Caso Igor: homens negros jovens são vítimas mais comuns de violência no Rio

    Quase 7 de cada 10 vítimas de letalidade violenta no estado do Rio de Janeiro em 2023, ano com dados mais recentes reunidos pelo ISP, eram pessoas negras — proporção que destoa a distribuição étnico-racial da população

    Igor Melo, de 31 anos, é jornalista esportivo, trabalha como inspetor em faculdade e também faz ‘bicos’ de garçom | Foto: @igormelo_ve/Instagram/Reprodução

    As vítimas mais comuns de letalidade violenta e de tentativas de assassinato no Rio de Janeiro têm perfil semelhante ao do jornalista Igor Melo de Carvalho, de 31 anos — baleado por um policial militar aposentado na segunda-feira (24/2) ao ser injustamente acusado de roubo: são homens negros, de pele parda ou preta, e ainda jovens.

    Em 2023, ano com dados mais recentes compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão submetido ao governo do Rio de Janeiro, sob gestão Cláudio Castro (PL), o estado teve 4.270 mortes violentas, considerando homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte, e mortes por intervenção de agentes do Estado.

    Leia mais: ‘Racismo do início ao fim’: jornalista negro baleado no Rio é mantido sem família e com PM em hospital

    Ao menos sete de cada dez desses casos (69,4%) tiveram negros como vítimas: 2.052 eram pardos (48,1%) e 915 (21,4%) tinham a pele preta. Em 21,9% deles (933 casos), as vítimas foram pessoas brancas. Já outros 364 episódios não tiveram registro de cor (8,5% do total).

    Os percentuais destoam da distribuição étnico-racial do estado do Rio de Janeiro, conformou identificou o Censo de 2022, promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): os brancos compõem 41,9% da população fluminense; já os pardos são 41,6% e pretos, 16,1%.

    Ainda entre os assassinatos, quase nove de cada dez vítimas eram homens (89,6%). A faixa etária mais comum das pessoas mortas é a que vai de 21 a 30 anos de idade, com 1.216 casos (28,4% do total). Também em 2023, ainda de acordo com o ISP, ocorreram 3.256 tentativas de homicídio no estado do Rio de Janeiro, assim como ocorreu com Igor. Em ao menos 54,5% desses casos (1.775), as vítimas foram negros: 1.281 deles (39,3%) são pardos e os outros 494 (13,1%) têm cor da pele preta.

    Brancos foram vitimados em 32,3% desses episódios (1.048). Já 13,1% dos casos (438) não tiveram registro de cor da vítima no boletim de ocorrência.

    Além disso, quase oito de cada dez (77,7%) de todas essas tentativas de assassinato foram contra homens. A faixa etária de 31 a 40 anos de idade concentra 29,7% das vítimas.

    Dados mais recentes reunidos pelo Instituto Fogo Cruzado mostram que, somente em janeiro de 2025, 84% das vítimas de violência armada na região metropolitana do Rio foram homens adultos. Um maior número de casos ocorreu na zona norte da capital, assim como aconteceu com Igor, morador do bairro da Penha. Entre os registros que permitiram identificação, 69% tiveram negros vitimados.

    Racismo como ideologia

    Igor foi baleado quando voltava para casa na garupa de um mototáxi que pediu por aplicativo, após fazer um “bico” de garçom em um bar. No caminho, o PM da reserva Carlos Alberto de Jesus, que procurava pelos suspeitos de um suposto assalto contra sua esposa, Josilene da Silva Souza, emparelhou o carro junto à moto e deu dois tiros no jornalista, derrubando ele e o condutor.

    O policial que atirou em Igor também é negro. Para especialistas ouvidos pela Ponte, isso não minimiza, no entanto, a dimensão racista do caso, que aparece em vários outros episódios de violência contra pessoas negras cometidos por agentes de Estado ou civis em busca de “justiçamento”.

    Leia mais: ‘Eu era a vítima’: músico negro denuncia furto e acaba em camburão

    “O racismo é uma ideologia. E como ideologia, ele vai moldar certos comportamentos: no caso das forças de segurança, ele coloca a ideia de que todo negro é um tipo suspeito. Então, a agressão ou morte de um jovem negro por um policial a partir da ideia que ele é potencialmente suspeito é racismo, independemente de quem pratica”, explica o jornalista e pesquisador Dennis de Oliveira, autor de Racismo Estrutural: Uma perspectiva histórico-crítica, entre outros livros.

    “O racismo, como componente estrutural e ideológico, não está ligado a quem pratica. Inclusive, a própria Lei Caó, a lei 7.716/1989, que tipica o crime de racismo, não fala em momento algum ser uma lei somente para pessoas brancas. É uma lei para quem pratica racismo. A ideologia molda comportamentos também das pessoas que fazem parte daquele grupo discriminado”, complementa.

    Dennis diz ainda que, além das mortes violentas de pessoas negras, a ideologia do racismo também se manifesta no encarceramento em massa dessa população: “São necropolíticas, como diria o Achille Mbembe, realizadas com a ideia de que certos corpos não são toleráveis nesse sistema”.

    Violência institucionalizada

    Coordenador executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), Fransérgio Goulart concorda que o caso de Igor expressa a institucionalização da violência contra negros. “Esse caso materializa mais uma vez que há um genocídio da população preta a partir da política de segurança pública do Rio. E essa ideia de ‘justiçamento’ parte desse processo histórico que a sociedade branca e colonizadora construiu: com relação aos corpos pretos, eu posso fazer qualquer tipo de ‘justiçamento’. O corpo que pode sofrer dor, que pode ser morto é o preto ”, explica.

    Já a advogada popular Rhaysa Ruas, que é também secretária-executiva do Fórum Popular de Segurança Público do Rio de Janeiro (FPOPSEG), destaca que a lógica de “justiçamento” e a política de segurança pública do Rio carregam um caráter extrajudicial, por avalizarem execuções sem qualquer garantia legal.

    “É uma política ainda pior do que nos países onde existe pena de morte, porque, onde tem, existe ainda um devido processo legal antes de a pessoa ser executada. Aqui, nem isso”, diz Rahaysa. “A pessoa pode ser baleada só por ser negra e ser confundida com alguém que tenha roubado um celular. É indignante.”

    Internado, o jornalista esportivo ficou impedido de receber visitas de familiares e permaneceu escoltado por PMs até terça-feira (25/2) à tarde | Foto: @igormelo_ve/Instagram/Reprodução

    Vítima perdeu rim

    Igor continua internado no Hospital Getúlio Vargas, onde se recupera de uma cirurgia por ter perdido um rim em razão do ataque que sofreu. A família havia convocado um ato a ser realizado nesta quarta-feira (26/2) em frente à unidade de saúde para pedir justiça.

    Até a tarde de terça (25/2), familiares foram impedidos de acompanhar o jornalista, já que ele ainda era mantido sob custódia como suspeito do suposto roubo. No quarto com ele, se mantinham apenas dois policiais militares a escoltá-lo.

    Leia mais: PM que atirou em sobrinho de rapper pelas costas diz que agiu em legítima defesa

    O agressor que atirou em Igor e a mulher que o acusou de roubo foram embora após ele ter sido baleado, sem prestar socorro e sem acionar a Polícia Militar. O jornalista conseguiu enviar mensagem aos colegas do bar onde trabalha, que lhe prestaram os primeiros socorros.

    Josilene afirmou à Polícia Civil ter reconhecido Igor e o motociclista de aplicativo Thiago Marques Gonçalves, de 24 anos. O condutor sofreu escoriações leves ao cair com a moto e foi levado à Cadeia de Custódia de Benfica, onde passou por audiência de custódia e também foi solto na terça — ocasião em que foi determinado o relaxamento da custódia de Igor, para ter os familiares ao lado.

    ‘Indícios de autoria esvaziados’

    A defesa de Igor Melo foi feita pelo Instituto de Defesa de Pessoas Negras (IDPN). Na decisão que deu liberdade a ele, a juíza Rachel Assad da Cunha escreveu que “todas as informações indicam que tanto Carlos Alberto quanto Josilene [companheira do policial] teriam confundido os ora custodiados com os supostos autores do crime de roubo, de forma que os indícios de autoria restam totalmente esvaziados”.

    Na versão de Carlos e da esposa, ela teria sofrido um assalto à mão armada por dois homens em uma motocicleta em uma rua do bairro da Penha por volta das 23h do domingo (23/2). A mulher teria então pedido ajuda ao marido, quando saíram em busca dos suspeitos. Foi nessa altura em que encontraram Igor e Thiago. O PM alegou que, inicialmente, teria dado uma ordem de parada aos dois e só atirou em reação ao passageiro da moto, que teria sacado uma arma.

    A suposta arma não foi encontrada com Igor ou Thiago. Também não foi achado com eles o telefone celular que a mulher disse ter tido roubado. Além disso, os funcionários e as imagens das câmeras de segurança do Batuq, bar onde Igor trabalhava naquela noite, desmentem a versão do PM e da esposa: o jornalista permaneceu em serviço o tempo todo e só deixou o local às 1h16 da segunda. Há ainda o registro da corrida de motocicleta solicitada por ele no aplicativo ao final do expediente.

    “Essa situação é racismo do início ao fim, na questão de atirar no meu primo sem sequer perguntar, no reconhecimento fotográfico que fizeram dele, que parece que deram uma foto do RG dele para essa senhora reconhecer. Então, é mais uma vez esse reconhecimento fazendo vítimas negras, é mais uma vez um homem negro saindo do trabalho e sendo confundido com um assaltante”, disse Pâmela Carvalho, prima de Igor, à Ponte.

    “Meu primo está sendo tratado como um criminoso sob custódia. E toda a família, que também é negra como ele, está recebendo olhares atravessados. Então, o meu primo está sendo vítima de racismo e toda a família está sendo revitimizada com isso”, disse ainda a familiar, ainda na ocasião em que Igor era custodiado pela Polícia Militar.

    Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro (SSP-RJ) sobre por qual razão Igor era mantido sob custódia e se, além do suposto roubo, era também investigada a tentativa de homicídio contra ele. Não houve retorno até esta publicação.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude
    Inscrever-se
    Notifique me de
    0 Comentários
    Mais antigo
    Mais recente Mais votado
    Inline Feedbacks
    Ver todos os comentários

    mais lidas

    0
    Deixe seu comentáriox
    Sobre a sua privacidade

    Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.