Chacina em Camaragibe (PE) e a segurança pública baseada em vingança

    Seis pessoas de uma mesma família foram mortas após a morte de um policial, repetindo padrão de extermínio em supostas ações de vingança por agentes do Estado observadas em São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro

    Quatro dos oito mortos em Camaragibe: PM Eduardo Roque, PM Rodolfo José, Alex Silva e Ágata Ayanne
    Quatro dos oito mortos em Camaragibe: PM Eduardo Roque, PM Rodolfo José, Alex Silva e Ágata Ayanne | Foto: Reprodução Redes Sociais

    Em transmissão ao vivo nas redes sociais, Ágata Ayanne da Silva, 30 anos, registrou o momento em que ela e seus irmãos, Amerson Juliano da Silva e Apuynã Lucas da Silva, ambos de 25 anos, foram baleados e mortos por dois homens encapuzados no município de Camaragibe, na região metropolitana do Recife (PE), por volta das 2h da manhã de sexta-feira (15/9). Apuynã chegou a ser levado ao Hospital da Restauração, no centro de Recife, onde morreu horas depois, mas os demais morreram ainda no local.

    A chacina ocorreu cinco horas após as mortes de dois policiais militares, o cabo Rodolfo José da Silva e o soldado Eduardo Roque Barbosa de Santana, do 20º Batalhão da PM. Eles teriam sido mortos por Alex da Silva Barbosa, 33 anos, irmão de Ágata, Amerson e Apuynã, na noite de quinta-feira (14/9). 

    Em pronunciamento ainda na sexta-feira, no Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual, o secretário da Secretaria de Defesa Social (SDS), Alessandro Carvalho, afirmou que os policiais atendiam a um chamado do 190 sobre homens armados avistados na laje de uma casa em Tabatinga, bairro de Camaragibe. Chegando ao local, os dois PMs foram baleados na cabeça. Durante o tiroteio, uma mulher grávida e um adolescente também foram baleados e estão internados no Hospital da Restauração, no Recife. 

    Secretário da Secretaria de Defesa Social (SDS) Alessandro Carvalho
    O Secretário da Secretaria de Defesa Social (SDS) Alessandro Carvalho tomou posse no ínicio de setembro | Foto: Divulgação

    Na mesma sexta-feira, Maria José, mãe de Alex, foi encontrada morta num canavial em Paudalho, na Zona da Mata de Pernambuco. De acordo com o portal de notícias G1, o corpo de Nathália Nascimento, esposa de Alex, também foi localizado junto a Maria. A Ponte solicitou à SDS a confirmação da informação, mas não obteve respostas até o momento.

    Alex, que não possuía antecedentes criminais e tinha registro de Colecionador, Atirador e Caçador (CAC), foi morto com tiros na cabeça e no tórax na manhã de sexta, em Tabatinga, após trocar disparos com os policiais, segundo a SDS. A pasta não informou como Alex foi localizado.

    As múltiplas execuções entram na rota dos assassinatos motivados por vingança após a morte de policiais. Institucionalizadas ou não, chacinas desse tipo vêm ganhando destaque nas últimas semanas.

    Em março, cinco suspeitos de envolvimento no assassinato do sargento da PM de Pernambuco Jairo José da Silva Filho foram mortos um dia depois pela PM do estado. As mortes seriam decorrentes de um confronto, segundo reportagem do G1, quando PMs de três batalhões buscavam pelos suspeitos da morte do sargento. Imagens publicadas nas redes sociais mostram um policial puxando pelos tornozelos os corpos de dentro da viatura.

    Também em Pernambuco, a execução do sargento Leite Júnior, 52 anos, após uma briga em um bar em Caruaru, agreste de Pernambuco, culminou na morte do suspeito, cujo nome não foi revelado, da esposa dele, Zilda Luana de França, 27 anos, e do cunhado, Luís Henrique de França, 31 anos, em novembro de 2022. Segundo a SDS, o trio estaria armado em um veículo e não obedeceu à ordem de parada dos policiais, que atiraram.

    Na Baixada Santista, litoral de São Paulo, a Operação Escudo matou 28 pessoas entre 27 de julho e 5 de setembro, após a morte do PM Patrick Bastos Reis, 30 anos. Na semana passada, o governo anunciou a segunda fase da Operação, também em retaliação pela morte de um PM, o sargento aposentado Gerson Antunes Lima, 55 anos, no último dia 8.

    Na Bahia, a Operação Fauda deixou cinco mortos até este sábado (16/9) após o assassinato do policial federal Lucas Caribé Monteiro de Almeida. A ação, que reúne as Polícias Civil, Militar e Federal, segue em curso.

    Os casos se enquadram numa moldura nacional de mortes por execução sumária, aponta a cientista social Edna Jatobá, coordenadora executiva do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (Gajop), entidade que atua há 40 anos na defesa de direitos humanos em Pernambuco e que integra a Rede de Observatórios de Segurança. “O que a gente tem visto por exemplo na Bahia, em São Paulo, com a Operação Escudo, no Rio de Janeiro, com Jacarezinho, Vila Cruzeiro e Manguinhos são situações de múltiplas mortes com características de execução sumária após profissionais de segurança terem sido mortos em confronto. Isso nos coloca em alerta.”

    Indícios de chacinas com a motivação da vingança pela morte de policiais devem ser apuradas de maneira muito célere, avalia ela. “É preciso que se comprove e se investigue se o modo informal de praticar a segurança pública baseada em vingança está acontecendo em Pernambuco. Isso não cabe no estado democrático de direito.”

    Ministério Público ‘frouxo’

    Em nota publicada no Instagram, o Gajop informou que acionou o Ministério Público Estadual de Pernambuco por meio da Promotoria de Controle Externo da Atividade Policial e foi informado de que já estariam sendo tomadas as medidas cabíveis para proceder a rigorosa investigação.

    O texto destaca ainda que o governo de Pernambuco precisa tomar medidas efetivas para coibir a “existência de um modus operandi das forças policiais baseado na vingança, que vem se expandindo por todo Brasil, em que toda vez que existem policiais e/ou agentes de seguranças mortos durante operações policiais, é cometida uma chacina, em seguida.”

    Casos como estes englobam a crescente de mortes provocadas por policiais no estado pernambucano. Nos primeiros oito meses de 2023 houve um aumento de 37,5% na letalidade policial, quando comparado ao mesmo período de 2022. Segundo dados da SDS, de janeiro a agosto de 2022 foram registrados 64 casos e nos primeiros oito meses de 2023 foram contabilizados 88. 

    O crescimento torna-se mais acentuado se olhado para 2015, quando foram 37 casos de mortes em decorrência da atividade policial, ressalta Jatobá. Segundo ela, Pernambuco sofre com um Ministério Público “frouxo”, que não realizava o controle da atividade policial como deveria. “Isso contribui para impunidade, quando contribui para impunidade os crimes tendem a se repetir”, diz a cientista social.

    A falta de controle social da polícia feita também pela sociedade e o aumento de circulação de armas são outros motivos para que as mortes provocadas por policiais crescessem no estado, na avaliação de Jatobá. “A maior circulação de armas também oferece mais risco à vida dos policiais e aí eles, com o precedente do excludente de ilicitude, podem revidar a uma ‘injusta agressão’”, observa.

    O racismo também é um componente que tem contribuído para esse aumento. “Em Recife a cor de todas as pessoas que morreram vítimas da atuação da polícia eram pretas em 2021”, lembra.

    Há nove meses, desde o início da gestão da governadora Raquel Lyra (PSDB), a ausência de uma estratégia estadual de segurança pública com participação da sociedade civil chama a atenção da cientista social. A nova gestão criou um plano chamado Juntos pela Segurança, no qual foram lançadas diretrizes, em 31 de julho, e afirmou que a sociedade civil participaria ativamente até o início de setembro, explica. “Não houve um amplo chamado. A sociedade civil vem cobrando a existência de um plano estruturado de redução da violência letal praticada pela polícia. A gente não tem.”

    O programa pretende combater a criminalidade e reduzir a violência, principalmente as mortes violentas intencionais, a violência contra a mulher e os crimes contra o patrimônio, segundo publicação da SDS. O valor de R$ 660 milhões investido pelogoverno de Pernambuco para o Juntos pela Segurança é 18 vezes maior do que o gasto no período entre 2015 e 2022, diz o texto. A iniciativa prevê, entre outros pontos, a articulação com municípios para definição de metas e disponibilização de dados de violência para os municípios.

    Apesar da fragilidade nas políticas públicas de segurança pública do atual governo, o programa chamado Pacto pela Vida, que esteve em vigor de 2007 até 2022, lançado pelo então governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), foi também muito criticado pela sociedade civil, diz Edna. “Foi um plano que não foi executado na sua plenitude”, afirma. “Se preferiu investir só na repressão da criminalidade e violência e esqueceram as linhas que falavam sobre prevenção e gestão democrática, por exemplo.” 

    O plano ainda garantia incentivo para quem prendesse pessoas e aprendesse drogas, segundo Edna. “Isso é um erro, a gente precisaria ter metas para redução da violência, tanto da violência difusa, da violência letal intencional e metas bem colocadas e estudadas para a diminuição progressiva da violência policial”, crítica. 

    A 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho deste ano, também aponta crescimento das Mortes Violentas Intencionais (MVI) em Pernambuco. O estado registrou 37,8 mortes violentas por 100 mil habitantes, a quinta maior taxa de assassinatos do Brasil, sendo que a média nacional é de 23,4 mortes por 100 mil. Pernambuco ainda reúne 5 das 50 cidades mais violentas do país elencadas no relatório: Vitória de Santo Antão, São Lourenço da Mata, Garanhuns e Jaboatão dos Guararapes. 

    Diante disso tudo, o Gajop reivindica um plano que passe pelo imediato uso de câmeras corporais, assim como por um fluxo de comunicação estabelecido entre a SDS, com a Corregedoria e o Ministério Público estadual para a apuração das mortes e acolhimento das famílias. “Nenhuma morte pode deixar de ser investigada, deve haver uma busca ativa para que esses depoimentos constem nos processos, o que a gente tem, é a voz da polícia em muitos casos desconsiderando o que diz a comunidade e os familiares.”

    O que diz o governo

    A reportagem procurou a SDS e o Ministério Público do Estado de Pernambuco e questionou em quais circunstâncias se deram as mortes dos policiais e como Alex foi identificado como o principal suspeito, também foi indagado qual o protocolo seguido pela secretaria quando há o assassinado de profissionais da segurança pública e se há alguma pretensão de produzir um plano estruturado de redução da violência letal praticada pela polícia. Também foi perguntado se os policiais civis e militares de Pernambuco possuiam câmeras corporais e se essa política é adotada no estado. Nenhuma das questões foi respondida até o momento. 

    Ajude da Ponte!

    Em pronunciamento dado na sexta-feira (15), no Palácio do Campo das Princesas, a governadora Raquel Lyra disse que a polícia investiga as circunstâncias em que cada uma dessas mortes se deu e que o Grupo de Operações Especiais da Polícia Civil foi destacado para conduzir essas investigações. Ela se solidarizou com os familiares e amigos dos PMs Rodolfo José da Silva e Eduardo Roque Barbosa de Santana.

    Já que Tamo junto até aqui…

    Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

    Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

    Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

    Ajude

    mais lidas