Polícia Civil apontou “excesso” de soldado Ciro de Oliveira ao disparar quatro vezes contra Paulo Neves, mas promotor e juíza avaliaram que policial atuou em legítima defesa; vítima estava em situação de rua e tinha deficiência intelectual
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) acatou o pedido do Ministério Público (MPSP) e decidiu arquivar, na sexta-feira (3/11), a investigação contra um policial militar que matou um homem em situação de rua com deficiência intelectual na cidade de Jaú, no interior paulista, em janeiro deste ano.
Na ocasião, a Polícia Militar foi chamada para apartar uma briga entre a vítima, Paulo Henrique Silva Neves, 37, que era conhecido como Paulinho e atuava como guardador de carros (flanelinha), com outro morador de rua que teria oferecido serviço de flanelinha no local onde Paulinho atuava, em frente à Igreja da Matriz.
Quando foram separados, testemunhas relataram que Paulinho estava agressivo e, em determinado momento, pegou um bloco de cimento que estava atrás de uma árvore, tentou agredí-lo e depois teria ido em direção ao cabo Anderson Ribeiro de Freitas, que “buscou abrigo atrás da viatura”.
O soldado Ciro de Oliveira Junior afirmou, no boletim de ocorrência, que sacou a arma e pediu para que ele soltasse o objeto, mas Paulo não teria obedecido e teria ameaçado arremessar o tijolo no PM. Ciro declarou que Paulo “avançava de forma mais rápida do que ele conseguia recuar e por isso, ficaram bem próximos”.
Paulo Henrique, segundo ele, “fez movimento de efetivamente arremessar o objeto contra o rosto” e, por isso, “não teve outra alternativa que não efetuar disparos de arma de fogo”. De cinco tiros disparados pelo soldado, quatro atingiram o flanelinha: um na coxa, um no quadril, um no ombro e um na barriga.
A juíza Ana Virginia Mendes Veloso Cardoso, do Foro de Jaú, determinou o arquivamento argumentando falta de base para uma acusação contra o soldado. O Ministério Público divergiu do entendimento da Polícia Civil ao apontar que não teria ocorrido excesso por parte do policial e que a ação se deu em legítima defesa.
“A intenção do policial nunca foi matar o indivíduo, e sim fazer com que ele cessasse as agressões. Após o primeiro tiro, Paulo continuou agressivo e permaneceu indo em direção a Ciro com o bloco de cimento na mão”, sustentou o promotor Rogério Rocco Magalhães.
O delegado Nelson Henrique Junior, titular do 1º DP de Jaú, concluiu em relatório que “houve excesso na conduta do policial militar Ciro Oliveira Junior” porque ele fez “vários disparos em regiões letais do corpo da vítima, não efetuou um disparo para o alto como advertência, não atirou na perna, poderia ter usado outros meios como solicitado o spray que estava na viatura”. O uso de disparo de advertência, no entanto, não é uma prática recomendada, conforme portaria interministerial, de 2010, que disciplina diretrizes sobre uso da força por agentes da segurança pública.
Por outro lado, o delegado minimiza o possível “excesso” ao escrever que “em face de poder ser gravemente ferido com o bloco de concreto que portava Paulino desesperado vendo vir em sua direção por instinto de defesa efetuou disparos contra o mesmo repetindo estes disparos em face de Paulinho não ter parado indo mesmo após atingido em sua direção havendo SMJ [salvo melhor juízo], excludente de Licitude (sic), mesmo demostrado o aparente excesso, mas coloco o fato apurado a disposição da Justiça”.
Por telefone, o delegado disse à Ponte que preferiu não indiciar o policial, mesmo entendendo que houve abuso no número de disparos. “Se fosse eu, eu daria um tiro para o ar ou acertava na perna, mas não tem como medir, como o pai do Paulinho que foi ouvido e disse que teve despreparo. Talvez por nervosismo, não sei, pela circunstância, [o soldado] mandou que ele [vítima] parasse, ele foi para cima dele e [o policial] efetuou disparo e, como ele [Paulo] não parou, efetuou mais disparos e aconteceu isso daí, acabou matando o rapaz”, disse Nelson Henrique Junior. “Foi excesso? Tecnicamente, foi. Dependendo das circunstâncias, ele [Paulo] foi para cima dele [soldado], tanto que eu deixei a critério da Justiça”.
Questionado sobre policiais portarem arma e terem treinamento para não agir sob “nervosismo” ou por impulso, o delegado desconversou e focou no comportamento de Paulo. “A pessoa com o sangue quente não vai parar, eu vou dar um exemplo para você dos meus anos de delegado, a pessoa toma um tiro na perna, ela consegue correr 10 km, mesmo com um tiro tomado, ele ainda vai conseguir ter força, agora não sei qual vai ser a consequência. Era um bloco de tijolo daquele pesado, se desferisse na cabeça do policial, poderia matar? Poderia. E ele acabou atirando”, prosseguiu.
O homem em situação de rua agredido por Paulinho confirmou a versão dos policiais e que a briga começou porque Paulo o acusou de “pegar seus clientes”. Uma das testemunhas disse à Polícia Civil que o cabo Anderson estava com um spray de pimenta na mão, mas não o utilizou e o colocou de volta na viatura. O cabo não mencionou em depoimento sobre isso e nem foi questionado se tinham nem se foram empregadas armas menos letais.
Ao menos três testemunhas confirmaram em depoimento que Paulo brigou, agrediu e ameaçou um morador de rua com um tijolo, mas informam pontos diferentes. Uma apontou primeiro que Ciro deu disparo de advertência, o que o próprio não afirmou, e depois negou, dizendo que os disparos foram em direção à vítima e que o soldado pediu ao menos “umas 20 vezes” para que Paulo largasse o objeto. Outra informa que o flanelinha foi ameaçado pelo policial de apanhar se não soltasse o tijolo e, por isso, tentou investir contra os policiais.
As duas testemunhas relataram que Paulo já tinha se envolvido em brigas anteriormente e que tinham ouvido falar de que ele se gabaria de ter agredido policiais, mas não há nenhuma ocorrência registrada ou anexada ao inquérito.
Da mesma forma, um homem que se apresentou na delegacia dizendo ser amigo de Paulo, mas que não presenciou o crime, denunciou que o flanelinha fazia tratamento com uso de medicamentos, trabalhava como guardador de carros e que, há dois meses, teria sido agredido com chutes e socos por policiais militares e teve os remédios jogados fora durante uma abordagem para que ele não dormisse mais na frente de uma loja. Também não há registro formal sobre essa denúncia.
A reprodução simulada do crime feita sob o comando do delegado aconteceu apenas com a presença e versão de uma das testemunhas. Os policiais não compareceram. À Ponte, Nelson Henrique disse que “teve” de fazer do mesmo jeito, apesar de ter notificado para que o soldado Ciro e o cabo Anderson comparecerem. “Eles não eram obrigados a ir”, disse.
No laudo toxicológico feito pelo Instituto Médico Legal (IML), foram constatadas presença de remédios no sangue de Paulo: midazolam (que serve como anticonvulsivo), fentanil (opióide) e haloperidol (antipsicótico).
Na época do crime, um pastor que conhecia a vítima também confirmou à Ponte que Paulinho era conhecido na cidade e fazia tratamento psiquiátrico. “A polícia poderia ter agido de outra forma, ter imobilizado ele, jogado um spray de pimenta, uma arma de choque, mas não matar”, lamentou na ocasião. Ele, que tem uma comunidade terapêutica na cidade, afirma que mantinha contato com a vítima. “Ele foi abandonado pela família, tinha epilepsia, transtorno bipolar, fazia uso de medicamentos, e fazia acompanhamento com equipamentos da prefeitura”, contou.
De acordo com ofício da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Jaú (Apae), organização que presta serviço de assistência social a pessoas com deficiência, Paulo era atendido desde 2006, ano em que avaliação psiquiátrica constatou que ele tinha transtorno de personalidade antissocial do tipo boderline, transtorno de conduta quando da infância, retardo mental moderado e epilepsia, fazendo uso de medicamentos controlados. A última avaliação é de 2019, em que permanecem os diagnósticos de deficiência intelectual moderada e epilepsia, mas ele não frequentou mais a instituição depois.
O pai do flanelinha, um ajudante de cozinha de 61 anos, foi ouvido na delegacia, em março deste ano, e relatou que o filho fazia tratamento psicológico e uso de remédios desde criança e que tinha conhecimento de que estava sem usar fenobarbital (um anticonvulsivante conhecido comercialmente como “Gardenal”) “há algum tempo”, “o que fazia com que ele ficasse mais agressivo e alterasse seu comportamento”. Segundo ele, Paulo vivia em uma pensão e, após brigas, passou a morar na rua.
O pai disse que o convidou a voltar para a casa da família, mas ele não teria aceitado porque “queria trabalhar”. O ajudante de cozinha chamou a ação dos policiais de “execução” pois considerou um “exagero” a quantidade de disparos e que os policiais poderiam ter dado um tiro na perna ou usado de outros meios, como bala de borracha ou arma de eletrochoque (taser), e não o matado “de maneira cruel”.
O que diz o Ministério Público
A Ponte solicitou entrevista com o promotor do caso, mas a assessoria disse que ele “prefere não se manifestar” e que “as razões para o arquivamento estão na peça processual”.
O que diz o Tribunal de Justiça
Procurado, o TJSP informou que “os magistrados não podem se manifestar fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura (Loman)”.
O que diz a polícia
Procurada, a Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria da Segurança Pública, encaminhou a seguinte nota e não respondeu aos questionamentos da reportagem.
O caso citado foi investigado pelo 1º DP de Jaú. O inquérito foi finalizado e relatado à Justiça em outubro deste ano. A análise da investigação é de responsabilidade do Poder Judiciário. Demais questionamentos devem ser encaminhados à Justiça.