Blocolândia leva Carnaval e redução de danos para a Cracolândia em SP

    Tradicional bloco carnavalesco composto por dependentes químicos, ativistas de saúde, trabalhadores e moradores do entorno da região contornam o muro erguido pela prefeitura e pedem respeito e dignidade em São Paulo

    O sábado de pré-Carnaval (22/2) foi dia de botar o bloco nas ruas da Cracolândia, no Centro de São Paulo. Trabalhadores e moradores do entorno, ativistas em saúde, cultura e direitos humanos, além dos frequentadores do chamado “fluxo”, realizaram mais um desfile do já tradicional Blocolândia.

    A concentração do bloco teve início às 13h, em frente ao Teatro de Contênier Mungunzá, na Rua dos Gusmões, que faz esquina com a Rua dos Protestantes, onde está localizado o “fluxo”.

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    O desfile acompanhado pela Ponte ainda percorreu parte da Rua dos Andradas e da Rua Mauá, até terminar na Rua General Osório. Ao longo do caminho, foi ganhando mais volume, de gente cativada pelo clima de tranquilidade, pelo glitter em diferentes cores e pelo som ritmado da bateria.

    ”É só acompanhar e deixar eles tocando”, disse à reportagem o mestre de bateria Claudinho, que se divertia com um apito na boca enquanto regia “a bagunça boa” dos músicos do bloco.

    O mestre de bateria Claudinho rege “a bagunça boa” dos músicos | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Cortejo da redução de danos

    O Blocolândia surgiu em 2014, pautado por uma perspectiva de Redução de Danos. Trata-se de uma estratégia de saúde pública que tenta diminuir as consequências danosas do consumo de drogas a partir da inclusão social do usuário, sem que ele necessariamente interrompa o uso dos psicoativos. Ao acolhê-lo, a ideia é evitar danos mais graves e, caso queira, ajudá-lo a progredir para a redução do consumo.

    A iniciativa conta com a mobilização de diversas entidades que atuam na promoção de direitos aos usuários de drogas. Entre elas, estão Coletivo Tem Sentimento, Instituto Luz do Faroeste, Cia. Mungunzá de Teatro, Craco Resiste, Pagode na Lata, Marcha da Maconha São Paulo, Centro de Convivência É de Lei, Teto Trampo Tratamento, Cine Fluxo, Soberano – Rua do Triunfo e Centro Cultural Recanto Rocha (Bar da Nice). A organização do Blocolândia também diz receber o apoio de parlamentares estaduais de esquerda, como o deputado Eduardo Suplicy (PT) e as integrantes da Bancada Feminista do PSOL.

    O tradicional bloco da Cracolândia alegrou as ruas do centro de São Paulo na tarde de sábado (22/2) | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

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    “A gente entende que o problema central das pessoas não é a droga”, diz Daniel Mello, militante da Craco Resiste e membro da organização do bloco. “Elas entram no consumo abusivo de drogas por uma série de violações. Aqui tem pessoas egressas do sistema prisional, com a saúde comprometida e laços sociais rompidos, que não têm mais capacidade de se inserir no mercado de trabalho por uma série de questões.”

    Para ele, a solução para o “fluxo” passa por uma perspectiva mais generosa. “É preciso um olhar global de cuidado, e não ficar propondo apenas internação. Tem pessoas aqui que já passaram por dez, onze internações. É um modelo que só dá dinheiro para organizações que privatizaram um serviço público de saúde.”

    Organizado por militantes da Craco Resiste, o bloco reúne usuários de drogas, agentes de saúde, moradores e comerciantes da região | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Para Laura Sahm, psicóloga e também integrante da organização do bloco, a redução de danos tem várias dimensões: “Passa por essa ideia mais ampla de focar no sujeito e não na droga, mas também no pequenininho: de quando uma pessoa está envolvida numa atividade maior como o Carnaval e dá para ficar sem usar droga por um momento, ou até usar a droga também, mas ela deixa de ser a questão central. Quando alguém não tem trabalho, casa, nem lazer, a droga ocupa esse espaço mais facilmente”, argumenta.

    “Às vezes, as pessoas passam a tarde inteira aqui pulando Carnaval e nem usaram crack, né? A redução de danos entra para a gente pensar nesse sentido também.”

    Muro do prefeito Nunes

    Esse foi o primeiro desfile do Blocolândia desde que a gestão Ricardo Nunes (MDB) ergueu um muro na Rua General Couto de Magalhães onde antes haviam tapumes, em trecho nos fundos do Teatro de Contêiner — confinando o “fluxo” de usuários.

    Em janeiro, o PSOL ajuizou um pedido no Supremo Tribunal Federal (STF) para que a estrutura de concreto seja derrubada. O ministro Alexandre de Moraes chegou a expedir uma ordem para que o prefeito de São Paulo se explicasse sobre a necessidade de ter a parede no local. Para Nunes, o aparato não visa segregar pessoas, mas evitar acidentes, como atropelamentos.

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    Segundo um manifesto dos organizadores, “o Blocolândia não pretende romantizar a miséria, mas se contrapor ao discurso que criminaliza a pobreza e estigmatiza os usuários de drogas” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    A região da Cracolândia também tem se situado nas discussões do projeto do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) de transferir parte da sede administrativa do governo ao entorno da Praça Princesa Isabel. O plano para supostamente revitalizar o Centro é alvo de críticas pela remoção de famílias e moradores antigos da região.

    “Acho que o bloco, neste momento, é importante para mostrar que existem outras possibilidades aqui para o território. A violência é uma opção que o Estado tem escolhido há anos, com resultados terríveis não só para as pessoas em situação de rua como para moradores e comerciantes”, afirma Daniel. “Existe uma outra possibilidade de a gente lidar com esse território, com mais vida, alegria e cuidado com as pessoas.”

    Ataque do MBL

    No ano passado, o Blocolândia chegou a ser alvo do vereador paulistano Rubinho Nunes (União), que protocolou um pedido para instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o intuito de investigar as entidades que atuam no acolhimento de usuários de drogas na Cracolândia.

    O vereador, que é ex-integrante do MBL e apoiador declarado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), acusava as entidades de “explorarem a miséria”, o que bloco repudiou.

    “Fazer um Carnaval dizendo que essas pessoas importam, que elas não são zumbis, elas dançam, cantam e também são donas desse território é potente”, diz psicóloga e organizadora | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “O Blocolândia não pretende romantizar a miséria, mas se contrapor ao discurso que criminaliza a pobreza e estigmatiza os usuários de drogas. O bloco aproveita o Carnaval para mostrar que a Cracolândia não é feita de zumbis, mas de sujeitos que cantam, sambam, criam e sofrem uma enorme desproteção do Estado”, publicaram os organizadores do bloco à época.

    À Ponte, a psicóloga Laura reforçou esse propósito do Blocolândia: “Todos os que vivem em ocupações ou em moradias precárias por aqui são objeto de desprezo da política atual, que se arrasta há muito tempo. Poder fazer um Carnaval dizendo que essas pessoas importam, que elas não são zumbis, elas dançam, cantam e também são donas desse território, e que portanto as políticas precisam ser feitas para elas — e não a despeito delas —, tem essa potência”.

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