Casal denuncia transfobia em atendimento médico em Sergipe

Gestante de 14 semanas, Lourenzo Gabriel é homem trans e conta que, ao realizar consulta, agendamento de pré-natal e exames, não teve sua identidade de gênero respeitada em unidades de saúde públicas e privadas, sendo tratado por profissionais no feminino

O casal de artistas Lourenzo Gabriel, 23, e Isis Broken, 27 | Foto: Arquivo pessoal

Os artistas Lourenzo Gabriel, 23, e Isis Broken, 27, estão juntos há oito meses e, no início deste ano, descobriram que estavam esperando uma criança. “No começo, a gente não quis ir a um posto de saúde com medo de se contaminar com a Covid-19 e queria que minha mãe se vacinasse primeiro”, afirma Isis, que é travesti e cantora. Em abril, com cerca de sete semanas de gestação, Lourenzo, que é um homem trans, conta que passou a sentir enjoos e um sangramento durante uma semana, momento em que o casal decidiu ir a um posto de saúde em Aracaju, capital sergipana, onde mora, para saber o que estava acontecendo e agendar o pré-natal – momento em que um(a) médico(a) faz o acompanhamento da gestação, exames de rotina e esclarece dúvidas sobre o parto e a gravidez.

Na UBS (Unidade Básica de Saúde) Oswaldo de Souza, de administração municipal, os dois afirmam que Lourenzo não teve sua identidade de gênero respeitada, embora tenha o RG e o cartão nacional de saúde do SUS retificados com o nome social. “A gente ficou cerca de seis horas só para que na recepção corrigissem o nome porque ele entregou os documentos, mas diziam que no sistema do município não batia”, afirma Lourenzo.

Depois, na ficha da recepção, com insistência, afirmam, o nome social foi colocado para que ele esperasse ser chamado por uma profissional de saúde para atendê-lo, primeiro uma enfermeira e depois uma médica. “Mesmo assim, chamaram pelo nome de batismo, tratando no feminino, sem nenhum tipo de humanização”, completa Isis.

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Da UBS, foi feito um encaminhamento para que fossem realizados exames de sangue e de ultrassom. O de sangue foi realizado pelo laboratório da UNIT (Universidade Tiradentes), entidade particular conveniada à prefeitura. Lá, também denunciam que Lourenzo foi tratado no feminino. “Disseram que não tinha como colocar o nome social porque o SUS mandou [o encaminhamento] com o nome de batismo, sendo que [o nome social] é um direito”, prossegue Isis. Para ele, também houve o constrangimento de ser chamado, em voz alta, pelo nome de batismo em uma sala de espera com outras pessoas.

Antes da realização do ultrassom, que ocorreu em maio, Lourenzo conta que o sangramento ficou mais intenso e recorrente e, por isso, decidiram ir ao Hospital Maternidade Santa Isabel. “Já na recepção, o Lourenzo entregou o cartão do SUS dele e o recepcionista disse ‘eu preciso do cartão dela’, sendo que eu tive que explicar que aquele era o cartão dele”, lembra Isis. “Também colocaram a pulseira do cadastro com o nome de batismo e, mais uma vez, numa sala cheia de pessoas, gritam o nome dele de batismo”, prossegue.

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Do lado de fora, quando Lourenzo entrou, Isis afirma que “todo mundo começou a perguntar se ela estava grávida, todo um constrangimento”. Em seguida, a médica que atendeu, segundo o casal, verificou que Lourenzo tinha um sangramento, mas recomendou que voltasse para casa e que agendasse um ultrassom. “Ela disse que era para verificar se o nosso filho estava vivo ou morto porque poderia ser um risco de aborto espontâneo”, disse Lourenzo.

O casal afirma que esperou um mês para conseguir realizar o ultrassom, em maio, que foi encaminhado pelo SUS para ser realizada na Clínica Viver, que é particular. O constrangimento do nome social também aconteceu, mas Lourenzo também sentiu “descaso” no trato dos profissionais e que Isis não foi autorizada de acompanhar o exame por causa da pandemia. “Em nenhum momento o médico me dirigiu a palavra, quando ia perguntar alguma coisa, se direcionava à recepcionista”, afirma Lourenzo.

O exame indicou que a criança estava bem e Lourenzo conta que o sangramento parou por volta da nona semana de gestação. “A partir daí, a gente conseguiu uma doula que se voluntariou a nos acompanhar e só depois de passado isso é que a gente percebeu que foi uma violência obstétrica e uma transfobia institucionalizada”, critica Isis. “Parece que a gente sempre tem que se sujeitar a isso, negar nossa existência, para ser atendido”, lamenta.

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O reconhecimento do nome social e da identidade de gênero é previsto no decreto 8.727/2016, do governo federal. Sergipe também tem um decreto estadual, o 30.374/2016, cuja disposição trata do “tratamento nominal, inclusão e uso do nome social das pessoas travestis e transexuais nos atos de registro e de atendimento relativos a serviços públicos” prestados pelo Executivo Estadual.

À Ponte, a ginecologista e obstetra Ana Thais Vargas, que atende público LGBT+, explicou que a conduta clínica da UBS foi correta, no sentido do encaminhamento de saúde. “UBS é uma unidade sem especialidade, é um lugar de emergência, e, no caso de sangramento no início da gestação, é normal, e só um exame de ultrassom pode mesmo dizer se há algum risco de aborto espontâneo ou não, porque no início é uma suspeita”, indica. Como no ultrassom Lourenzo indicou que o canal cervical estava fechado, não haveria risco de aborto, segundo Ana Thais. “Se estivesse aberto, o aborto poderia acontecer”, explica.

Por outro lado, ela reitera que o tratamento desrespeitoso é o que faz com que a população trans acabe não recebendo as informações corretas e deixa de fazer acompanhamento médico por receio de passar por situações como as descritas pelo casal. “É o que a gente sempre reclama de que falta orientação [aos profissionais], falta tato para acalmar o paciente e explicar direito o que está acontecendo”, frisa. Ela acredita que a questão do nome social de Lourenzo não ter sido respeitado no agendamento do pré-natal deve-se “ao entendimento de que apenas mulheres podem engravidar e não homens trans”.

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De acordo com Isis, uma funcionária do CEMAR (Centro de Especialidades Médicas) Siqueira Campos entrou em contato com o casal para agendar um novo ultrassom para julho, porém, o documento também constava apenas com o nome de batismo de Lourenzo. “É justamente sobre isso que reivindicamos”, pondera Isis. Atualmente, Lourenzo está com 14 semanas de gestação.

Outro lado

A Ponte procurou as assessorias da Secretaria Municipal de Saúde de Aracaju e o Hospital Santa Isabel, por e-mail e telefone, e a Clínica Viver por telefone, a respeito do tratamento dado pelos profissionais, o processo de agendamento das consultas e sobre o sistema utilizado, mas não houve resposta até a publicação.

Em nota*, a UNIT declarou que respeita a todos e “repudia qualquer tipo de discriminação”. A assessoria disse que não houve reclamação formal pelo casal a respeito do atendimento. “Portanto, a equipe de atendimento do Unit Lab recebeu a autorização do SUS e o documento legal (identidade) de Lourenzo sem a indicação do paciente quanto à sua preferência pelo uso do nome social. Com isso, o atendimento seguiu o fluxo operacional considerando os documentos comprobatórios entregues pelo paciente – constando apenas seu nome de batismo. Nessas ocasiões, os pacientes trans que buscam os serviços do Unit Lab se pronunciam quanto ao nome social e a equipe do Unit Lab conduz o atendimento seguindo a orientação previamente anunciada sem nenhuma intercorrência”, diz trecho da nota.

*Reportagem atualizada às 19h44, de 23/6/2021, após recebimento de resposta da UNIT.

Correções

*Reportagem atualizada às 19h44, de 23/6/2021, após recebimento de resposta da UNIT.

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