O Estado detém mais força do que a pessoa cidadã. Qualquer policial, ao estar em serviço, torna-se um braço do Estado e, por isso, possui uso legítimo da força, porém não da violência
No dia 12 de abril de 2015, Verônica foi detida, acusada de ter agredido sua vizinha. Após acusação de agredir um policial, mutilando sua orelha com uma mordida, ela foi vítima de diversas violências policiais. Verônica teve seu cabelo raspado, foi espancada até ter seu rosto desfigurado, foi despida, sentada no chão algemada pelos pés e mãos e fotografada.
Agora, essa descrição se torna mais ou menos chocante ao saber que Verônica é travesti e negra?
Se você pensa “Mas foi ela que começou a confusão”, então ignora que não se trata de uma mera discussão sobre a cronologia dos fatos narrados pelos agentes policiais, mas de considerar que, qualquer que seja o caso, não há nenhuma violência institucional justificável. Quando instituições estatais estão envolvidas, a resposta nunca pode ser “olho por olho e dente por dente” pelo simples fato de ser uma balança de poder desigual: o Estado detém mais força do que a pessoa cidadã. Qualquer policial, ao estar em serviço, torna-se um braço do Estado e, por isso, possui uso legítimo da força – porém não da violência. Isso quer dizer que não se pode responder a uma ofensa pessoal utilizando da força estatal.
Exatamente no sentido de proteger as cidadãs e cidadãos de violências do Estado, foram instituídas diretrizes para a proteção e promoção de direitos considerados básicos, materializados no que chamamos de Direitos Humanos. Internacionalmente, o Artigo 5º da Declaração dos Direitos Humanos (1948) e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis e Degradantes (1984) colocam que ninguém deve ser submetido à tortura ou a penas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Nacionalmente, a Lei 9455/1997 define como crime de tortura “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental”, constituindo agravo se o crime for cometido por agente público. Ou seja, todas as pessoas têm o direito de não serem espancadas por policiais, assim como o direito de não serem despidas, algemadas e fotografadas.
No caso de Verônica, se houve agressão por parte dela, essa agressão deve ser devidamente denunciada, investigada e julgada em um processo judicial. Todavia, ela não serve para justificar, em momento algum, uma violência “corretiva” e muito menos o uso desproporcional da força, que vai além da “contenção” de uma situação de violência que esteja ocorrendo. Sobre essa versão policial, o advogado Renan Quinalha trouxe uma ótima contribuição, também publicada aqui na Ponte, em que comenta o depoimento em áudio gravado por Verônica, ainda sob custódia policial, tomando a culpa para si, e a indiferença demonstrada pela Coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo, Heloísa Alves, frente à inegável situação de tortura.
Para além da constatação das violações, é necessário problematizar a condição específica de Verônica e o tratamento dispensado a ela pelos policiais também sob um viés de gênero. Verônica identifica-se como travesti, isso quer dizer que ela tem o direito de ser tratada de acordo com o gênero feminino. A orientação de gênero é um direito, o que significa que cada indivíduo pode se identificar e expressar seu gênero, independente do sexo de nascimento. O direito de autodeterminação inclui ainda o direito de ser reconhecida por sua orientação.
No estado de São Paulo, de acordo com o Decreto 55.888/2010, servidores públicos devem tratar pessoas travestis e transexuais pelo nome social e pelo prenome de identificação. De forma correlata, em âmbito nacional a Resolução Conjunta no 1 de 2014 pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária estabelece que pessoas privadas de liberdade devem ter respeitada sua orientação de gênero, incluindo o tratamento pelo nome social, o tratamento pelo prenome adequado, o direito ao uso de peças íntimas e à manutenção dos cabelos de acordo com sua identidade de gênero.
No momento em que Verônica teve seus seios expostos e seus cabelos cortados, seus direitos à autodeterminação e à privacidade foram violados. No caso dela, seu direito foi violado em uma ação de transfobia e machismo institucional. Ainda, para além do tratamento desumano no espaço de custódia institucional, a imprensa também se torna violadora dos direitos de Verônica ao se referir a ela como “o preso” e usar o pronome masculino “ele”, em desrespeito à sua orientação de gênero.
De acordo com dados do Ipea de 2013 , cerca de 15 mulheres são mortas por dia no Brasil. O Brasil lidera o ranking de mortes de travestis e transexuais no mundo, de acordo com dados de 2013 da ONG International Transgender Europe. A expectativa de vida de travestis, no Brasil, é em média de 35 anos, segundo Pedro Sammarco, doutor em psicologia social e autor do livro Travestis Envelhecem. Para a população cis – que se identifica com o seu sexo de nascimento – essa expectativa é de 74,9 anos, segundo o IBGE. Simultaneamente, jovens negras e negros são as principais vítimas de homicídios no Brasil, assim como a população mais encarcerada.
Não à toa, Verônica é travesti, jovem e negra. O episódio de violência machista, racista e transfóbico sofrido por Verônica não é isolado, ele simplesmente converge em um único corpo diversas marginalizações sofridas por grupos minoritários. Ele serve para denunciar a situação de vulnerabilidade acentuada em que se encontram determinados grupos frente às instituições estatais – por exemplo, no sistema de custódia estatal, tanto por pessoas detidas nas dependências de delegacias, CDPs e presídios, quanto por agentes policiais e penitenciárias/os -, assim como frente à opinião pública.
Se no âmbito das Nações Unidas o Brasil mantém uma imagem progressista, tendo se mostrado favorável a uma declaração internacional sobre orientação sexual e identidade de gênero; no âmbito nacional o que vemos é um recrudescimento do conservadorismo, em que políticas machistas, homofóbicas e transfóbicas encontram aprovação de determinados grupos sociais.
Cabe a nós, movimentos, militantes e organizações sociais, nos mobilizarmos para exigir das instituições estatais o respeito absoluto aos direitos das minorias, sobretudo por parte do Judiciário e do aparato policial, além do avanço na regulamentação de direitos que ainda hoje carecem de proteção em lei federal, como o direito à identidade de gênero. Não aceitaremos nenhum direito a menos.
*Lucia Sestokas é formada em Relações Internacionais pela USP e é pesquisadora do ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
[…] Por Lúcia Sestokas, publicado na Ponte Jornalismo […]