Aos 22 anos, Camila Rossatto, presa por tráfico de drogas, cometeu suicídio. “Ela perguntava, angustiada, se ia ser presa novamente”, diz advogado. O TJ-SP decidiu julgá-la mesmo após sua morte
Um chamado por agressão doméstica, que se transformou numa prisão por tráfico de drogas, que acarretou numa passagem pelo sistema prisional e que acabou em tragédia. Esse é o resumo dos últimos nove meses de vida de Camila do Vale Rossatto, que morreu aos 22 anos após tirar a própria vida. Da abordagem policial até seu julgamento, o que se viu foi uma sucessão de decisões que podem ser classificadas como equivocadas e que o aparato de segurança do Estado prioriza crimes envolvendo drogas em relação a outros.
A Polícia Militar foi acionada um pouco após a hora do almoço do dia 19 de agosto de 2020. O chamado era para um prédio na região central de São Paulo, onde vizinhos alertaram, através de uma denúncia anônima, para uma briga de casal que estaria ocorrendo dentro de um dos apartamentos do condomínio. O casal em questão era o chinês Jie Ye, de 44 anos, e a sua então namorada, Camila do Vale Rossatto.
Segundo o boletim de ocorrência registrado no 3º DP (Campos Elíseos), os dois policiais militares que cumpriam o chamado foram recebidos na porta do apartamento pela jovem, que estava aos prantos e, segundo eles, “aparentava estar drogada ou sob efeito de alguma substância que lhe provocasse efeito análogo”. A dupla de PMs ainda relatou que fizeram uma série de perguntas a Camila e seu namorado, mas que não obtiveram respostas plausíveis.
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Ainda segundo a versão dos policiais, eles foram autorizados pelo casal para entrar na residência. Após fazer uma busca dentro do apartamento, encontraram 38 pequenos sacos plásticos com metanfetamina, uma balança de precisão, três gramas maconha, R$ 2.412, dez pesos e cem dólares, em espécie. Pelo material encontrado, Jie Ye e Camila Rossatto foram autuados por tráfico de drogas pelo delegado Yong Suk Choi.
No dia seguinte da prisão em flagrante, o casal recebeu mandado de prisão cautelar expedido pela juíza de custódia Carla Kaari, relatando a magistrada que o crime teve o agravante de ser cometido durante o período de pandemia. “Anoto, ainda, que o autuado supostamente praticava crime contra a saúde pública em meio a uma pandemia, sendo muito mais grave e reprovável sua conduta”, alega a juíza em sua decisão.
Ré primária e depressão
Os advogados Fernanda Capo e Vinícius Bento acompanharam o caso de Camila e a descrevem como uma pessoa ativa e muito inteligente, mesmo tendo depressão e fazendo tratamento psicológico. Na opinião dos defensores existe por parte do Estado um grande desejo de prender qualquer pessoa que esteja relacionada com drogas, independentemente do contexto da sua prisão.
Eles alegam que Jie Ye tinha antecedentes criminais pelos crimes de tráfico e agressão que e isso não foi levado em conta na hora da sentença, como também o fato de Camila nunca ter tido nenhum problema com a Justiça. “Ela (a juíza) tinha elementos concretos para a prisão, mas se ela tivesse uma dúvida razoável se a Camilia estaria envolvida naquela situação, bastaria verificar as outras prisões do companheiro que se deram da mesma forma”, comenta o advogado Vinícius Bento.
Depois de passar um mês presa na Casa de Custódia de Franco da Rocha, Camila Rossatto foi colocada em liberdade provisória, após um pedido de Habeas Corpus feito pela Defensoria Pública de São Paulo, para aguardar o julgamento que está marcado para a próxima segunda-feira, 24 de maio. Camila não estará presente no tribunal. No último dia 20 de abril ela se suicidou dentro do apartamento onde morava.
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Mesmo com a sua morte tendo ocorrido há mais de um mês, o seu advogado terá que se apresentar ao juiz porque o Ministério Público do Estado de São Paulo não respondeu ao pedido de extinção da punibilidade feito pela defesa.
Para Vinícius Bento o período que sua cliente passou dentro do sistema prisional pode ter agravado mais ainda seu quadro de depressão. “Era uma pessoa que não tinha envolvimento com crime, era apenas uma usuária, que acabou entrando nessa por estar envolvida com esse namorado. Depois que saiu da prisão, ela aparentava estar sempre com medo e apreensiva. Ela sempre me perguntava, angustiada, se ela ia ser presa novamente”.
No artigo O impacto da prisão na saúde mental dos presos do estado do Rio de Janeiro, Brasil, as pesquisadoras Patricia Constantino, Simone Gonçalves de Assis e Liana Wernersbach Pinto, do Departamento de Estudos de Violência e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz afirmam que o sistema penitenciário deixa sequelas psicológicas nos encarcerados, sobretudo nas mulheres.
“Há necessidade de um maior investimento no sistema prisional, no sentido de ampliar e qualificar os serviços de saúde mental, com o intuito de fornecer a essa parcela da população um tratamento adequado, com especial ênfase ao atendimento à mulher encarcerada. Vale ressaltar a importância do vínculo familiar como um fator de proteção para a saúde mental. Nesse sentido, a estratégia de fortalecimento de vínculos familiares nas unidades prisionais, além de um direito a ser assegurado, configura-se como um fator de prevenção dos agravamentos de problemas emocionais”, concluem.
Precipitação judicial
Além de não levar em conta a falta de antecedentes criminais da acusada, outros pontos do caso são questionáveis. Um deles é que em momento nenhum foi levado em consideração nos autos que Camila estava sendo vítima de agressão por parte do namorado e que esse foi o motivo da polícia ter sido chamada para ir ao local. A pedido da Ponte, o advogado Cristiano Maronna analisou os documentos da prisão de Camila Rossatto e apontou possíveis falhas no inquérito.
“Me chamou a atenção o fato de uma denúncia anônima justificar a invasão de domicílio como aconteceu. Os policiais não podem entrar na casa de alguém sem uma ordem judicial. E mesmo havendo a permissão dos moradores, deve haver um registro audiovisual da autorização, como determinou recentemente o STJ, para que isso fique documentado. Eu entendo que, tanto pela denúncia anônima quanto a entrada na residência sem ordem judicial, já caracterizaria a nulidade do flagrante”.
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Para Maronna, o discurso padrão que se faz em meio a guerra às drogas faz com que juízes sejam menos tolerantes com crimes que envolvem entorpecentes e que comumente não se verifique o contexto de cada caso.
“Seria possível conceder a liberdade nesse caso. Ela não tinha antecedentes, não parecia haver riscos. A regra no processo penal é a liberdade e não a prisão, mas crimes de tráfico de drogas são tratados de forma muito severa pelo Judiciário, mesmo em casos que poderia haver um tratamento mais brando como conceder a liberdade provisória desde o início desse caso”.
Outro lado
Procurado pela Ponte, o Ministério Público de São Paulo respondeu que o motivo para a falta de resposta para o pedido de extinção da punibilidade feito pelos advogados de Camila Rossato, deveria ser perguntado para o Tribunal de Justiça de São Paulo.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo também indicou recorrer ao TJ-SP para a falar sobre a prisão da jovem. “O caso citado, um flagrante por tráfico de drogas, foi concluído e relatado em setembro do ano passado ao Poder Judiciário, não retornando para novas investigações desde então. Demais questionamentos devem ser solicitados à Justiça”, disse o órgão através de nota.
Respondendo a um pedido de entrevista com a juíza Carla Kaari, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de São Paulo informou que “os magistrados não podem se manifestar, pois são impedidos pela Lei Orgânica da Magistratura”.
Esta reportagem trata sobre um caso de suicídio. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, a Ponte recomenda entrar em contato Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita) ou neste site.