Câmera de rua flagra ação suspeita de PM ignorada por câmeras corporais

Imagens de equipamento do Metrô mostram sargento Vinicius Sena colocando objeto, que seria uma arma, junto a um jovem baleado, durante ação em que policiais mataram dois, em São Paulo; gesto suspeito não foi captado pelas câmeras nas fardas dos PMs

Uma câmera de segurança do Metrô flagrou o momento em que o sargento Vinicius de Sena Santos, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da Polícia Militar paulista, se ajoelha em cima de um jovem baleado, retira um objeto preto da farda e o coloca embaixo do corpo dele, conforme um laudo pericial do Instituto de Criminalística a que a Ponte teve acesso.

A cena foi captada em 12 de janeiro, na Rua da Consolação, na região central da cidade de São Paulo, durante uma ação em que a Rota atirou 28 vezes contra um carro onde estavam três jovens, matando dois. O jovem que aparece nas imagens, único sobrevivente dos disparos, contou em depoimento que ele e seus amigos não estavam armados e que o sargento teria “plantado” uma arma com ele.

Apesar de todos os oito PMs que participaram da ação usarem câmeras corporais, o momento em que o sargento teria “plantado” a arma não foi captado por elas. Além disso, apenas dois dos oito policiais ligaram o áudio de suas câmeras, contrariando as normas da corporação para interações com o público. Por causa disso, as imagens das câmeras, reunidas em 73 arquivos, também obtidos pela Ponte, não revelam com clareza o que aconteceu ao longo da ocorrência.

Na ocasião, os policiais de duas viaturas da Rota abordaram um Honda Fiat cuja placa tinha sido informada via denúncia anônima de que iria participar de um roubo a residência na cidade de Cotia (Grande São Paulo), conforme o boletim de ocorrência registrado no 4º DP (Consolação), da Polícia Civil. No carro estavam Fabiano Alexandre Melo e Gabriel Barbosa Silva, ambos de 25 anos, e o jovem sobrevivente, que vamos chamar de José.

Os três passavam pela Rua da Consolação quando uma viatura da Rota se posicionou atrás do carro e uma outra emparelhou ao lado. Segundo o boletim de ocorrência, os rapazes “fizeram menção de efetuar disparo de arma de fogo contra a equipe, que revidou a injusta agressão sofrida”.

O comportamento dos policiais da Rota contradiz o Procedimento Operacional Padrão (POP) para abordagens de veículo (leia a íntegra do documento). O texto orienta que a viatura acione a sirene e o farol e fique a uma distância de segurança de cinco metros em relação ao carro que vai abordar. Nada disso foi seguido pelos PMs. O texto só orienta que a viatura faça emparelhamento caso o veículo tenha um adesivo indicando que o ocupante é uma pessoa com deficiência auditiva e não tenha percebido os sinais para parar.

PMs infringiram protocolos

A câmera de segurança externa que registrou a abordagem é de uma construtora que conduz as obras da futura estação Higienópolis-Mackenzie, da linha 6-Laranja do Metrô, que fica na altura do número 1.411 da Rua da Consolação. A análise da filmagem, feita pelo Instituto de Criminalística, da Polícia Técnico-Científica, mostra que as viaturas se aproximaram do veículo parado, aguardando o semáforo abrir, às 3h11.

Em determinado momento, José abre a porta dianteira do passageiro do Honda Fit. Policiais também descem da viatura de trás. Nesse momento, uma fumaça pode ser vista perto da viatura da Rota que havia emparelhado com o veículo, indicando disparos. José sai do Honda Fit e cai, provavelmente ao ser atingido, enquanto o carro segue em movimento. A câmera não alcança o instante em que o veículo bate em um poste, poucos metros à frente.

Com José caído no chão, dois PMs se aproximam. Um deles, o sargento Vinicius Sena, ajoelha em cima dele. O outro policial, identificado como cabo Diego Rodrigues Rosa, se retira depois de ter passado a mão na cintura do rapaz. O laudo da perícia identifica que Sena faz “movimentos com a mão esquerda na região de sua perna esquerda”.

Em seguida, da perna do policial, “surge um objeto, de cor escura, que é colocado embaixo do corpo do indivíduo caído, na região da lombar”. Depois, o sargento faz movimentos com a mão esquerda nas costas de José. É possível ver sangue na via. O policial levanta e fica ao lado do rapaz. Outro PM se aproxima e os dois permanecem ali até a chegada de uma ambulância do Corpo de Bombeiros, às 3h19, que socorre o jovem.

O sargento estava na viatura que ficou atrás do Honda Fit. A câmera na farda, com o som desligado, registra Sena segurando um fuzil, abrindo a porta e apoiando a arma pela janela da viatura, usando a porta da viatura como escudo. A imagem treme, indicando que ele fez disparos. É quando o sargento vai até José. Na câmera corporal dele, não é possível ver com clareza o que o PM faz. Sena aparece em cima do rapaz, a imagem registra parte do fuzil que ele segura, a faixa de pedestre e depois o rosto de José. O policial mexe no corpo de José e parece segurar um objeto parecido com uma arma, mas não é possível ver de onde foi retirado.

O sargento só aciona o áudio da câmera depois de ter levantado a camisa do rapaz e mexido na cintura e nos bolsos. A partir daí, é possível ouvir José dizer “pelo amor de Deus, cadê a ambulância?”. Sena diz para outro policial “segurar o trânsito” enquanto os colegas revistam o Honda Fit, e manda um homem, que está no terreno da obra, entrar. Mesmo depois de ter verificado se havia algo na cintura de José, permanece em cima dele, fazendo uma revista.

Trecho de imagem da câmera da farda do sargento Vinicius Sena | Foto: reprodução

Ele chama outro colega: “aciona as câmeras aí, Steve“. Steve é uma gíria para “policial”. O “acionar” que ele menciona se refere ao áudio e à “gravação de interesse”, ou seja, uma gravação em melhor resolução, obrigatória para toda ocorrência policial.

José diz “tira [inaudível] de cima de mim, por favor?”. Sena grita para outro colega “desarmei”, indicando teria tirado alguma arma do rapaz, apesar de as imagens não captarem esse momento. Depois, Sena pede para que os colegas acionem o Resgate.

José sofreu fraturas no fêmur, no antebraço e no joelho, e teve de passar por cirurgia. Gabriel foi atingido por três tiros (na cabeça, acima da clavícula e no tórax) e Fabiano por dois (no ombro, que passou pela coluna cervical, e na lombar). Socorridos, Gabriel e Fabiano morreram no hospital.

‘Milagre de Deus’

Em depoimento à Polícia Civil, em abril, o sobrevivente disse que tinha trabalhado como ajudante de pedreiro durante o dia e saído com Fabiano, na Vila Prudente, na zona leste, para passear. Lá, eles teriam parado em uma adega para beber e encontraram Gabriel, a quem, segundo ele, apenas Fabiano conhecia. José disse que os três “conversaram com umas meninas” e que Gabriel disse que iria deixá-las em casa, no centro da cidade, e convidou os dois para irem juntos.

José disse que a abordagem da Rota aconteceu quando eles já estavam voltando para casa e que nenhum deles estava armado. Quando pararam no semáforo, Gabriel falou “tem duas viaturas atrás de nós” e permaneceu parado. Segundo José, o vidro da janela da porta onde estava Gabriel, que conduzia o veículo, estava abaixado, assim como o vidro da janela da porta do banco de trás onde estava Fabiano. E que a janela do seu lado estava abaixada “até o meio”, no banco do passageiro da frente. Em seguida, afirma, a viatura da Rota emparelhou o Honda Fit.

Esse ponto é importante porque no registro da câmera da farda do sargento Guilherme Gomes Falcão Takenaka, que estava com o áudio acionado no momento da abordagem, é possível ver que ele segura um fuzil apontado para fora da janela, mas quem assiste a imagem não tem como visualizar o lado de fora da janela da viatura nem ter o mesmo campo de visão que o policial, pois ele segura o fuzil em frente ao aparelho e quem assiste só consegue ver parte da porta da viatura e o porta-luvas.

Nos vídeos das câmeras corporais, o sargento manda o colega que dirige a viatura “colar do lado”, ou seja, emparelhar com o Honda Fit, e grita “Abaixa os vidros aí, caralho!”. É possível ouvir alguém, provavelmente Gabriel, respondendo “Tá abaixado”. O sargento insiste: “Abaixa os vidros, meu! deixa eu ver sua mão”. Gabriel responde algo inaudível e o policial prossegue: “Deixa eu ver! Abaixa! Abaixa! Abaixa! Abaixa! Abaixa! Abaixa, caralho!”.

Gabriel responde algo como “Abaixa o quê, senhor?”. Takenaka grita “Eu não tô vendo, cara. Abaixa, aí, caralho! Eu não tô vendo, meu!”. O rapaz responde: “Abaixa o quê? Eu não tô entendendo”. O policial repete “Abaixa aí, caralho! Quem tá aí? Quem tá aí? Abaixa essa porra aí, caralho! Abaixa! Abaixa essa porra, quero ver!”. O jovem responde: “Não tem nada, senhor”. Em seguida, o sargento dá um grito e começam os barulhos de tiros.

Takenaka grita “Larga a arma, caralho” e depois “Vai, vai, vai!” e, em direção ao colega: “Vai para frente, caralho”. Os tiros continuam e ele manda os colegas se abrigarem e irem para o lado e depois dar ré na viatura. Quando os policiais saem do carro, o Honda acaba de bater em um poste.

Em seu depoimento, José afirmou que os policiais, ao emparelhar, começaram a falar “uns nomes ruins”, tipo “demônio, filho da puta”. Ele conta que ele e Fabiano estavam com as mãos levantadas e que não esboçaram reação, sem entender a abordagem, mas mesmo assim os policiais começaram a atirar. “Deus que me deu a visão e eu pulei do carro e me fingi de morto”, conta, descrevendo como sobreviveu.

Após os disparos, segundo a versão do jovem, um policial com fuzil debruçou-se sobre ele e colocou uma arma embaixo do seu corpo. O jovem diz que os policiais “praticaram uma execução” contra Fabiano e Gabriel e que ele só sobreviveu por “milagre de Deus”.

Sobrevivente relata medo de morrer

“Eu estou com muito medo, não queria nem ter vindo aqui [na delegacia], por mim colocaria uma pedra nisso”, disse José em depoimento ao Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, que investiga o crime. Na ocasião, ele pediu para ser incluído no Programa Estadual de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Provita).

Cerca de dois meses depois, ele saiu do programa porque na época sua então companheira, que também estava sendo acolhida pelo Provita, pediu para ter acesso a celular para se comunicar com parentes, assim como ele também o fez, o que não é permitido para pessoas que são protegidas pelo programa.

Contudo, em depoimento à Polícia Civil sobre isso, em julho, ele pede para ter mais uma oportunidade e ser acolhido novamente, pois, desde que deixou o Provita, estaria sendo intimidado por policiais. “Eu estou com medo, todos os dias param viaturas da Polícia Militar na porta da minha casa, veículos filmados param e circulam pela rua da minha casa, meus familiares estão com medo, eu tenho medo, eu não consigo ir a médico, eu não saio de casa, porque tenho medo, eu estou sem vida”, disse.

José foi acusado, em outro processo, por tentativa de homicídio contra os policiais e porte ilegal de arma pela promotora Rosana Colletta, do Ministério Público Estadual de São Paulo, que também pediu as imagens das câmeras dos PMs. O juiz Jair Antonio Pena Junior, porém, determinou, ainda em fevereiro, o envio das filmagens das câmeras em 24 horas para analisar o caso. Com isso, a promotora pediu para que a denúncia fosse rejeitada a fim de novas diligências.

O magistrado rejeitou a denúncia e revogou a prisão preventiva de José, que tinha sido encaminhado a um Centro de Detenção Provisória (CDP). Esse processo acabou arquivado e foi juntado ao inquérito das mortes de Fabiano e Gabriel.

Na investigação, apenas quatro policiais militares foram ouvidos pela Polícia Civil até o momento, e somente em agosto, sete meses após o crime: os cabos Rafael Siqueira e Diego Rodrigues Rosa e os soldados Pedro Guilherme da Silva e Fernando de Morais Freitas. Eles deram o primeiro depoimento em agosto deste ano, sendo que nenhum dos policiais envolvidos na ação falou no momento da elaboração do boletim de ocorrência, no dia que as mortes aconteceram. Isso porque a Lei do Pacote Anticrime, de 2019, incluiu no Código de Processo Penal que todo agente de segurança pública que estiver envolvido em crimes ou tentativas de crimes dolosos (quando há intenção) contra a vida não é obrigado a dar depoimento antes de constituir um advogado ou defensor público em até 48 horas e ser citado, ou seja, ser formalmente informado da investigação.

Com os baleados, a PM afirma ter apreendido dois revólveres calibre 38 com numeração raspada (um deles foi registrado duas vezes no boletim de ocorrência) e uma pistola .45 de propriedade de um homem que está com o registro de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC) cancelado. As imagens das câmeras não deixam claro como essas apreensões teriam ocorrido.

Os quatro policiais ouvidos pelo DHPP relataram que não fizeram disparos e confirmaram a versão dos colegas de que “a ação foi legítima”, mesmo relatando que não teriam visto o momento dos disparos. Em seu depoimento, o cabo Diego Rosa contou que, ao se aproximar do jovem caído no chão, “não havia arma de fogo aparente com o sujeito”. Ele disse que não acompanhou a revista feita por Sena e nem entregou objeto para ele.

Os PMs ainda disseram que não se recordavam se os faróis e as sirenes tinham sido acionadas, pois o acionamento era de responsabilidade dos sargentos. Também declararam que emparelhar a viatura fazia parte do procedimento.

Ajude a Ponte!

O caso segue em investigação, já que o delegado Bruno Ricardo Cyrilo Cogan, do DHPP, pediu mais prazo para ouvir o restante dos policiais que ainda não prestaram depoimento. São eles: sargento Guilherme Takenaka, soldado Juliano Contessotti Paulino e cabos Carlos Eduardo Santino e Vinicius de Sena Santos.

O que diz a polícia

A reportagem pediu entrevista com os policiais envolvidos à Secretaria de Segurança Pública e questionou a abordagem, o acionamento de câmeras, as denúncias de intimidação do sobrevivente e a violação do procedimento operacional para abordagens de veículos. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu as perguntas e encaminhou a seguinte nota:

O inquérito policial está em andamento pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). A equipe da unidade especializada está ouvindo os policiais militares envolvidos na ocorrência e analisando outros elementos que auxiliem no total esclarecimento da dinâmica dos fatos.

O que diz a Secretaria de Justiça e Cidadania

A Ponte procurou a pasta a respeito da situação do sobrevivente que estava no Provita até julho, mas a assessoria disse que não pode dar informações sobre o programa “por conta do risco envolvido em sua finalidade legal de proteção de pessoas sob extrema ameaça”.

O que diz o Ministério Público de São Paulo

A reportagem questionou se, além da promotora do caso, o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) também estaria acompanhando a investigação. A assessoria disse que o grupo não está acompanhando o caso.

O que diz a Ouvidoria das Polícias

A Ponte procurou a assessoria do órgão sobre as medidas tomadas, mas não houve resposta até a publicação.

Reportagem atualizada às 11h14, de 5/10/2023, para incluir resposta da SSP.

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