Verônica Martinelly saiu de Manaus para ajudar a família e sonhava com premiações de carnaval, mas foi assassinada na última sexta-feira; para amigos e parentes, registro policial foi “mais uma violência” contra ela
Uma pessoa maravilhosa e querida por todos: é assim que a comerciante Karoline Espindola vai sempre se lembrar da irmã, a cabeleireira Verônica Martinelly, 30 anos, assassinada a facadas na última sexta-feira (25/2), em Santana do Parnaíba (Grande SP). Nascida no Amazonas, Verônica veio à capital paulista em busca de trabalho para ajudar a família e havia acabado de ser eleita a 1° Princesa Trans do Carnaval de São Paulo.
A irmã conta que Verônica deixou Manaus (AM) há dois anos, em busca de trabalho para ajudar financeiramente a família. Na capital paulista, encontrou emprego como cabeleireira, mas desde então não havia mais conseguido voltar para rever os familiares. “A Verônica sempre foi apaixonada por Carnaval. Adorava sambar e disputar premiações que tinha envolvimento de gays e trans, ela participava e se dedicava muito, era um sonho dela”, recorda.
O sonho de auxiliar os entes queridos e vencer concursos carnavalescos foi interrompido de forma brutal. De acordo com o Boletim de Ocorrência registrado na delegacia de Polícia Civil de Santana do Parnaíba, Verônica foi morta em uma chácara, no bairro de Cururuquara. O suspeito pela morte é o namorado dela, Kelvin Barkleu.
O dono da chácara, onde funcionava um terreiro de candomblé, contou à polícia que Verônica frequentava o local e chegou, com o namorado, por volta das 15h do dia 24. À noite, o casal se recolheu. Na manhã do dia seguinte, Verônica encontrou o proprietário e lhe desejou um “bom dia” enquanto ele preparava o café da manhã. Pouco depois, uma outra frequentadora do terreiro foi até o quarto onde estava o casal e encontrou a cabeleireira caída no chão, morta. Já Kelvin não estava mais lá.
Chamados ao local, guardas civis municipais relataram à polícia que o corpo da jovem tinha marcas de facadas no peito e que localizaram a faca usada para matá-la dentro da pia, suja de sangue.
Nas duas páginas do boletim, não há qualquer referência ao nome social de Verônica ou à sua identidade de gênero. Tanto na qualificação (identificação) dos envolvidos quanto no histórico que descreve os fatos, o delegado optou por se referir a Verônica pelo nome masculino.
A atitude da Polícia Civil contraria uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo de janeiro do ano passado, que, atendendo a um pedido da Defensoria Pública de São Paulo, concedeu uma decisão liminar (de urgência) obrigando o governo de São Paulo a incluir os campos de identidade de gênero e orientação sexual nos boletins de ocorrência. Na época, a Secretaria de Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) afirmou que acatou a decisão, inserindo os campos identidade de gênero e orientação sexual para serem preenchidos nos registros digitais de ocorrência, e que desde 2015 já incluía o campo de nome social.
A irmã da vítima afirma que gostaria que os policiais tivessem respeitado a identidade de sua irmã. “Era como Verônica que ela gostava que outras pessoas chamassem ela”, diz Karoline.
Para Marcelo Muller, diretor de carnaval da escola Unidos de Vila Maria, do grupo especial de São Paulo, que conhecia Verônica, o uso do nome antigo da cabeleireira nos registros policiais foi mais uma violência praticada contra ela. “É só mais uma violência que ela está sofrendo, não estão respeitando a memória da pessoa dela, a memória da pessoa tem que ser respeitada, se a própria família dela aceitava a orientação sexual dela não cabe a nós fazer nenhum tipo de julgamento”, diz. “Infelizmente não há respeito pela diversidade, os policiais não estão preparados para respeitar o nome social da pessoa, se Verônica era Verônica, Verônica será sempre.”
Marcelo lamentou muito o assassinato da jovem. “Queremos prestar solidariedade à família dela de Manaus e dizer que ela brilhou em São Paulo. Todo mundo que conheceu a Verônica era só alegria, dedicação, chegava nos horários, era uma menina muito responsável muito alegre, infelizmente cruzou o caminho de uma pessoa violenta, que já tinha um histórico de violência. Agora fica uma doce lembrança e estamos comovidos para lutar, fazer justiça e localizar quem até agora é suspeito do assassinato.”
O carnavalesco conta que conheceu Verônica a partir de um amigo, que lhe falou de uma jovem amazonense que já havia ganhado vários títulos do carnaval manauara e que tinha o sonho de participar da corte do carnaval paulistano. “Então nós investimos em Verônica, ajudamos ela a encontrar um belo vestido, uma fantasia, aproximamos ela da Marcinha da Corintho, uma artista respeitadíssima aqui em São Paulo.” A partir daí, Verônica conquistou mais um título, agora no carnaval paulista. “Ela estava muito feliz e foi muito bem no concurso, ficou em segundo lugar, então ela era a primeira princesa do carnaval LGBTQIA+ de São Paulo. O que muito nos alegrou foi que ela se apaixonou pelo nosso carnaval e seria passista da Mocidade Unidos da Mooca, que é uma escola de acesso aqui do nosso carnaval.”
A irmã relembrou algumas das conquistas de Verônica no samba: “Rainha da Unidos do Alvorada, da Dragões do Império, da Sem compromisso e da Vila da Barra, ela desfilou em muitas escolas.”
Em uma postagem nas redes sociais, a escola de samba Unidos de Vila Maria lamentou a morte da cabeleireira.
A escola Dragões do Império também prestou solidariedade à família nas redes sociais.
Karoline soube da morte da irmã por meio de mensagens. “Estava em casa quando recebi a notícia e nós da família ficamos sabendo em um grupo de WhatsApp, estávamos todos juntos, exceto o meu pai que trabalhava fora no momento.” Ela conta que viveu junto com a irmã até 2019, quando ela foi se mudou, primeiro para Curitiba (PR). “Era eu, ela, esse namorado dela, minha irmã, minha mãe, meu pai e meus três sobrinhos na mesma casa.”
Karoline diz que o namorado de Verônica já havia a agredido fisicamente e que o casal brigava com frequência. “Eu conhecia o Kelvin, mas não era de falar muito com ele porque nós da família não gostávamos dele, por conta dele viver brigando e batendo na Verônica”.
“Nós da família sempre apoiamos as decisões dela, tanto no masculino quanto feminino”, conta. Agora a família pede doações para levar o corpo de Verônica de volta à sua cidade de origem e dar um enterro digno à irmã. “Quem puder nos ajudar a trazer o corpo dela, estamos precisando de uma quantia de R$ 9.500 para fazer o traslado.”
Depois da perda da querida irmã Karoline quer uma resposta do Estado. “O que mais pedimos é que a justiça seja feita e que esse assassino seja preso.”
A reportagem não conseguiu contato com Kelvin Barkleu, namorado de Verônica.
O que diz o governo
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo do governo João Doria (PSDB). Em nota, a assessoria de imprensa afirmou que o nome social de Verônica foi acrescentado em um boletim de ocorrência complementar e que já constaria do inquérito policial. “Na ocasião do registro inicial, não havia informação, nem documento que comprovasse o nome social da vítima”, afirma a nota, assinada por Antônio Carlos Silveira.
Reportagem atualizada em 2/3, às 9h20, para inserir o posicionamento da Secretaria de Segurança Pública