Chamar a ‘Cracolândia’ de ‘Cracolândia’ ajuda especulação imobiliária, aponta pesquisadora

Para Nathália Oliveira, coordenadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, enfrentar desigualdade social passa por política de drogas: “com mais ou menos violência, tráfico não vai deixar de existir”

Ação policial na Luz, no centro de São Paulo, em 21/5/2017, para “acabar com a ‘Cracolândia'” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte jornalismo

A cena de uso aberto de consumo e venda de drogas que há quase 30 anos é vista pela região da Luz, conhecida de forma pejorativa como “Cracolândia”*, no centro da capital paulista, e que se deslocou por 450 metros na semana passada, gera uma indignação diferente da encontrada em outras regiões e situações por dois motivos: criminalização da pobreza e estigma do crack. É o que aponta a coordenadora da organização Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e socióloga Nathália Oliveira. “O uso de drogas existe em todas as classes sociais. O que acontece é que as pessoas que estão em situação de rua e em uma condição de pobreza são as que mais vão fazer um uso problemático de substâncias, não conseguem se estabelecer em uma rotina de casa, trabalho, ligada à família, acabam perdendo sua fonte de renda e vão parar na rua”, explica.

No ano passado, a entidade divulgou pesquisa em que aborda a destinação dos recursos públicos nos programas De Braços Abertos e Redenção, respectivamente da gestão Fernando Haddad (PT) (2013-2016) e o segundo comandado pela administração João Doria/Bruno Covas (PSDB) (2017-2020) para gerir o território. Apesar de ambos abarcarem atuação de diversas pastas dentro do mesmo programa, há a diferença de priorização da promoção de alimentação, renda e moradia como pilares para a produção de saúde integral em cada um. Além disso, o estudo indica o que investimento em equipamentos repressivos e prisões em flagrante têm sido o tom da segurança pública na região.

Para a pesquisadora, o uso do termo “Cracolândia” também invisibiliza um conjunto de relações e complexidades que existem no território, que vão da especulação imobiliária às ações repressivas das forças de segurança. Nathália, que já foi presidente do Comuda (Conselho Municipal de Política de Álcool e Drogas de São Paulo) e diretora da ONG Centro É de Lei, que atua com a abordagem de redução de danos – uma estratégia que prioriza a inclusão social e promoção de direitos de usuários de drogas para reduzir consequências relacionadas ao uso de entorpecentes – aponta que enfrentar a desigualdade social que acomete grande parte das pessoas que vivem ali passa pela revisão da política de drogas. “Se já está provado que a guerra às drogas acentua a desigualdades, os interesses dos municípios e dos estados em modificar essa agenda devem vir juntos, justamente no enfrentamento à desigualdade, né? Porque quando nos propõem enfrentar a desigualdades, não tem como você não cair em todas as pautas que mexem com a política de drogas que ficam no campo saúde, da assistência social, do sistema de justiça e segurança pública”, critica.

A socióloga Nathália Oliveira, co-fundadora e coordenadora da organização Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas | Foto: Reprodução/Facebook

Leia a entrevista.

Ponte – O que é a “Cracolândia”?

Nathália Oliveira – A “Cracolândia” é o nome como ficou conhecida a região da Luz, que é a uma cena de uso aberto para uso de crack e outras drogas há quase 30 anos. O termo ficou popularizado, inclusive, não só pela mídia mas também pelos usuários, que acaba aglutinando várias pessoas, geralmente, em situação de vulnerabilidade, que já estavam vulnerabilizadas, e acabam mais a partir do uso agudo de substâncias chegando em uma situação de rua.

Ponte – Como vê o uso do termo “Cracolândia” e do termo “usuários” para se referir ao local e às pessoas de lá?

Nathália Oliveira – O uso desse termo acaba reduzindo e criando um estigma sobre determinado território a uma coisa só e também invisibiliza todas as outras relações envolvidas nesse território, pessoas que estão ali, que frequentam, que moram… Mas por outro lado também é como parte dessas pessoas se identificam. O território têm muitos interesses envolvidos: para quem trabalha com o setor imobiliário, que tinha interesse naquele território, quanto mais o nome pegasse, melhor seria para a desvalorização e para que os imóveis pudessem ser comprados ou demolidos por um preço bem mais barato. Por exemplo, em nome ao combate ao tráfico e à “Cracolândia”, muitos imóveis foram lacrados ou demolidos, mas eram pensões de famílias de baixa renda que também moram ali na região, várias pessoas pobres que estão ali na região. A Luz tem essa característica de ter várias pensões, várias ocupações, moradias de classes muito populares. Parte das pessoas foram cadastradas e passaram a receber bolsa-aluguel, mas o valor é baixo, não permite que uma família que viva na região central consiga alugar um imóvel por ali também, é muito mais difícil.

Tudo isso vem sendo invisibilizado: comércios sendo fechados, teve um impacto na renda dessas pessoas. Por ali também tem duas escolas, uma pública e uma particular, e o que acontece, por exemplo, é que essas famílias vão sendo removidas em período escolar, tem posto de saúde, tem todo um vínculo ali que acaba sendo reduzido quando se tem um nome que estigmatiza o lugar. Existe uma cena de uso ali que deve ser cuidada, mas todas as relações também deveriam ser levadas em consideração. Por exemplo, quando tem ação da polícia, com bomba, tiroteio, as aulas que têm no colégio ali perto são suspensas, às vezes os alunos são dispensados, às vezes acontecem bem na hora que as crianças e adolescentes estão saindo da escola na região, mesmo os trabalhadores quando estão saindo do metrô. O foco deveria ser o desenvolvimento humano.

Ponte – Quem são as pessoas da “Cracolândia”? Por que estão ali?

Nathália Oliveira – A “Cracolândia” é bastante heterogênea, mas a gente pode dizer que, quando você olha, é visível na cena de uso de que a maior parte são de sujeitos negros. Acho que isso é uma coisa importante de identificar. E se você vai fazer pesquisas mais aprofundadas, como já foram produzidas pela Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, por alguns pesquisadores acadêmicos ou mesmo pela Iniciativa Negra, que é a minha organização, o perfil dessas pessoas é de vir de uma trajetória de vida anterior à “Cracolândia”, que envolvia conflitos, violências, violações de direitos, pobreza… Tem bastante gente egressa do sistema prisional e a gente vai percebendo como que isso vira uma porta giratória, né? Ora o sujeito está ali na “Cracolândia” e, de repente, volta para o sistema prisional. Ele nunca sai dessas condições de muita violência e vulnerabilidade, um público majoritariamente masculino.

Ponte – Até hoje, muitas das abordagens sobre esse tema focam no papel da droga, especialmente do crack, como uma droga devastadora que transformaria as pessoas em mortos-vivos (o nome da Operação Caronte, da Polícia Civil, evocava essa imagem). O que as pesquisas mais recentes têm mostrado sobre o verdadeiro papel que as drogas têm na realidade dessas pessoas que a gente vê na rua?

Nathália Oliveira – O uso de drogas existe em todas as classes sociais. O que acontece é que as pessoas que estão em situação de rua e em uma condição de pobreza são as que mais vão fazer um uso problemático de substâncias, não conseguem se estabelecer em uma rotina de casa, trabalho, ligada à família, acabam perdendo sua fonte de renda e vão parar na rua. Mas as histórias que aparecem de “a pessoa tinha tudo e veio parar aqui [‘Cracolândia’]”, geralmente na mídia, são de exceção. Via de regra, as pessoas que estavam ali já estavam em situação de rua ou de pobreza antes, muitas acabam rompendo vínculos familiares. Os usuários de crack também sofrem muito estigma nas regiões periféricas, mas por não se sentirem bem aceitos em seus bairros, muitas vezes por vergonha também, acabam indo para região da “Cracolândia”.

Ponte – Dá para dizer que é um tipo de “acolhimento” aquele espaço?

Nathália Oliveira – Não diria acolhimento, mas um ponto em comum de atividade de uso de crack, o ponto comercial já está ali pré-estabelecido, a cena para uso está ali, e acaba gerando uma série de fatores para que as pessoas fiquem ali.

Ponte – Por que uma cena como a do centro de São Paulo gera muito mais revolta do que outras como a da Rua Peixoto Gomide, perto da Paulista, ou shows, festivais como o Lollapalooza, raves?

Nathália Oliveira – Criminalização da pobreza e o estigma em torno da substância crack.

Ponte – Que não é uma droga que é aceita como outras?

Nathália Oliveira – Exatamente. São os contextos de uso de substância. Na Rua Maria Antônia [no centro de São Paulo, próximo à Universidade Mackenzie] ou o Lollapalooza, as pessoas se encontram, é um encontro pontual para uma atividade de uso recreativo de drogas. Ainda que no Mackenzie seja um encontro regular, porque tem os bares ao redor na Rua Maria Antônia, tem um outro perfil econômico que fica ali. As pessoas vão beber e depois vão embora para as sua casas, causam um transtorno enorme para quem mora ali, deixam muito lixo na rua também, fica muita sujeira. Reclamam da “Cracolândia” pela sujeira, mas acontece a mesma coisa por lá e tem uma funcionalidade ali, tem uma outra abordagem.

Ponte – Qual a responsabilidade do poder público nesse cenário?

Nathália Oliveira – A responsabilidade do poder público nesse cenário é diversa. Diversa no sentido de que o poder público precisa desenvolver serviços para fazer o atendimento, não só daquele sujeito, mas pensar em uma lógica de funcionamento para aquele território de modo mais pacífico e que menos viole os direitos das pessoas que vivem ali. O papel do poder público, na minha opinião, inclusive deveria ser não ficar de braços cruzados alegando que o problema é o fato das drogas serem proibidas e que isso não é uma discussão de âmbito estadual e municipal, pelo contrário. Os municípios podem mobilizar agendas regionais, os estados podem mobilizar agendas regionais justamente para pressionar a esfera nacional e modificar a legislação. A partir do momento que você tem uma mobilização de diversas agendas regionais questionando uma lei que, inclusive, traz vários problemas que são as cidades vivendo em cenários de guerra, você consegue pressionar e acelerar para que se modifique rapidamente essa situação.

E, a partir do momento que não há mobilizações para enfrentamento disso, as cidades ficam reféns inclusive das facções criminosas que, a meu ver, é perigoso em vários sentidos. Se você tem a circulação de uma mercadoria, de uma indústria acontecendo de maneira ilegal (em âmbito internacional, porque a indústria do tráfico de drogas é transnacional), você precisa criar todo um aparato de corrupção sistêmica do Estado e dos seus agentes. Então o problemas sobre seguir nessa agenda proibicionista e de guerra é para além dos problemas que a gente tem na “Cracolândia” e só daqueles sujeitos. A gente está falando de 30 anos. Imagina quantas vidas passaram por ali e tiveram desfechos que podem ter sido bastante trágicos e, se vacilar ainda, por conta do de ação do poder público e mesmo a omissão, né? A não ação é também deixar morrer. Se já está provado que a guerra às drogas acentua a desigualdades, os interesses dos municípios e dos estados em modificar essa agenda devem vir juntos, justamente no enfrentamento à desigualdade, né? Porque quando nos propõem enfrentar a desigualdades, não tem como você não cair em todas as pautas que mexem com a política de drogas que ficam no campo saúde, da assistência social, do sistema de justiça e segurança pública.

Ponte – Como vê as políticas públicas atuais que tentam lidar com o problema? Há exemplos positivos em algum lugar do Brasil? Quais? O que fazer?

Nathália Oliveira – Política pública tem que existir sempre. O Estado começa a acertar quando identifica uma cena de uso e resolve criar uma rede protetiva de equipamentos naquele território para atender aquele público. Isso é fortalecer o acesso a direitos mínimos às pessoas que estão lá, ainda que com diferentes abordagens, o problema mesmo é a manutenção de serviços de direitos de saúde, como o SUS (Sistema Único de Saúde) e o SUAS (Sistema Único Socioassistencial), coexistindo com ação violenta da polícia. Isso causa uma dificuldade dos usuários se vincularem aos serviços, de confiar nos agentes de saúde e de assistência social, mas é positivo levar os equipamentos para lá. Existe uma preocupação com a dispersão da cena de uso porque diversas pessoas que estavam vinculadas naquela área de serviço irem para regiões onde não tem a mesma malha de serviço ou o mesmo manejo. Ainda pessoas em situação de rua e usuários de drogas são maltratadas em hospitais públicos, postos de saúde, já presenciei diversas vezes, e aqueles equipamentos no território são destinados para aquele público. Um dos elementos da oferta de cuidados e tratamentos conseguirem acontecer é a questão do vínculo. Então, quando as pessoas se dispersam em outras regiões, ainda que no centro, continuam em situação de vulnerabilidade porque as pessoas do bairro tendem a não aceitar e gerar mais casos de violência. Também não conseguem se vincular aos serviços da região. Qual a lógica desse investimento? Deveria ter uma abordagem integral. Não tratamentista de “como eu vou fazer as pessoas deixarem de usar crack?”, mas primeiro atender e ofertar o que as pessoas estão precisando naquele momento. As pessoas em situação de vulnerabilidade e em situação de rua também precisam de cuidados preventivos com a produção de a saúde, saúde mental, integral, de as pessoas estarem integradas em atividades econômicas para que consigam desenvolver um mínimo de autonomia e agenciamento sobre a sua vida. Isso entra em programas de assistência social e geração de renda. É necessário pensar em uma abordagem que leve em consideração também uma solução para vida, porque as pessoas vão desenvolvendo sua auto-organização para refletirem sobre a sua relação com o uso de crack. Ainda que muitas não parem de usar, vão modificar a relação com o uso da substância e diminuir o uso. Deve ser uma visão para toda a cidade.

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É que ali, na Luz, acaba sendo uma cena concentrada e por isso gera mais atenção, mas a abordagem deveria ser para toda a cidade. O programa Atitude, de Recife (PE), foi o pioneiro a começar a pensar esse tipo de cuidado integral: moradia, geração de renda, com cuidados em saúde e assistência social [o programa Atitude (Atenção Integral aos Usuários de Drogas e seus Familiares) foi criado em 2011 pelo governo de Pernambuco, com foco em redução de danos]. Surgiu no âmbito do programa Pacto pela Vida e logo depois veio o De Braços Abertos [na cidade de São Paulo, em 2013], que, pelas pesquisas e pelos relatos das pessoas que participaram, os usuários conseguiram se reinserir mais. Tem também um programa estadual na Bahia, que é o Corra pro Abraço [criado em 2013, também com foco em redução de danos]. Não tem a perspectiva de moradia, mas integra toda essa lógica de promoção de direitos. O programa Redenção [criado por João Doria, em 2017, quando era prefeito da capital paulista, com foco inicial na abstinência total, e que passou a mesclar com algumas ações de moradia e assistência social na gestão Bruno Covas e na atual] tentou incorporar um pouco dessa lógica, mas a alta exigência e ao mesmo tempo um comando, por parte do município e do estado, de uma forte militarização e presença do território acaba sendo o impeditivo que acaba enfraquecendo a lógica de promoção de direitos. Para qualquer cidadão, a polícia é representante do Estado, as equipes de saúde e assistência social são o Estado, e isso gera uma desconfiança e dificuldade de criação de vínculo. Sem contar que qual é a efetividade da presença da polícia ali? O tráfico de drogas não vai deixar de existir, seja com mais ou menos violência, porque é uma indústria transnacional. É complexo.

(*) A Ponte evita usar a expressão “Cracolândia” para se referir a regiões ocupadas por pessoas pobres no bairro da Luz, em São Paulo, ou em outros locais, por considerá-la imprecisa e preconceituosa. As pesquisas mais amplas sobre o tema, como a Pesquisa Nacional sobre o Crack feita pela Fiocruz em 2016, apontam que as causas da situação de vida dessas pessoas estão muito mais relacionadas com a pobreza e a exclusão social do que com o uso de alguma substância. Entenda: ‘Repórteres que falam em Cracolândia são uma fraude’, diz Carl Hart.

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