Cobertura da imprensa no caso Lázaro gera ‘insegurança pública’, dizem professores

Entre selfies, narrativas de preconceito e defesa de armamento civil, mídia contribui para “novelização” da busca policial pelo suspeito de cinco homicídios, que já passa de duas semanas, apontam especialistas

Mídia cobre caso Lázaro há 15 dias, ele é procurado em Cocalzinho de Goiás | Foto: Reprodução Polícia Civil de Goiás

De acusações de satanismo, passando por policiais influencers, chegando a invasão de um terreiro e até a morte de um inocente, a caçada a Lázaro Barbosa, 32 anos, e o circo que se montou em torno dela já dura 16 dias. Procurado pela polícia no estado de Goiás, suspeita-se que ele matou ao menos cinco pessoas: um caseiro, um casal e os dois filhos. A busca por Lázaro tem ganhado grande espaço na cobertura midiática e se arrastado nas redes sociais e na vida concreta de muitas pessoas. 

Programas de entretenimento da manhã da TV Globo abriram espaço em suas grades para entrevistar psicólogos, psiquiatras e peritos que tentam desvendar a mente de Lázaro, além de mostrar a cobertura jornalística em tempo real da operação que já mobiliza mais de 200 policiais. De outro lado, jornais transmitidos aos finais de tarde na TV aberta, conhecidos como “policialescos”, exploram o assunto até às últimas consequências, como é o caso do Brasil Urgente, apresentado pelo jornalista José Luiz Datena, que colocou um de seus repórteres em meio à caçada durante um tiroteio ocorrido no último sábado (19/6). 

Repórteres do programa de Datena estão na linha de frente das buscas à Lázaro junto à polícia | Foto: Reprodução

Na visão de Rogério Christofoletti, professor de ética jornalística e membro do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a mídia tem cometido erros grosseiros na cobertura do caso. “É uma cobertura que aumenta a insegurança pública e o pré-julgamento. Há um despreparo técnico, vinculado também a uma falta de reflexão sobre o papel do jornalismo”, diz.

Notícias que ligavam Lázaro a objetos de religiões de matriz africana provocaram a invasão de policiais a dois terreiros na cidade de Cocalzinho de Goiás. Ataques racistas praticados contra casas de matrizes africanas na Região de Águas Lindas, Girassol, Cocalzinho e Edilândia em Goiás, na tentativa de vincular os praticantes ao foragido e aos crimes a ele atribuídos também aconteceram nas últimas semanas, como denunciam autoridades afro tradicionais e organizações representativas dos povos tradicionais de matriz africana em um abaixo-assinado

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O caso aconteceu após o portal de notícias G1 publicar uma reportagem com o título “Fotos mostram que casa de Lázaro Barbosa, suspeito de chacina em Ceilândia, tem itens que indicam bruxaria e rituais, diz polícia”. A matéria gerou uma nota de retratação do portal após muitas críticas de internautas em 16 de junho. “Embora seja possível identificar nas imagens elementos de algumas religiões, não é possível associá-los a nenhuma crença ou culto, muito menos aos crimes cometidos por Lázaro”, apontou o veículo em seu pedido de desculpas. 

O portal de notícias G1 divulgou imagens com elementos de religiões de matriz africanas | Foto: Divulgação/Polícia Civil

Ainda assim, o portal de notícias não foi o único a reproduzir as suposições dos policiais. O UOL também divulgou uma reportagem em que informações obtidas por investigadores apontaram que Lázaro, “se diz perseguido por uma espécie de demônio ou espírito”. O texto também diz, sem dar maiores detalhes, que “mensagens trocadas entre policiais da força-tarefa” indicavam que Lázaro carregava um “livro místico que lhe garantiria proteção espiritual”.

Em suas reportagens o portal de notícias UOL ressaltou a ligação de Lázaro com o satanismo | Foto: Reprodução

Já uma reportagem publicada pelo portal Metrópoles entrevistou o suposto melhor amigo de Lázaro que o ligava a religião evangélica e que dizia que o suspeito levava consigo uma Bíblia. O jornal “Primeiro Impacto” do SBT relacionou objetos de cultos de religiões afro a magia negra e a satanismo.

O jornal “Primeiro Impacto” associou Lázaro a “magia negra” e “rituais satânicos” | Foto: Reprodução

Eliara Santana, jornalista e pesquisadora do grupo Multilinguismo e Interculturalidade no Mundo Digital do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Universidade de Campinas (CLE/Unicamp) avalia que esse tipo de narrativa além de promover o preconceito não agrega em nada nas investigações. “Esse tipo de construção não é um detalhe que enriquece a investigação, por que interessa saber a religião de Lázaro? O que isso interessa para o espectador e leitor, a não ser construir um simbolismo negativo em relação a essas religiões que já sofrem preconceito no Brasil, sobretudo agora no atual governo? Não acrescenta em nada, não é interessante e tem um impacto muito negativo.” 

O portal de notícias UOL deu grande destaque a aspectos místicos de Lázaro | Foto: Reprodução

Com a intensificação crescente da cobertura na televisão, rádio e em veículos online a repercussão do caso Lázaro nas redes sociais também produziu uma série de episódios na vida pessoas que estão longe da cidade de Cocalzinho de Goiás. No Maranhão um jovem com problemas mentais de 23 anos foi morto por policiais na última semana após publicar uma imagem que exaltava Lázaro em suas redes sociais. Segundo a Polícia Civil, Hamilton Cesar Lima Bandeira teria reagido a uma prisão em flagrante com uma faca e por isso foi morto com dois tiros. 

O jornalismo feito em cima de declarações agravam o cenário de estímulo à insegurança pública, provocando consequências drásticas como nos casos citados acima, diz o professor Christofoletti. “O tal do jornalismo declaratório, principalmente apoiado em falas e algumas autoridades policiais de maneira muito errática que não são verificadas ou verdadeiras e que nada contribui para compreender melhor o assunto”, aponta. 

Para o jornalista é preciso que a cobertura de segurança pública se paute pelos direitos humanos. “Falta dentro da redação uma discussão sobre ética, uma formação melhor sobre cobertura de segurança pública orientada por direitos humanos. Há um conjunto muito grande de violação dos direitos humanos ocorrendo”. 

Discurso do armamento

A cobertura grande do caso Lázaro ganhou terreno fértil para que políticos e até mesmo policiais diretamente envolvidos na mega operação se promovessem em meio ao tema do momento. 

Policial tirou selfie com reféns de Lázaro, em Cocalzinho de Goiás | Foto: Reprodução

Entre as ações de autopromoção estão selfies em meio ao resgate de reféns, vídeos para o Tik Tok e até postagens como a da deputada federal Magda Mofatto (PL-GO), que publicou um vídeo nas redes sociais, no último sábado (19/6) empunhando um fuzil dentro de um helicóptero e afirmando que está procurando e que irá prender Lázaro, assim como o vereador de Fortaleza Inspetor Alberto (Pros) e finalmente a fala do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que se utilizou da repercussão midiática para defender a política armamentista. “Esse elemento tentou entrar numa chácara e foi repelido porque o cara tinha uma calibre doze lá dentro. Os bandidos estão armados, você não tem paz nem dentro de casa. Eu não consigo dormir, apesar de uma segurança enorme aqui no Alvorada, sem ter uma arma do meu lado”, disse.

Leia também: Como fabricar um culpado

José Arbex Junior, sociólogo, jornalista e professor do curso de jornalismo da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo),  avalia que a cobertura da mídia no caso Lázaro tem favorecido o discurso militarista. “Ela está transformando em espetáculo uma caçada a um ser humano, é uma demonstração na minha opinião de desumanização explícita. Essa caçada ao Lázaro está perfeitamente alinhada ao discurso do genocida do Planalto. É um discurso militarista, desumanizador, agressivo, que diz respeito completamente às instituições e que, embora formalmente o Lázaro possa se entregar para ser julgado e evidentemente merecer um direito de defesa, nós sabemos que o corpo de uma caçada dessa só tem um destino, a morte.”

Internautas fazem piadas com postagens de policiais envolvidos na operação | Vídeo: Twitter

Com isso, Arbex defende que o pânico causado na população por conta da cobertura da busca à Lázaro sem a devida profundidade vem fortalecendo o discurso do armamento. “Toda essa situação induz você a querer se proteger, se armar e considerar todo mundo que se aproxima da sua casa como um potencial Lázaro da vida. Essa narrativa tem como pano de fundo a ideia de abolir a solidariedade social, abolir a ideia de instituições democráticas que se resolvem por meio do diálogo e não do confronto, abolir todas essas ideias e partir pro extermínio”, explica. 

Novela e banalização das informações

Para além dos fatos ocorridos na busca a Lázaro, veículos de imprensa têm promovido a novelização da cobertura, explica o professor Rogério Christofoletti. “A televisão tende a criar uma situação que facilita uma certa teledramaturgia do assunto então eles vão estendendo o assunto como se fosse uma novela. Isso associado ao insucesso das próprias forças de segurança que não conseguem capturar o Lázaro. Então, isso fica virando uma novelinha”.

Exemplos da dramaturgização do caso citada por Christofoletti também são encontrados em grandes sites de notícias que passaram a noticiar fatos banais da operação, que não destacam ou explicam de forma crítica as questões técnicas do caso. 

Relatos do cotidiano de policiais são veiculados por sites da imprensa tradicional | Foto: Reprodução

Para o professor esse tipo de cobertura vai criando um contorno de um personagem de ficção. Ele também pondera que os jornalistas precisam saber discernir o que é apenas curiosidade e o que é verdadeiramente interesse público. “A curiosidade se esvazia rápido e, muitas vezes, é movida por instintos básicos do ser humano. O sensacionalismo vai na mesma direção, pois ele apela aos sentimentos mais primitivos. Já o interesse público é mais perene, e afeta a vida das pessoas para valer”. 

Há aspectos do caso Lázaro, segundo ele, que definitivamente são de interesse público. “Por exemplo, a mobilização de tantos recursos para caçar um sujeito que é apenas suspeito de quatro mortes, embora ele já tenha ficha criminal. Curiosidade é todo o circo armado e as ficções que se criam em torno desse personagem. A exploração, o sensacionalismo que se faz disso dá muita mídia, muita audiência, vemos muita gente explorando isso e muitas pessoas observam isso como uma plataforma, uma oportunidade para ou vender, ou se projetar”.

Para ele, é necessário qualificar a cobertura jornalística. “Para que a gente tenha uma melhor cobertura e a entrega de notícias melhores. Não necessariamente notícias boas, mas notícias que ajudem as pessoas a compreenderem como é que as coisas se dão na sociedade”, diz Christofoletti. 

Leia também: “A cobertura da mídia cristaliza a ideia de guerra”

Sem generalizar a cobertura da imprensa neste caso, o professor de jornalismo da USP (Universidade de São Paulo) Eugênio Bucci avalia que há a necessidade da imprensa em cobrir o caso e por isso podem florescer vertentes de sensacionalismo. “Existem fatos relevantes que justificam a atenção da imprensa, para o que está acontecendo lá com esse criminoso. E esses fatos relevantes são uma dimensão da operação policial e de outro lado, o estado de alerta, o medo das pessoas que vivem naquela região. Não acredito que exista no centro um caso de sensacionalismo da imprensa”.

Ainda assim, Bucci acredita que talvez exista o sensacionalismo da parte dos protagonistas da operação, repercutido pela imprensa. “O que aparece é que a postura dos responsáveis diante das câmeras tem uma coloração meio espetaculosa e a imprensa ajuda nisso de forma inercial, porque está dando visibilidade para um fato que está ocorrendo e ao dar visibilidade sempre há figuras que surfam na onda. É natural da dinâmica da comunicação jornalística que isso aconteça”.

O professor destaca que o sensacionalismo é feito em programas policiais de fim de tarde na televisão diariamente. “É quando o jornalismo ajuda o discurso de violência da polícia, ali é voluntário”. 

Leia também: O Retrato: como a polícia e a mídia destruíram a vida de um inocente

Fora isso, Bucci aponta que “vão aparecendo notas adjetivas ou qualificativos que ultrapassam o registro factual e a informação que esclareça o público, inclusive de pessoas que estão a centenas ou milhares de milhas de distância do que está acontecendo lá com o único propósito de magnetizar audiência e geração de engajamento”. 

Em outro sentido, Arbex considera que a imprensa tem uma responsabilidade maior sobre os impactos da cobertura no caso Lázaro. “Nós sabemos perfeitamente bem que quem cria os fatos é a mídia. Essa fala de que os fatos existem independente da mídia, é insustentável, quem define o que é importante ser noticiado e o que não é depende de uma decisão da mídia. E a mídia decidiu transformar essa cobertura em uma cobertura espetacular”. 

Uma das explicações para os erros apontados por Arbex na cobertura do caso Lázaro se dão por conta da necessidade de audiência e de venda de anúncios. “Esse tipo de cobertura vende, é espetáculo, dá audiência e satisfaz extintos básicos e bárbaros do ser humano. Se tem coisa que vende na mídia é sangue e sexo. Em segundo lugar, por uma questão ideológica, mostrar que o inimigo mora ao lado”.

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Por fim, o professor da UFSC chama a atenção para outros casos em que a imprensa errou na cobertura. “O caso do bar Bodega. A exploração da Eloá, dos Nardoni, do menino Henri recentemente e a Escola Base. E outras tantas coberturas, precisamos melhorar, podemos melhorar, tem capacidade pra isso. É um desvio  imperdoável para as grandes empresas”, conclui Christofoletti.

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