sentido: de colocar esse problema para debate e cobrar um pouco mais das corporações a estruturações de serviços e de atenção psicossocial aos policiais.”

Um dos exemplos que intersecciona tanto o racismo dentro das corporações quanto as condições de trabalho é o caso do PM Anderson César da Silva, 33. A Ponte revelou que ele acabou se internando em uma clínica de reabilitação, após uma tentativa de suicídio, quando passou a responder dois processos: um por deserção, por ter faltado ao trabalho por estar com depressão, e ao ter sido agredido por colegas, que também atiraram contra seu cachorro, quando fazia um piquenique com a filha depois que moradores suspeitaram dele, um homem negro, com uma criança branca e acionaram a Polícia Militar de Minas Gerais.

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“Esse é um tema que as corporações ainda estão engatinhando”, pondera Marques. “Em geral, é um tema que ainda não é bem visto nas corporações, quando se fala de policial uma noção de senso comum é aquela ideia do policial como herói e não se fala muito do sofrimento e de ser policial. Essas pessoas acabam ficando muito sozinhas e desamparadas do ponto de vista institucional e é preciso que a gente continue falando sobre isso para que as corporações deem melhores condições de trabalho para esses profissionais”.

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