Chacina de Nova Brasília: após 27 anos, absolvição de policiais ‘perpetua ciclo de violência’

Ação de policiais resultou em 13 mortes em comunidade do Rio de Janeiro em 1994; júri inocentou cinco acusados: “exemplo de impunidade crônica”, diz diretora da Anistia Internacional. STJ julga na próxima semana federalização das investigações do caso

Inspetores Rubens de Souza Bretas e Ricardo Gonçalves Martins, os ex-policiais civis Paulo Roberto Wilson da Silva e Carlos Coelho Macedo e o ex-PM José Luiz Silva dos Santos foram acusados de homicídio qualificado. | Foto: Felipe Cavalcanti/Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

Os sete jurados do Conselho de Sentença do Tribunal do Júri do Rio de Janeiro absolveram, por unanimidade, cinco acusados pelas mortes de 13 pessoas ocorridas em 18 de outubro de 1994 na favela Nova Brasília, uma das 15 comunidades que compõem o Complexo do Alemão na zona norte da capital fluminense. Na época, uma operação que envolveu entre 40 e 80 policiais civis e militares ocorreu na comunidade sob a alegação de busca de armas e drogas, mas dias antes uma delegacia da região tinha sido metralhada por traficantes. A decisão ocorreu nesta terça-feira (17/8).

O Ministério Público Estadual havia oferecido nova denúncia contra seis policiais em 2019, quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por impunidade, em 2017, e determinou que o caso fosse desarquivado e apurado com rigor. Foram julgados por homicídio qualificado por motivo torpe (desprezível) e que dificultou a defesa das vítimas os inspetores Rubens de Souza Bretas e Ricardo Gonçalves Martins, os ex-policiais civis Paulo Roberto Wilson da Silva e Carlos Coelho Macedo e o ex-PM José Luiz Silva dos Santos. O PM Plínio Alberto dos Santos Oliveira teve a punibilidade extinta porque morreu em 2018, antes de ser julgado.

“Esse resultado é consequência direta da ausência de uma investigação eficaz, imparcial e independente, que é um problema não só desse caso, mas de vários de mortes decorrentes de intervenções policiais”, critica a advogada sênior do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) Helena Rocha, que também representa as famílias das vítimas. Ela destaca que deixaram de ser produzidos em mais de 20 anos de inquérito laudos e exames que poderiam qualificar e indicar com precisão a autoria dos assassinatos que foram, na época, colocados como “auto de resistência”. A maioria dos tiros, disparados principalmente em áreas vitais, como a cabeça, indicavam sinais de execução sumária.

Reportagens da imprensa na ocasião mostravam denúncias de moradores sobre invasões de residências pelos policiais, que disparavam contra os ocupantes, e removeram os corpos até a praça da comunidade, prejudicando a perícia. A Polícia Civil, após esses relatos, fez perícia nas casas, mas um mês depois que os assassinatos tinham ocorrido e não verificou indícios de abusos. As vítimas do episódio que ficou conhecido como Chacina da Nova Brasília eram, em maioria, negras:

  • Alberto dos Santos Ramos, 22 anos
  • André Luiz Neri da Silva, 17 anos
  • Macmiller Faria Neves, 17 anos
  • Fábio Henrique Fernandes, 19 anos
  • Robson Genuíno dos Santos, 30 anos
  • Adriano Silva Donato, 18 anos
  • Evandro de Oliveira, 22 anos
  • Alex Vianna dos Santos, 17 anos
  • Alan Kardec Silva de Oliveira, 14 anos
  • Sérgio Mendes Oliveira, 20 anos
  • Ranílson José de Souza, 21 anos
  • Clemilson dos Santos Moura, 19 anos
  • Alexander Batista de Souza, 19 anos

Na sentença de absolvição, a juíza Simone de Faria Ferraz, que presidiu o julgamento, destacou a cena dos corpos empilhados. “Antes de passarmos ao exame do que soberanamente decidido pelo povo, sim, pelo povo, pela sociedade investida em cada um dos Nobres Senhores Julgadores é tempo de lembrar treze mortos deitados em solo, em praça pública, amontoados como resto, como que avisos claros de demonstração de força. Para alguns um exército vencido, em que as mortes foram comemoradas como ‘vitória’, como se possível fosse comemorar a morte”, escreveu.

Rubens Bretas e José Luiz Santos ainda respondem a uma acusação de violência sexual denunciada por três jovens que, em 1994, tinham 15, 17 e 19 anos, e disseram que tiveram as casas invadidas durante a operação. Plínio Oliveira também teria sido identificado por uma das vítimas por estupro. A denúncia do MPE, feita em 2019, foi recebida pelo Tribunal de Justiça no ano passado e ainda está em curso sob segredo de justiça. Duas dessas vítimas, segundo o G1, foram as testemunhas de acusação no julgamento. Já as defesas dos policiais argumentou falhas no reconhecimento, já que todos negaram os crimes.

No caso dos cinco acusados, o Ministério Público também pediu a absolvição por falta de provas. Questionado pela reportagem, a assessoria disse que órgãos de execução penal “não quiseram produzir a provas” e foram “omissos”. “O MPRJ lamenta o desfecho do processo e requereu a absolvição dos acusados não por chancelar a barbárie praticada por agentes em 1994, em Nova Brasília, e sim pelo fato de que não há provas da participação efetiva dos mesmos nos crimes de homicídio”, declarou.

O processo chegou a prescrever em 2009 e foi desarquivado em 2013 pelo Ministério Público, após o envio de um relatório Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) naquele ano destacando crimes de homicídio, latrocínio, tortura e abuso sexual. A condenação do país pela entidade internacional, em 2017, também fez o órgão emitir uma nova ação penal que se desdobrou no julgamento de terça-feira.

Em nota pública, a diretora executiva da Anistia Internacional Brasil Jurema Werneck declarou que o resultado do júri representa um “exemplo de impunidade crônica que perpetua o ciclo de violências e violação de direitos humanos cometidos por agentes do Estado, sobretudo nas favelas e periferias e geram, principalmente, a morte da população negra”.

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Ela também aponta que se a política de segurança pública do Rio de Janeiro e do Brasil fossem pautadas em inteligência e preservação dos direitos humanos, casos como a chacina de Jacarezinho, em que 28 pessoas foram mortas em maio deste ano, não se repetiriam. “Já passa da hora das ações policiais responderem a protocolos que privilegiem o respeito à vida e que estejam sob controle efetivo das autoridades governamentais, do Ministério Público, da justiça e da sociedade. Seguiremos monitorando de perto as violações aos direitos humanos ocorridas nos contextos de violência policial. O uso excessivo da força pelos agentes de segurança pública precisa ser investigado de maneira célere, independente e eficaz, atendendo aos padrões internacionais”.

O coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos Gabriel Sampaio destaca que falta de responsabilização perpetua o emprego de violência pelo Estado e enfraquece as instituições. “Demorar tanto tempo para acontecer o julgamento já mostra a falta de compromisso do Estado brasileiro em apurar e responsabilizar rigorosamente os culpados pelos crimes e torna as instituições suscetíveis a práticas milicianas e até de grupos criminosos”, critica. Ele enfatiza que é urgente a implementação de uma política de segurança pública que coiba a violência e letalidade policiais. “O que acontece com a Favela Nova Brasília é o que acontece em São Paulo, com os Crimes de Maio, no Rio de Janeiro, com Jacarezinho, e que vem se repetindo sucessivamente em outros estados brasileiros.”

Chacina se repete em 1995

A sentença da Corte IDH, além da chacina de 1994, também pedia apuração de outra que aconteceu na mesma favela em 8 de maio de 1995 e deixou 13 mortos. Comandada pela Delegacia de Repressão a Roubos e Furtos contra Estabelecimentos Financeiros, 14 policiais civis realizaram uma operação no local às 6h da manhã com apoio de helicópteros cujo objetivo alegado era “deter um carregamento de armas que seria entregue a traficantes de drogas da localidade”. Segundo os boletins de ocorrência obtidos pela Corte, testemunhas disseram que “houve um tiroteio entre policiais e supostos traficantes de drogas, que causou pânico na comunidade”. Depois, três policiais ficaram feridos e 13 pessoas foram mortas.

Laudos necroscópicos indicaram indícios de execução sumária pelos tiros terem atingido com frequência cabeça, peito e área do coração. Os 13, também em maioria negros, foram levados em um caminhão para o hospital já mortos sob a justificativa de que estariam sendo socorridos com vida. A Polícia Civil havia concluído que houve confronto e apreendido armas e drogas, mas sem atribuir a quem pertenciam.

  • Cosme Rosa Genoveva, 20 anos
  • Anderson Mendes, 22 anos
  • Eduardo Pinto da Silva, 18 anos
  • Nilton Ramos de Oliveira Junior, 17 anos
  • Anderson Abrantes da Silva, 18 anos
  • Márcio Felix, 21 anos
  • Alex Fonseca da Costa, 20 anos
  • Jacques Douglas Melo Rodrigues, 25 anos
  • Renato Inácio da Silva, 18 anos
  • Ciro Pereira Dutra, 21 anos
  • Welington Silva, 17 anos
  • Fábio Ribeiro Castor, 20 anos
  • Alex Sandro Alves dos Reis, 19 anos

Em 2009, o Ministério Público também pediu o arquivamento do caso, que foi aceito pelo TJ-RJ. Três anos depois, em 2012, fez um relatório no qual indicou que havia ocorrido “falhas” na condução a fim de que a investigação fosse reaberta, mas a Justiça negou. De acordo com o relatório da Corte IDH, em 2013 a Divisão de Homicídios abriu um novo inquérito para apurar o caso e o Ministério Público teria feito diligências a respeito das armas recolhidas, mas o Tribunal de Justiça determinou “o arquivamento da ação penal e a nulidade das provas produzidas após o desarquivamento do expediente do Ministério Público, por estar em contradição com o decidido pelo Poder Judiciário”.

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Reportagem de 2017 do Intercept Brasil ainda apontou que os delegados que comandaram, respectivamente as operações em 1994 e 1995, José Secundino da Costa Silva e Marcos Alexandre Cardoso Reimão, foram promovidos pela delegada Martha Rocha (hoje deputada estadual pelo PDT), chefe da Corregedoria Geral da Polícia Civil na época. Também foi em 1995 que o então governador do RJ Marcello Alencar (PSDB) havia criado a “bonificação faroeste”, em que os desempenhos de policiais civis e militares em operações poderia resultar em prêmios de aumento de até 50% dos salários.

Com a falta de respostas sobre os crimes, as organizações CEJIL e ISER (Instituto de Estudos da Religião) peticionaram à Corte IDH um pedido de apuração dos casos, que foi acolhido (leia a íntegra aqui). A Corte determinou que o Brasil executasse 15 ações de reparação, chamadas de pontos resolutivos, incluindo:

  • Conduzir com rigor e eficácia as apurações das chacinas de 1994 e 1995 e avaliar se cabe que o caso seja federalizado, ou seja, que o Ministério Público Federal passe investigá-las; o prazo era de um ano da data da sentença.
  • Investigar as denúncias de violência sexual;
  • Oferecer, gratuitamente, tratamento psicológico e psiquiátrico, além de medicamentos, se necessário, às vítimas;
  • A publicação da sentença da Corte nos canais do governo, incluindo redes sociais;
  • A realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, incluindo a inauguração de duas placas em memória das vítimas na praça principal da Favela Brasília;
  • Publicar um relatório sobre as mortes praticadas pela polícia com informações sobre as investigações de cada caso;
  • A realização de um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro, destinado a todos os níveis hierárquicos das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro e a funcionários de atendimento de saúde;
  • Adoção de medidas legislativas ou de outra natureza para que vítimas ou familiares possam participar das investigações;
  • Abolir o conceito de “oposição” ou “resistência” em mortes decorrentes de intervenção policial;
  • Pagamento de indenização no valor de 35 mil dólares para as vítimas das mortes (a ser recebido pelas famílias) e 50 mil dólares para cada uma das três jovens que foram vítimas de violência sexual, cujos valores serão depositados em um fundo voltado a elas;
  • Elaborar, em um ano da data da sentença, um relatório sobre o cumprimento das medidas

De acordo com Helena Rocha, no dia 20 de agosto será realizada uma audiência da Corte IDH para verificar o cumprimento dessas ações, especialmente sobre a realização de um plano que trate da redução da letalidade policial no Rio de Janeiro e a independência das investigações em casos de violência policial.

Sobre as indenizações, ela afirma que estão ocorrendo. “Não chegamos a ingressar com ações indenizatórias porque o Estado vem cumprindo com a determinação da Corte sobre os pagamentos, algumas famílias não receberam ainda por regularização de inventário”, explica.

Paralelamente a isso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vai julgar no dia 25 de agosto o pedido de Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) 21, no qual a Procuradoria Geral da República solicita a federalização da investigação das chacinas e das denúncias de violência sexual. Essa solicitação, de acordo com Helena, foi impetrada em 2019, na qual o CEJIL também acompanha.

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Ela espera que os ministros autorizem a solicitação, já que as esferas estaduais, segundo ela, não sem empenharam em elucidar as mortes de forma independente, já que os casos foram investigados pela Polícia Civil, de onde a maioria dos agentes das operações integram, e poderia contaminar todo o processo. “Os casos da Favela Nova Brasília foram investigados como autos de resistência, ou seja, você não investiga a morte, você investiga a vida pregressa das vítimas e essa lógica continua a mesma de justificar os homicídios a partir de uma conduta das vítimas”, critica Helena. “O discurso feito pelas autoridades na época se repetem até hoje [sobre confronto], as falas posteriores ao que aconteceu em Jacarezinho, por exemplo, mesmo que não tenha ‘auto de resistência’, a lógica da operação e da investigação ainda são de que as mortes ocorrem enquanto oposição.”

O que diz o governo

A Ponte procurou as assessorias da Polícia Civil, da Polícia Militar e do governo do Estado sobre o caso, a investigação, bem como sobre o cumprimento das determinações da Corte IDH, mas não responderam até a publicação.

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